PICICA - Blog do Rogelio Casado - "Uma palavra pode ter seu sentido e seu contrário, a língua não cessa de decidir de outra forma" (Charles Melman) PICICA - meninote, fedelho (Ceará). Coisa insignificante. Pessoa muito baixa; aquele que mete o bedelho onde não deve (Norte). Azar (dicionário do matuto). Alto lá! Para este blogueiro, na esteira de Melman, o piciqueiro é também aquele que usa o discurso como forma de resistência da vida.
setembro 03, 2006
Almoce seu "tipo inesquecível"
Nota: O texto abaixo faz parte dos artigos que venho escrevendo para a Coluna de Opinião do jornal Amazonas em Tempo, às quartas-feiras. Inicialmente, tinha como objetivo romper o longo silêncio que dominou a cena política no campo da Saúde Mental. Publicado em dezembro de 2004, a idéia era ajudar o leitor a identificar os tipos de personagens que atuavam no campo da Luta Antimanicomial, com uma advertência: nem todos estavam fazendo a mesma viagem. É o caso, como se verificou, recentemente, do presidente da ABP e seus pares.
Almoce seu "tipo inesquecível"
Enquanto prevalecer a dobradinha ambulatório e hospício no Amazonas, continuaremos distantes do novo cenário desenhado pela Reforma Psiquiátrica brasileira, fato comprovado pela criação de uma rede de serviços que substitue o manicômio há mais de treze anos por todo o país, e que ainda está por exigir recursos financeiros para a consolidação do atendimento às diversas demandas dos portadores de sofrimento psíquico.
É Benilton Bezerra Júnior, psicanalista, professor do Instituto de Medicina Social – UERJ, quem chama atenção, no primoroso artigo “A diversidade no campo psiquiátrico: pluralidade ou fragmentação?”, publicado pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para o campo minado dos ideais reformistas transformados em discurso oficial. Convém separar o joio do trigo.
O semblante e o discurso dos adeptos de última hora da Reforma Psiquiátrica guardam semelhanças, mas escondem práticas diferentes. Uma das nossas faculdades, por exemplo, ao criticar o modelo asilar tradicional, propôs uma mera reorganização do espaço físico hospitalar, transformando-o em hospital-escola modelo. Que mancada! O distanciamento do passado é mera aparência; no duro, no duro, nenhuma perspectiva de inserção da loucura na cultura contemporânea. Aos loucos, restam-lhes submeter-se ao controle do aparelho burocrático estatal. Nada a ver com Reforma Psiquiátrica, maninhos! Ao abandonar a riqueza da invenção, deu no que deu, caiu na esparrela da defesa do status quo. É de morrer de vergonha.
Sem querer reduzir, e já reduzindo, os tipos que giram em torno da luta antimanicomial, tem uns que acreditam, como indica Benilton Bezerra, que a Reforma Psiquiátrica não se resolve nunca. Sábias criaturas, estão sempre reinventando suas práticas, como se faz em qualquer relacionamento amoroso. Sabem tudo dos “hábitos estigmatizadores” e dos “efeitos iatrogênicos” do modelo manicomial tradicional, inclusive quando o atendimento se restringe ao ambulatório de consultas, esse modelito light que vem bem a calhar para a contenção química e ideológica da loucura. Esses tipos adotam postura sacerdotal através de uma crítica permanente, e, visando acolher a “experiência de sofrimento de sujeitos inseridos em contextos sócio-culturais diferentes”, utilizam inúmeras ferramentas para enfrentar os desafios do campo de atenção psicossocial. São criativos de dar inveja!
Um outro tipo da fauna psi, envolvida de uma forma ou de outra com a Reforma Psiquiátrica, veste roupagem científica e enfrenta o mal estar psíquico considerando secundárias as implicações sociais e os aspectos culturais do sofrimento humano. Estão aí as neurociências dando sustentação à psiquiatria biológica. Arrrgh! Sujeito que é bom nessa história, neca de pitibiriba! O obscurantismo do manicômio seria resolvido por substâncias que devem ser engolidas sem mastigar. Ora pílulas!
Finalmente, tem o tipo que “não fede, nem cheira”. Muda o discurso com resignação bovina, sem jamais fazer qualquer oposição porque não têm o que propor (é exemplar o atraso da Reforma Psiquiátrica no Amazonas). Múúúúúúúúú! Benilton Bezerra chama-os de burocratas do agir e do pensar, que costumam apropriar-se do vocabulário progressista e reformador. Sobrevivem graças ao que há de pior no modelo manicomial: “o veneno burocrático que transforma todo o humano em instrumento, todo o agente em máquina, todo o sujeito em objeto nas mãos do outro”. Valeu, Benilton! Você resumiu, num artigo de cinco páginas, o que a Academia amazonense não produziu como saber num decênio.
Nos rituais antropofágicos, degustam-se as vítimas para se apropriar de suas qualidades. Fosse promovido um banquete intitulado Almoce seu tipo inesquecível, qual deles você escolheria: os amorosos, os cosméticos ou os burocratas?
Manaus, Dezembro de 2002
Rogelio Casado, psiquiatra e psicoterapeuta
Integrante da Associação Amazonense do Campo de Atenção Psicossocial (que passou a denominar-se, a partir de 18 de maio de 2004, Associação Chico Inácio)
E-mail: rogeliocasado@uol.com.br
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