setembro 12, 2010

O Chile faz dos mineiros heróis, enquanto massacra os indígenas mapuches. Allende vive!

cjeusp | 26 de março de 2010
Documentário "Pela Razão ou Pela Força", do aluno Dennis Barbosa, do CJE-ECA da USP.

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Allende não se rende, merda!

Por Dennis Barbosa
[18 de novembro de 2008 - 12h48]
Àquela altura, ele já devia saber que dificilmente sairia vivo se caísse nas mãos dos militares. Após mais de quatro horas sob tiros, gás lacrimogêneo e bombardeios, o líder manda que todos dentro de La Moneda formem uma fila para se entregar em uma porta lateral do edifício. Primeiro, levam uma bandeira e tentam sair pela porta da rua Morandé. Mas são disparadas rajadas de metralhadora e todos se atiram ao solo. Ainda assim, insistem, empurram a porta e saem. A fila subia pela escada desde a porta da Morandé até o segundo andar e seguia até atrás, por um corredor que dava nos refeitórios. O presidente começou a se despedir de todos. Dava a mão, agradecia e, por fim, entrou num pequeno salão ao final da fila. Ali, disse a si mesmo: “Allende não se rende, merda!”. Então sentou numa poltrona e disparou contra o queixo com a metralhadora.

Quem conta a história é Juan Seoane, chefe dos policiais civis que faziam a guarda pessoal de Salvador Allende e que resistiu junto com ele em La Moneda, no que foi um dos episódios mais emblemáticos da história da esquerda latino-americana. O dia era 11 de setembro de 1973 – há 30 anos, portanto – e o edifício estava cercado por forças golpistas sob o comando do general Augusto Pinochet. Dentro dele resistiam a tiros e bombardeio aéreo cerca de 50 pessoas próximas ao presidente, numa tentativa inútil de salvar a experiência da “via chilena ao socialismo, regada a vinho tinto e empanadas”, como gostava de dizer Allende.

O caso do Chile é extraordinário: três anos antes, por meio de eleição, uma coalizão heterogênea chamada Unidade Popular (UP) chegara ao poder com a proposta de implantar o socialismo. Abria-se caminho para uma revolução dentro da lei e do regime democrático. Em 4 de setembro de 1970, os chilenos tinham ido às urnas e Allende saíra vencedor com 36,3%, uma margem apertada sobre os 34,9% do direitista Jorge Alessandri (Partido Nacional) e dos 27,8% do democrata-cristão Radomiro Tomic. Isso é um bom exemplo de como o eleitorado estava cindido. O candidato socialista conseguira ser o mais votado graças a um forte trabalho de articulação dos setores de esquerda. A UP era a expressão de um nível de conscientização política incomum para o proletariado de um país subdesenvolvido como o Chile.

A lei chilena previa que, em não havendo concorrente com maioria absoluta, o Congresso escolheria entre os dois candidatos mais votados. A Democracia Cristã, que ficara de fora do segundo turno indireto, decide votar em Allende depois que este assume um acordo de garantias constitucionais. De posição centrista, a DC queria ter certeza de que as leis seriam cumpridas – o que, de certa forma, garantia que uma revolução não poderia ocorrer.

De fato, as propostas da UP suscitavam dúvidas quanto à possibilidade de se fazer transformações tão profundas respeitando uma constituição burguesa. Sua carta de 40 medidas feita para a eleição de 1970 incluía, por exemplo, a ruptura total com o Fundo Monetário Internacional e sanções drásticas contra a especulação e o delito econômico.

Dentro da própria esquerda houve amplos setores que, duvidando da via reformista, defenderam a revolução armada. “Nós éramos deputados amigos do presidente e nos chamavam de ‘barrigudos’, porque dizíamos como Allende, ‘damos um passo e o consolidamos, e, quando esse passo estiver consolidado, damos o outro’. Ou seja, não queríamos apressar nada. Mas havia muitos companheiros, muita juventude, muita gente que queria apressar o processo”, recorda Carmen Lazo, que confirma, no entanto, que mesmo os reformistas tinham o objetivo de, em alguns anos, extinguir o setor privado da economia.

Em princípio, o governo tinha uma proposta relativamente comedida de estatização de empresas. Mas, com o tempo, militantes mais radicais e operários começaram a tomar fábricas e exigir suas desapropriações. “Allende entrou num processo incontrolável. Chegou a nacionalizar fábrica de sorvetes”, comenta o jornalista brasileiro Newton Carlos, que acompanhou a trajetória da UP como correspondente da Folha de S. Paulo.

