novembro 19, 2014

"A bíblia é um livro negro de hermenêutica branca", por Ronilson Pacheco

PICICA: "A estranheza diante de uma proposta de Teologia Negra ou Feminista, só evidencia nossa dificuldade em lidar com a diversidade que a bíblia contém, mas é invisibilizada. Estranho mesmo é imaginar que a bíblia tenha sobrevivido por tantos séculos como um livro realmente diferente de qualquer outro, no que diz respeito a sua relação com a historicidade. Dela ocultou-se o conflito, os embates, a crítica social, a denúncia da exploração, a sexualidade, a sensualidade, o racismo, o estigma. Mais fabuloso que um mar que se abre e um homem que é engolido por um grande peixe, é a narrativa de personagens a-históricos, sem contexto, como que incontextualizáveis, sem dramas pessoais, desprovidos de dramas humanos, envolvidos em grandes feitos atravessados pelos fenômenos maravilhosos, mas não envolvidos nos feitos do dia a dia (a traição, a sedução, a disputa de poder, o nepotismo, a tradição, a artimanha, a capacidade de mentir e enganar, a expectativa, a frustração, a solidariedade, a honra, a ética)."

A bíblia é um livro negro de hermenêutica branca


Por Ronilso Pacheco


A bíblia é um livro negro de hermenêutica branca

“Sou negro, realizo uma fusão total com o mundo, uma compreensão simpática com a terra, uma perda do meu eu no centro do cosmos: o branco, por mais inteligente que seja, não poderá compreender Armstrong e os cânticos do Congo. Se sou negro não é por causa de uma maldição, mas porque, tendo estendido minha pele, pude captar todos os eflúvios
cósmicos. Eu sou verdadeiramente uma gota de sol sob a terra...”
 
Frantz Fanon, em “Pele negra, Máscara branca” (1)

A bíblia sempre foi, e continua sendo, um livro em disputa. Nada surpreendente, em se tratando de um livro que dita em definitivo as regras, estabelece a “normalidade”, ou a “normatividade”, de toda uma civilização. Um livro, uma narrativa, com esse poder, não pode pertencer a um povo marginal, ele deverá ser universal, e para ser universal ele deve ser lido a partir da construção hegemônica. Talvez por isso todas as suas histórias são lidas quase que unilateralmente ou para exemplificar, esclarecer, o relacionamento com Deus, ou para tratar do relacionamento com o outro, com a igreja e com o mundo (como um cristão deve agir). A hermenêutica hegemônica não permite a leitura biopolítica da bíblia. Nela não se enxerga o controle social, o governo dos corpos, o exercício do poder sobre o cotidiano, o uso da força produtiva do cidadão comum, os pobres da cidade. Da mesma forma, nela também não se permite a racialização da leitura. A “lupa racial” foi quebrada, antes mesmo que pudesse ser usada.

A estranheza diante de uma proposta de Teologia Negra ou Feminista, só evidencia nossa dificuldade em lidar com a diversidade que a bíblia contém, mas é invisibilizada. Estranho mesmo é imaginar que a bíblia tenha sobrevivido por tantos séculos como um livro realmente diferente de qualquer outro, no que diz respeito a sua relação com a historicidade. Dela ocultou-se o conflito, os embates, a crítica social, a denúncia da exploração, a sexualidade, a sensualidade, o racismo, o estigma. Mais fabuloso que um mar que se abre e um homem que é engolido por um grande peixe, é a narrativa de personagens a-históricos, sem contexto, como que incontextualizáveis, sem dramas pessoais, desprovidos de dramas humanos, envolvidos em grandes feitos atravessados pelos fenômenos maravilhosos, mas não envolvidos nos feitos do dia a dia (a traição, a sedução, a disputa de poder, o nepotismo, a tradição, a artimanha, a capacidade de mentir e enganar, a expectativa, a frustração, a solidariedade, a honra, a ética).


