Foto: Rogelio Casado - II Parada do Orgulho Louco, Manaus-AM, 2005
"Seu" Cosme, no primeiro plano, durante a II Parada do Orgulho Louco, promovido pela Associação Chico Inácio, filiada à Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial
O assassinato de Cosme Miranda
A Associação Chico Inácio está de luto. Foi assassinado um dos seus mais queridos associados. Chamava-se Cosme Miranda. Quem o matou não foi movido por outro sentimento do que a intolerância para com o portador de transtorno mental. Agregado há mais de 12 anos num Serviço de Pronto Atendimento (SPA), seu corpo foi encontrado no pátio daquele serviço. Justamente no lugar onde gozava de estima e consideração. Não faz sentido. Seus companheiros perguntam-se, perplexos: “Quem o matou, por que o fez, ou fizeram, na madrugada do dia 25 de julho, dentro ou fora do SPA, se ele não costumava sair de casa à noite? Se o assassinato se deu fora do serviço de saúde, por que seu corpo foi deixado no lugar que o acolheu e com ele convivia há mais de uma década?”
A Associação Chico Inácio oficiou para a Secretaria Municipal de Direitos Humanos, Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Amazonas e Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Vereadores, o seguinte pedido: acompanhar a apuração do caso para que não caia no esquecimento e para que se faça justiça à memória do querido companheiro.
Portador de transtorno mental, Cosme Miranda freqüentava, esporadicamente, a única reunião de usuários existente no serviço público da cidade. Este, incapaz de problematizar a existência da instituição manicomial, reforçava mensalmente sua função social, pasme!, em plena era da Reforma Psiquiátrica em curso no país desde o início dos anos 1980. O exemplo mais constrangedor deu-se por ocasião da instituição do direito ao passe livre de ônibus: a decisão de que três ou quatro atendimentos consecutivos eram suficientes para a concessão do benefício. Prenúncio de encrenca, de apropriação perversa de um direito equivocadamente construído. Não deu outra. Profissionais de saúde foram ameaçados, alguns agredidos fisicamente quando não cediam às pressões dos interessados. Outro mau exemplo: o estímulo à criação de uma entidade de usuários de saúde mental no interior da instituição símbolo da exclusão social. Por essa e por outras é que a Reforma Psiquiátrica no Amazonas foi para o beleléu. Ninguém se deu conta de que ali era impensável uma organização coletiva dos usuários que fosse marcada pelo signo da independência e da autonomia.
Nesse cenário conheci “seu” Cosme. Não havia espaço na instituição manicomial para a livre manifestação do seu pensamento. Gente como ele me inspirou a decisão de organizar uma entidade que congregasse além de profissionais de saúde mental (na maioria, aversos à participação na vida política da pólis em defesa da cidadania dos portadores de transtorno mental), os familiares e portadores de transtorno mental, fora do manicômio.
Sua adesão não foi imediata. Afinal, “esmola grande, cego desconfia”. Quem garantiria o direito de manifestação sem a tolerância de araque a que fora habituado? Quantas vezes fora admoestado a se limitar aos anêmicos temas das enfadonhas reuniões? Bastou participar de uma assembléia da Associação Chico Inácio para perceber que ali os portadores de transtorno mental não estavam sujeitos à camisa-de-força do conhecimento técnico-científico, porém à mais surpreendente das experiências ético-estéticas. Foi dali que “seu” Cosme fez sua trincheira de comunicação dos seus projetos delirantes, que ameaça apenas a psiquiatria carcerária-policialesca e seus próceres.
Na “Chico Inácio”, corpos marcados pela experiência psicótica, em convívio com outros corpos envolvidos no trato diário com o que o portador de transtorno mental tem de louco, vão mais além do que promover uma mera reintegração social, tampouco a retomada da normalidade perdida. Ali interessa a construção de novas formas de sociabilidade, capaz de operar um deslocamento no plano moral, estético, político, jurídico (apud Lancetti). “Seu” Cosme foi um exemplo no desafio de criar um novo lugar para o louco na história da civilização.
Manaus, Agosto de 2006.
Rogelio Casado, cuidador de Saúde Mental
Coordenador do Programa Estadual de Saúde Mental
E-mail: rogeliocasado@uol.com.br
Nota: O autor escreve todas as quartas-feiras na Coluna de Opinião, no jornal Amazonas em Tempo.
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