PICICA - Blog do Rogelio Casado - "Uma palavra pode ter seu sentido e seu contrário, a língua não cessa de decidir de outra forma" (Charles Melman) PICICA - meninote, fedelho (Ceará). Coisa insignificante. Pessoa muito baixa; aquele que mete o bedelho onde não deve (Norte). Azar (dicionário do matuto). Alto lá! Para este blogueiro, na esteira de Melman, o piciqueiro é também aquele que usa o discurso como forma de resistência da vida.
setembro 18, 2006
“O fechamento dos hospícios é uma decisão equivocada”
Hospital psiquiátrico ou hospício? Os termos se equivalem? Tudo indica que, passados 26 anos de implantação da Reforma Psiquiátrica no Brasil, cada vez mais os termos foram tornando-se sinônimos? Ou devemos entender que houve um lapsus scribendi na manchete de A Crítica (Manaus- AM) na página 7 do Jornal da Família, no domingo, dia 17 de setembro de 2006, ao entrevistar um professor da Universidade de São Paulo?
“O fechamento dos hospícios é uma decisão equivocada”: manchete como esta tende a ser mais freqüente na mídia brasileira. Como não apostar no eventual interesse público despertado por um outro artigo - o do presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) -, publicado pelo jornal O Globo em julho de 2006, na qual só faltou ao escriba convocar uma guerra santa contra a Reforma Psiquiátrica brasileira, exortando a todos a zerá-la, em franco desrespeito às conquistas de um movimento social que colocou o Brasil entre as Reformas Psiquiátricas mais criativas do planeta, não obstante os 40 mil leitos que ainda restam para serem desativados, em todo o território nacional, dos 80 mil existentes no início dos anos 1980?
O bom jornalismo não deixará passar essa oportunidade. Rende espaço e vende jornal: uma combinação que serve a múltiplos interesses; de um lado o leitor, do outro a empresa jornalística; de um lado os militantes da luta antimanicomial, do outro empresários do setor psiquiátrico, praticantes da psiquiatria de consultório e conservadores da academia.
Considerando que os últimos são antagônicos, graças a Deus, e bem melhores que os reformistas de araque, que, ao deixar de defender a Reforma Psiquiátrica dos ataques dos conservadores, convivem com uma espantosa omissão sem ruborizar a face, detenho-me sobre os dois primeiros. Da empresa jornalística espera-se que ela se paute pela ética da empresa cidadã, ou seja, em sintonia fina com a responsabilidade social para com os diversos segmentos da sociedade com quem ela mantém relacionamento. Ao leitor bem (in)formado, seu desejo é por uma ética baseada num princípio fundamental, como aprendemos com Alberto Dines: “imprensa é serviço público, deve ser avaliada permanentemente”.
Escrito isto, reafirmo o entendimento de que o papel da mídia é decisivo para a inserção social dos portadores de sofrimento mental na cultura dos nossos tempos, se ela compreender que o modelo de atenção à saúde mental baseado no hospital psiquiátrico e seus ambulatórios de consultas – diante dos dispositivos conhecidos como centros de atenção psicossocial e seus projetos terapêuticos comprometidos com um outro cotidiano dos usuários, sem o flagelo do ócio químico – tornou-se, decididamente, um modelo anacrônico, sendo os seus defensores o que há de mais conservador na psiquiatria brasileira. Não é à toa que o hospital psiquiátrico é conhecido entre os manauaras como hospício. Mesmo aqui, onde a implantação dos serviços que substituem o hospital psiquiátrico demorou a chegar, por uma surpreendente omissão governamental e não governamental nos últimos 16 anos, sem medo de errar: o hospício é um modelo com validade vencida.
O Jornal da Família ao usar como manchete uma expressão que seguramente o entrevistado Hélio Elkis não declinou, dada a natureza da sua formação, contribuiu, ao menos, para por em evidência o poder da carga semântica da palavra hospício, bem como a identidade dos defensores de uma modalidade travestida por suposta humanização: o hospital psiquiátrico. Mas é no conteúdo da entrevista que surge o mais importante: a tese que sustenta, “mudernamente”, o hospício e seus ambulatórios. Com mestrado e doutorado em medicina psiquiátrica pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela Case Western Reserve University e pela University of London, Hélio Elkis, na esteira do artigo do presidente da ABP, não se fez de rogado: “Não está claro para a sociedade que a doença mental é um distúrbio do cérebro, da mesma forma que o diabetes é um distúrbio do pâncreas”. Eis aqui a sacralização do cérebro em detrimento do sujeito e seus desejos - sujeito que habita cada um de nós -, ao melhor estilo do discurso universitário.
Considerando que vivemos numa civilização científica, não é de espantar que a tendência da psiquiatria, pegando carona das neurociências, seja a de manifestar ardente interesse na criação de uma nova mitologia cerebral. Para o psiquiatra e psicanalista Antônio Quinet, afirmar que vivemos numa civilização científica significa dizer que o mal-estar de hoje só poderia se expressar na doença dos discursos. É o caso. Ora, se tais doenças são oriundas do discurso capitalista, em que modalidade se enquadra o discurso do professor Hélio Elkis? E como ela incidirá na relação médico-paciente em suas diferentes modalidades de laço social?