Sem descumprir leis, a UP fez transformações espantosas. Apenas dois meses após assumir, o “companheiro presidente” iniciou a estatização dos bancos. No mês seguinte, em fevereiro de 1971, deu início a um processo de reforma agrária que aprofundava consideravelmente o avanço que já havia feito seu antecessor, o democrata-cristão Eduardo Frei Montalva. “Em seis anos, Frei desapropriou 1.400 propriedades e, em três, Allende desapropriou mais de 4.000”, aponta Sergio Gomez, professor de História da Universidade Austral do Chile. “O que pretendia o governo de Frei era desapropriar o latifúndio improdutivo, estrutura agrária tradicional considerada economicamente ineficiente e socialmente injusta. Com Allende, havia um viés mais político, e o que se queria fazer era acabar com uma estrutura e com um grupo social. E essa estrutura não era só o latifúndio, mas também a grande burguesia agrária”. Pela lei do governo popular, seria desapropriada toda propriedade com mais de 80 hectares de irrigação básica.

O fato de que a Democracia Cristã já havia iniciado a reforma agrária nos anos 60 demonstra que até setores mais conservadores haviam aceitado a necessidade de dar alguma solução à massa camponesa marginalizada. A ampla reforma empreendida pela UP não só beneficiou os camponeses comuns como ajudou a aliviar também o grave problema dos índios. Desde a chegada dos colonizadores espanhóis, nações indígenas como a dos mapuches, povo historicamente conhecido como bravo e guerreiro, foram condenadas à miséria. A distribuição de terras era tão necessária e justa que mesmo Pinochet, quando tomou o poder e começou a reverter o processo de socialização da economia, manteve parte da reforma da UP, porque teve clara sua função redutora de tensões no campo.

A ação norte-americana Outra questão econômica importantíssima no Chile dos anos 70 foi a dos recursos minerais. “No governo de Allende, nós conseguimos fazer a nacionalização do cobre. E isso era um triunfo muito grande para o povo chileno porque, nessa época, o cobre era a viga-mestra da economia do país”, conta Carmen. A exemplo da estatização dos bancos, a nacionalização dos recursos minerais (em especial do cobre, que equivalia a 80% das exportações chilenas) bateu de frente com corporações transnacionais. A situação ficou ainda mais tensa quando o governo chegou à conclusão de que não indenizaria as companhias estrangeiras que controlavam as minas porque elas haviam obtido ganhos excessivos sobre uma riqueza natural que, em última análise, era patrimônio de todos os chilenos.

O aspecto do lucro excessivo pode ser comprovado facilmente com dados da época. A norte-americana Kennecot Copper Corporation, que explorava El Teniente, a maior mina subterrânea de cobre do mundo, tinha 13,16% de seus investimentos globais no Chile, mas conseguia 21,37% dos lucros no país. O desafio às grandes transnacionais custaria caro à UP. A Kennecot, junto com outras empresas como a ITT (companhia da área de telecomunicações que detinha 70% das ações da telefônica chilena Chitelco, na qual Allende interveio um mês após chegar ao poder) recorreu à agência norte-americana de inteligência para intervir no Chile. “Hoje se sabe que a ação da CIA foi muito mais profunda do que se pensava na época, desde antes das eleições de 1970”, aponta Newton Carlos. A participação da agência se dava das mais diversas maneiras, desde a concessão de financiamentos para a oposição até auxílio técnico para grupos terroristas como Patria y Libertad, organização de inspiração fascista liderada pelo advogado Pablo Rodriguez, que hoje trabalha normalmente em Santiago.

Em dezembro de 1972, Allende, em pronunciamento na Assembléia Geral da ONU, em Nova Iorque, denunciava que seu país era vítima de conspiração internacional e cita nominalmente a Kennecot e a ITT como participantes ativas na subversão de seu governo. Com o boicote das indústrias, do comércio e das transportadoras, tornou-se muito grave o problema do desabastecimento de produtos básicos no mercado. Ainda assim, o apoio nas classes baixas crescia graças aos avanços das reformas sociais, o que se torna claro nas votações seguintes à presidencial de 1970. Em abril de 1971, a UP obteve 50,25% do total de votos em eleições municipais. Em março de 1973, apesar da grave crise de desabastecimento provocada pela direita, a frente obteve 43,29% dos votos, aumentando sua representação parlamentar.

