agosto 31, 2006

ABP versus Reforma Psiquiátrica

Arte de Salvador Dali - A persistência da memória












Nota: Leia artigo publicado na Coluna de
Opinião do jornal Amazonas em Tempo,
no dia 30 de agosto de 2006.

ABP versus Reforma Psiquiátrica

O relacionamento da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) com a Reforma Psiquiátrica é marcado pela ambigüidade. Criada em 1970, com objetivos científicos e corporativos, seus quadros eram compostos, inicialmente, por segmentos conservadores da universidade, da prática clínica particular, da tecno-burocracia do Estado e do empresariado da saúde.

Raros foram os dirigentes que souberam interpretar o momento político vivido, manifestando compromissos com a democracia que queríamos nos anos da luta contra o autoritarismo no país: Marcos Toledo Ferraz foi um desses exemplos.

É fato que a ABP já não tem o domínio hegemônico dos anos de autoritarismo, inclusive porque segmentos declaradamente biologizantes criaram suas próprias entidades, como a Sociedade Brasileira de Psiquiatria Biológica e a Associação Brasileira de Psiquiatria Clínica. E, ainda que tenha havido mudanças nos seus quadros, com a incorporação de profissionais ligados ao serviço público em busca de titularidade, o espírito conservador da instituição permanece. E se manifesta.

Foi o que aconteceu na recente declaração do presidente da ABP em mídia nacional. Mais uma vez, os segmentos conservadores desembarcam da viagem por uma sociedade sem manicômios, surgida em 1987 como bandeira radical do Movimento pela Reforma Psiquiátrica que queremos no Brasil.

Em jogo, o que ainda resta dos 80 mil leitos psiquiátricos privados desde que a Reforma Psiquiátrica brasileira foi iniciada em 1980. Reduzidos a 40 mil, os empresários do setor usam o seu braço institucional para manter serviços nos quais a abordagem psicofarmacológica é dominante. Nada a ver com o nobre espírito científico, senão com a conta bancária de um setor outrora conhecido como “indústria da loucura”.

Ao pretender “zerar” a Reforma Psiquiátrica, o presidente da ABP nega a história de um movimento social que ganhou respeito internacional pela ousadia da experimentação de novos dispositivos técnicos, assistenciais e éticos como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), os SRT (Serviços Residenciais Terapêuticos), Centros de Convivência, leitos psiquiátricos em hospitais gerais etc. Além disso, ignora acintosamente as entidades representativas de familiares, usuários e técnicos de saúde mental, as conferências de saúde mental e todas as entidades democráticas que apóiam a luta por um sociedade sem manicômios, como o Conselho Federal de Psicologia, para citar a mais combativa delas.

Quem conhece a proto-história o Movimento pela Reforma Psiquiátrica no Brasil, entre os anos 1978 e 1980, sabe que quem se projetou no cenário político, como principal ator social, foi o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). Dele faziam parte os Núcleos Estaduais de Saúde Mental do Centro Brasileiro de Saúde (CEBES), Comissões de Saúde Mental dos Sindicatos dos Médicos, Movimento de Renovação Médica (REME) e a Rede de Alternativas à Psiquiatria. Nele a ABP estava ausente. Sentiam-se desconfortáveis com as primeiras críticas públicas à cronificação do manicômio e ao uso do eletrochoque.

Se o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em outubro de 1978, conhecido como o “Congresso da Abertura”, serviu como palco para a organização nacional do Movimento, foi graças à ousadia dos militantes deste último que os setores conservadores da Associação Brasileira de Psiquiatria embarcaram no barco da Reforma Psiquiátrica: nem todos estavam fazendo a mesma viagem.

Até quando ficaremos sujeitos aos humores dos que defendem com zelo o conservadorismo e o corporativismo de ontem e de hoje? Não é hora de surgir uma entidade que represente os trabalhadores de saúde mental comprometidos com a mudança do paradigma assistencial em saúde mental, capaz de enfrentar o desafio de estabelecer novos parâmetros na formação do médico psiquiatra?

Manaus, Agosto de 2006

Rogelio Casado, médico psiquiatra
Coordenador de Saúde Mental do Estado do Amazonas
E-mail: rogeliocasado@uol.com.br
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