Foto: Tiago Barnabé - Astrid Lima e Andrea Palladino, agosto/2006
2006 - Ermanno Stradelli vive
Astrid Lima e Andrea Palladino levarão para a telinha um documentário sobre Ermanno Stradelli. Oitenta anos após a morte do conde, Stradelli está vivo. Reencarnou na pele de um querido amigo na vila de Paricatuba, uma das locações onde foram gravadas as cenas que em breve serão conhecidas na Europa.
Se der bobeira, o Brasil ficará mais uma vez sem ver o extraordinário trabalho desse casal de cineastas, como aconteceu com o seu recente L'Accqua Invisibile, um instigante documentário sobre a escandalosa privatização dos serviços de água no Amazonas. Até agora só quem viu foram os europeus. As assessorias dos candidatos ao governo do estado do Amazonas perderam uma excelente oportunidade de tornar o filme acessível ao povo que vive sem água nos bairros periféricos da cidade de Manaus.
Lembrei de Jorge Bodanski e Orlando Senna fugindo da censura da ditadura militar nos anos 70 - época do cinemanovismo -, levando para a Europa o seu Iracema, uma transa amazônica (1974) - filme que siderou as platéias, menos pela sua opção estética do que pelo conteúdo da realidade captada pelas lentes da câmera: a Amazônia paraense devastada pelo fogo. O filme foi co-produzido por uma TV alemã e ficou anos proibido no Brasil. Os documentários de Andrea e Astrid merecem outro destino, afinal não há sinais de golpe no ar e o país - dizque - só peca por ainda não ter uma democracia econômica plena.
Foi pela via do circuito alternativo que Iracema, misto de documentário e ficção, pode ser assistido pelos brasileiros. A prevalecer as forma modernas de controle de informação, taí a dica, meus queridos Andrea e Astrid. Resta saber se tais circuitos ainda existem.
Quem é Ermanno Stradelli?
Poeta? Literato? Advogado? Arqueólogo? Tudo isso e mais: doutor em direito, estudioso e intérprete das línguas e das culturas indígenas, antropólogo, explorador geográfico, cartógrafo, fotógrafo, consultor técnico para a definição das divisas do Brasil com os países vizinhos, colaborou com a diplomacia brasileira entre o final do século XIX e início do século XX, como afirma Riccardo Fontana em seu livro A Amazônia de Ermanno Stradelli, publicado neste ano de 2006, com direito a uma seleção de fotografias reduzidas da Amazônia brasileira, tiradas entre 1887 1889, pertecente ao Arquivo Fotográfico da Societá Geográfica Italiana de Roma.
A primeira vez que ouvi falar do conde Stradelli foi na peça de Márcio Souza Folias do Látex, primeiro texto de dramaturgia depois de um ciclo de teatro indígena que, paradoxalmente, por sofrer tanta intervenção da censura do período militarista do regime de 1964, fez o grupo TESC (Teatro Experimental do Sesc) desembocar numa trilha de encenações de caráter histórico. Iniciava-se aí a criação de espetáculos sobre o ciclo da borracha, até então jamais problematizado no Amazonas. Márcio advertiu que ao conceber um vaudeville sobre o ciclo da borracha, sem nenhum tom conciliador, e francamente crítico, "não se pode tomar este espetáculo como uma graciosa e irreverente aula de História do Amazonas, o que seria um truísmo provinciano mesmo em suas melhores intenções". A propósito, a peça reestréia com um belo elenco nos próximos dias deste mês de setembro. Confira. Nunca um texto de dramaturgia nos fez rir tanto da nossa desgraça, gerando um novo entendimento sobre as contradições da monocultura e jogo dos interesses internacionais na Amazônia. Na época, um tremendo impacto, com famílias tradicionais abandonando a platéia, batendo cadeiras, e um saldo positivo para a cultura amazonense: "passou-se a falar abertamente a respeito do assalto sofrido pelo Amazonas ao longo dos últimos anos de megalomania militar", ralata Márcio Souza em seu Palco Verde, editado pela Marco Zero.
Segundo Riccardo Fontana, Stradelli foi o primeiro explorador geográfico italiano a identificar, após quatro expedições, o curso do Rio Uaupés, afluente do rio Negro.Tal é a importância do Rio Uaupés, na cultura amazonense, que uma importante avenida do bairro da Cachoeirinha recebeu seu nome, antes do mau gosto da municipalidade em alterar a denominação dos logradouros que dão a identidade de uma cidade. Recife, Paraíba, Silves são ruas que ainda resistem no imaginário popular por teimosia dos manauaras, mas Uapés não é lembrada pelas novas gerações tal o zelo com que se resolveu homenagear o presidente militar Humberto Castelo Branco, que retirou do papel a Zona Franca de Manaus. Ainda que tenha criado um novo ciclo econômico para a Amazônia amazonense, com todo respeito à memória do falecido, um busto em praça pública estaria de bom tamanho. O prejuízo é mensurável: além de termos perdido a sonoridade da palavra Uaupés, perdemos, igualmente, o seu significado cultural. Às suas margens ainda hoje vivem 17 etnias: Arapaso, Bará, Barasana, Desana, Karapanã, Kubeo, Makuna, Mirity-tapuya, Pira-tapuya, Siriano, Tariana, Tukano, Tuyuca, Wanana, Tatuyo, Taiwano, Yuruti (as três últimas habitam só na Colômbia).
No texto de Márcio Souza, Stradelli está moribundo. Suas palavras soam como uma homenagem do autor ao personagem em seu trágico destino: "Ouçam! Não esqueçam nunca que esta Amazônia, a dos palacetes modernos, com suas mercadorias vistosas e de mau gosto e suas formas de governo importadas da Europa e que não evoluíram, deve ficar sempre estranha aos vossos espíritos. Esta Amazônia quer ser uma filial da cultura da Europa, mas parece uma caricatura. É a Amazônia da cachaça, do zinco e da violência. A vossa Amazônia deve ser a dos misteriosos desenhos sobre as pedras. Dos costumes que não ferem e da gente sábia que conhece estes rios como a criança que conhece o colo da própria mãe. Eu sei que isso vai se tornar cada vez mais difícil e que muitas mudança virão com a impressão de um passo adiante. Vejo que será cada vez mais difícil reconhecer a Amazônia. Não acredito que meus livros tenham uma importância chave para nortear a vossa procura, mas a minha humildade procurou sempre se igualar à humildade desse povo que emudece ou é emudecido. Muito obrigado, adeus..."
O autor de a Amazônia de Ermanno Stradelli informa que a saga de Stradelli foi objeto de uma expedição no ano de 1998, resultando num vídeo de Guido Boffa, com texto de Danilo Manera intitulado "Yurupari. Rito e dánza della memoria indígena" e um livro fotográfico de Graziano Bartolini, com texto de Danilo Manera, intitulado "Uaupés. Il fiume de stelle e la palma dellla música". Riccardo Fontana alerta: "no momento em que a Amazônia está nas crônicas dos jornais brasileiros e internacionais, enquanto cresce o tardio grito de alarme dos ambientalistas de toda a parte para salvá-la do impiedoso assédio dos convergentes interesses econômicos nacionais e estrangeiros, como soa suave e encorajadora a voz de Stradelli".
Que venha o filme de Astrid Lima e Andrea Palladino! De preferência acessível aos brasileiros.
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