Os conflitos raciais foram, na melhor das hipóteses, negligenciados da hermenêutica hegemônica. Nenhum esforço para evidenciar que o conflito narrado no capítulo 12 do livro de Números é marcado pelo racismo. Miriã e Arão se indignam com a escolha de Moisés por uma mulher preta. É preta no hebraico, e traduzida apenas como “etíope”, cuxita (Nm 12.1-9). E é muito provável que é pelo receio da hostilidade por ser preta que a amada no livro dos Cânticos pede para que seu amado não atente para isso, ou seja, para o fato dela ser preta (Ct 1.5, 6). O profeta Jeremias é salvo por intervenção de um subalterno, eunuco, preto (Jr 38.7, 8), serviçal no reino, que ousa apelar ao rei para ajudar o profeta. Mas é invisível a condição de eunuco dos etíopes, uma dupla condição de subalterno e também de supressão de sua sexualidade, a não exposição das mulheres do reino branco à sexualidade preta. O etíope, escravo, eunuco, preto no reino branco, podia gozar da “boa vivência” no palácio (como nossas domésticas que “são como se fossem da família”). Mas a pergunta permanece: pode o etíope mudar a cor de sua pele (Jr. 13.23)? O eunuco etíope é “o mordomo da Casa Branca”. A revelia de sua máscara branca, sua pele é preta. A estes, precarizados na sua condição subalterna, “assexuados” num mundo sexuado, Deus nega a invisibilidade, com eles se preocupa, e lembra em promessas (Is 56.4, 5). Nada disso foi problematizado na hermenêutica hegemônica. E nossos seminários mantém a cartilha.


E segue o nosso povo tateando a bíblia como um livro em que todas as histórias orientam na direção de como crentes devem ser no mundo, na igreja e com Deus, sem nenhum atravessamento histórico, sem diálogo com nossos dramas estruturais. Talvez isso tenha influenciado o questionamento que James Cone diz ter feito a si mesmo:


“Qual a conexão entre vida e teologia? A resposta não pode ser a mesma para brancos e negros, porque brancos e negros não participam da mesma vida. A vida de um escravo negro e a vida de um senhor de escravos eram radicalmente diferentes”.


É verdade. Tudo isso faz da bíblia um livro muito mais de histórias “negras”. Ela contém a trajetória de um povo sofrido, hostilizado, que é liberto da condição de escravo. Um povo que perde tudo, que é vilipendiado e transita entre o cativeiro e a adaptação num mundo que vai trocando de império dominante.


O Deus encarnado subverte a expectativa do poder e entra no mundo pela “porta dos fundos”. Ninguém acredita num Deus que vem pobre, de cidade periférica, de um pai carpinteiro, num contexto de vulnerabilidade e em que o contexto social é dominado pelo embate político religioso. Há fundamentalistas, legalistas, radicais subversivos, políticos profissionais, territórios ocupados política e militarmente; seus seguidores são pobres, sem crédito, sem influências, subempregados, desempregados e alguns mais estáveis; precisa “subverter” a Lei para tensionar a sua ressignificação (o que era o seu verdadeiro sentido), tornando-a acessível aos que por ela só eram sobrecarregados, controlados, escravizados e punidos; que morre e sofre, não uma morte simples, mas de pária, mais vil, injustamente surrado, torturado, requintes de crueldade; contudo ele vence, e todos estes venceram nele. Por isso, a história bíblica é negra, é mulher, é indígena, é africana, é latina. Mas, não obstante, a hermenêutica ainda é europeia. É branca. Ao menos um mês no ano, leiamos esta história diferente.


Notas

(1) FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008. Ver em http://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/05/Frantz_Fanon_Pele_negra_mascaras_brancas.pdf

 


Ronilso Pacheco
Ronilso Pacheco
 
Ronilso Pacheco é de São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Estuda Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio, integra a RENAS-Rio, afiliada da Rede Evangélica Nacional de Ação Social, o Congresso Nacional Underground Cristão (CNUC). É pesquisador no Programa de Iniciação Científica da PUC-Rio (Ética e Alteridade) e congrega na Comunidade Cristã S8 Rio. Interlocutor para as igrejas na Ong Viva Rio.

Fonte: Novos Diálogos

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