Aquele pleito foi decisivo porque frustrou a última esperança dos setores conservadores de tirarem Allende do poder constitucionalmente. Eles precisavam de mais duas cadeiras no Senado para que pudessem mover uma acusação contra ele. Contudo, tiveram a bancada reduzida e passaram a articular o golpe de Estado.

No dia 29 de junho de 1973, alguns tanques cercaram o palácio La Moneda exigindo a renúncia do presidente, em episódio que ficou conhecido como “tancazo”. Ao ver apenas aquele pequeno grupo de militares tentando derrubar um governo, se poderia concluir que era uma iniciativa patética, dado que foi facilmente controlada pelos setores legalistas das Forças Armadas, lideradas pelo general Carlos Prats, o então comandante-em-chefe. Contudo, a operação serviu para que os golpistas observassem toda a estratégia de defesa da UP, o que lhes permitiria agir de forma certeira no 11 de setembro.

Neste mesmo dia 29 de junho, centenas de milhares de pessoas se reuniram diante da sede presidencial para manifestar apoio a Allende. Essa e outras gigantescas manifestações, mesmo em duras épocas de crise, mostravam o envolvimento da classe trabalhadora. Por maior que fossem as dificuldades, grande parte das pessoas via o governo popular como legítimo representante de seus interesses. Medidas como o aumento de salários, o fornecimento de meio litro de leite por dia a cada criança ou o reconhecimento das empregadas domésticas como trabalhadoras com direitos, entre outras, tinham forte impacto numa população acostumada a governos defensores somente dos interesses das elites.

A situação do país era tensa e havia consciência por parte do governo de que setores das Forças Armadas iriam tentar um golpe. Contudo, não houve preparação para uma resistência. “Não podíamos acreditar que neste país, que vivia em paz, que tinha um presidente democraticamente eleito, poderia ocorrer uma coisa como essa”, confessa a ex-deputada Carmen Lazo. Ela revela que o golpe foi possível em grande medida porque o governo, com a intenção de evitar uma guerra civil, fez vistas grossas à sanha golpista dos setores conservadores.

Allende, em especial, era muito preocupado com a possibilidade de um banho de sangue. Quando soube que o golpe efetivamente estava em andamento, correu para La Moneda e pediu por rádio que a população não reagisse. Sabia que muita gente estaria disposta a sair às ruas, mas tinha consciência de que isso resultaria num massacre.

“No dia 10 de setembro cheguei tarde em casa e na manhã do dia 11 me despertaram pelas 6h30, 7h. Era uma chamada da residência presidencial dizendo que havia ocorrido um movimento da Marinha em Valparaiso e que o presidente se trasladava para La Moneda”, relembra Juan Seoane.

Seoane lembra que, ao contrário do que parece hoje, Pinochet não foi o mentor da intentona. “Somente no domingo, dia 10 de setembro, vão à sua casa e o comprometem no golpe. Ele, ao ver que a Força Aérea, a Marinha e os Carabineros (corporação equivalente à Polícia Militar brasileira) estão a favor e vão dá-lo, resolve aderir.” O general era comandante-em-chefe das Forças Armadas e, ainda no dia do golpe, Allende pensava que lhe era fiel. Não imaginava que no dia anterior havia mudado de lado.

De um lugar isolado na cordilheira que cerca Santiago, o futuro ditador comandava a Junta Militar de Governo que se formara para derrubar o governo popular. Uma gravação da comunicação por rádio do comando golpista, trazida a público anos depois, mostra sua irritação com o fato de um pequeno grupo tentar resistir em La Moneda mesmo com quase todo o país já sob controle. Oferece um avião para que Allende saia do país. “E o avião cai enquanto está voando”, diz aos risos o almirante que intermedeia as negociações de rendição com o palácio presidencial. Allende não se rendeu e até hoje o Chile colhe os frutos de diversas medidas de ampliação da rede social e de democratização tomadas em seu governo. E o líder chileno permanece como referência para a esquerda da América Latina. Tanto nas razões de seu sucesso, como de seu fracasso.

Dennis Barbosa (adler@intercall.com.br) esteve no Chile e produziu um vídeo Pela razão ou pela força. Caso haja interesse em veicular o trabalho em universidades, escolas, sindicatos e ONGs, basta entrar em contato com a redação da Fórum.

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