Acompanhemos o Antônio Quinet, no artigo A psiquiatria e sua ciência nos discursos da contemporaneidade, publicado em Psicanálise e Psiquiatria – controvérsias e convergências, Editora Rios Ambiciosos, Rio de Janeiro, 2001, em uma discrição caricatural (sic) da relação médico-paciente e suas modalidades de laço social: “quando o médico manda e o paciente obedece (no caso da prescrição de um remédio), estamos diante do discurso do mestre; quando o médico ensina (ou convence) o que a psiquiatria tem a dizer sobre o caso, ele se encontra no discurso da universidade; quando o médico cala e faz o paciente segredar aquilo que ele nem mesmo sabia que sabia, emerge o discurso do analista; e, por fim, quando o médico se vê impulsionado a se deter, a estudar e a escrever para produzir um saber provocado pelo caso de um paciente, surge o discurso histérico (não se refere à neurose do mesmo nome, mas sim à forma de relacionamento humano em que um provoca no outro o desejo e a criação de um saber)”.
O problema é saber que verdades sustentam os laços sociais expressos no discurso da universidade e no discurso do mestre, predominantemente oriundas do discurso do capitalismo. Todo cuidado é pouco com a ciência, para alguns uma nova modalidade de discurso do mestre. Todo cuidado é pouco com o discurso que suprime a função do sujeito, posto que não há clínica dessubjetivada. Para Quinet essa é a diferença fundamental entre a psicanálise e a prática normativa da psiquiatria serva do capital.
Por essa e por outras, fique atento toda vez que ler frases como essa contida na entrevista do professor da USP: “É muito comum, por exemplo, quando alguém tem depressão dizer-se que a pessoa precisa se animar, que precisa reagir, ter coragem. É a mesma coisa que dizer para alguém que teve infarto do miocárdio sair da cama e tentar correr. O que falta não é vontade, ou coragem, mas sim serotonina, que é uma substância diminuída no cérebro de pacientes deprimidos. O uso de antidepressivos repõe os níveis de serotonina e a pessoa melhora e consegue reagir”. Eis aí o desenvolvimento das neurociências e da psicofarmacologia se prestando ao discurso capitalista. Ocorre que quem conhece o universo das pesquisas sabe que ali não impera propriamente um ambiente de camaradagem e solidariedade social. Aí são comuns a degradação dos laços sociais em prol do discurso do mestre capitalista na área do saber. É principalmente na universidade que se recrutam os porta-vozes das drogas que irão enfrentar os novos males decorrentes das mudanças da sociedade. Trocando em miúdos: como dizem os italianos, sem vintém cego não canta. É o caso. Uma poderosa indústria fomenta um rendoso negócio, através de um biliardária rede de propaganda. Assujeitar-se ao discurso universitário, ou ao discurso capitalista, ninguém merece!
O psiquiatra e psicanalista Jurandir Freire Costa faz uma severa advertência em sua crítica à definição genética ou neuroquímica de predicados psíquicos. Para ele, os maiores interessados nesse discurso são os laboratórios e defensores dessa posição, num país que ainda detém um grande parque de leitos psiquiátricos privados. No artigo As éticas da psiquiatria, publicado em Ética e Saúde Mental pela Editora Topbooks, Rio de Janeiro, 1996, declara, curto e grosso: “O sofisma, o procedimento estúpido, diante de qualquer reflexão, é patente. Depressão não existe por causa de serotonina nenhuma. Serotonina não causa depressão. Serotonina provoca alterações em circuitos sinápticos. Serotonina é simplesmente um nome dado a um certo tipo de funcionamento neurológico. Quem diz que aquilo é responsável pela depressão são os valores morais que estão de acordo em dizer que tal ou qual estado ou predicado psíquicos são ruins porque nos fazem sofrer”.
Por fim, Jurandir Freire Costa arremata: “Não é buscando ou alternando sistematicamente nosso modo perceptivo de olhar para as coisas, e cada vez mais tentando definir nossos predicados morais como tendo causas físicas, que iremos chegar a algum lugar moralmente desejável. Nós aprendemos o que é sofrimento e o que é alegria. Nós aprendemos que certas coisas nos fazem sofrer e outras não, e em função disso vamos buscar os remédios que podem, aí então, ser extraídos da prática científica propriamente dita. Da mesma forma, explicar predicados morais por códigos genéticos ou marcadores biológicos é a coisa mais estúpida que existe”. Assino em baixo.
Antônio Quinet nasceu no Rio de Janeiro, onde se formou e se especializou em psiquiatria na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 1979 foi para Paris onde testemunhou a dissolução por Lacan da École Freudienne de Paris e participou, desde o início, da École de la Cause Freudienne, na qual realizou sua formação psicanalítica e da qual se tornou membro. Trabalhou em diversos hospitais psiquiátricos em Paris, obtendo o título francês de psiquiatria pela Faculté de Médicine de l’Université Paris-Sud. Foi professor-assistente do Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII (Vincennes), universidade pela qual é doutor em filosofia. Autor, entre outros, dos livros: A descoberta do inconsciente, Psicose e laço social, Um olhar a mais.
Jurandir Freire Costa nasceu em Pernambuco. É médico e psicanalista, com mestrado em etnopsiquiatria pela École Pratique des Hautes Études de Paris. É professor do Instituto de Medicina Social da UERJ. É autor de pelo vários clássicos, entre eles História da psiquiatria no Brasil, Ordem médica e norma familiar, A inocência e o Vício, A face o verso, A ética no espelho da cultura.
Conclusão: há academias e academias nesse mundo-de-meu-deus.
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