PICICA: "Seria toda revolução uma aurora? Oswald de Andrade, Um homem sem profissão"
A revolução e a aurora
Um almirante negro, uma peça-cortejo encenada no Rio
e um poeta sugerem refletir sobre valor das “cheganças”, na tradição
popular e na História
Por Theotonio de Paiva
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Assista à peça:
Chegança do almirante negro na pequena África
23 de novembro de 2014, às 17h no Cais do Valongo Zona Portuária do Rio de Janeiro – RJ –
23 de novembro de 2014, às 17h no Cais do Valongo Zona Portuária do Rio de Janeiro – RJ –
Seria toda revolução uma aurora?
Oswald de Andrade, Um homem sem profissão
Oswald de Andrade, Um homem sem profissão
Ao longe, vemos se aproximar um grande cortejo. São
atores, bailarinos, músicos, que surgem da direção do cais. São tantos
que a vista se perde em contar. Em seus passos cadenciados, embalados
por uma velha melodia, atravessam uma larga via expressa. Talvez nos
queiram dizer que aquela caminhada começou nos desvãos do mundo. No
alto, trazem um caixão envolto com a bandeira do Brasil. Parece
tratar-se de um herói. Mas que herói seria esse que entidades míticas
reverenciam dessa maneira, a ponto de virem à frente, abrindo os
caminhos?
O destino do teatro é andar. Assim, muitos se erguem às
alturas, caminhando em pernas de pau, equilibristas de um destino, como
os gigantes das velhas fábulas. Observados mais de perto, julgamos, pela
doçura dos seus olhares, dos seus meneios, que, ao trazerem costumes
religiosos antiquíssimos, aliados às fontes pagãs, não reverenciam uma
personagem qualquer.
E isso nos faz pensar que também o tempo é outro e
precisa ser mais bem compreendido, pois se divide em diversas
possibilidades e criações. Desse modo, na narrativa da Chegança do Almirante Negro no Mar da Pequena África, sobressai de imediato o tempo da celebração.
Dança dramática revisitada pela Grande Companhia Brasileira de Mysterios e Novidades,
sob a direção de Ligia Veiga, numa dramaturgia a partir de textos da
diretora em parceira com Edmilson Santini, espetacularmente a ela se une
um outro tempo, aquele da história concreta.
O primeiro é um tempo arcaico, ao passo que, no último,
estamos distantes apenas de um século, num Rio de Janeiro, capital do
país na época, que se transformava rapidamente. E é por aí que o sagrado
e o profano se entrelaçam.
Naqueles primeiros anos de uma era dos extremos, a
cidade, capital de uma jovem república, tendo dobrado a sua população na
década anterior, contabilizava a marca de um milhão de habitantes. O
impacto disso no papel a que se destinava o Rio de Janeiro irá se
potencializar com as obras da reforma do porto e a construção do cais.
E essa ação não acontecia de forma a levar em
consideração os interesses de amplos setores da população, sobretudo das
classes subjugadas. Muito ao contrário. E se dava a conhecer através
dos morros arrasados, das avenidas cortadas para darem vez somente aos
moços e moças bem trajados da belle époque, pela destruição de abrigos e casas populares, curiosamente no suporte da lei que constrangia cidadãos.
Essa calculada ação do Estado, que ficou conhecida como
bota-abaixo, foi ordenada a partir de um conceito visando a implantação
do progresso e da civilização em termos definitivos. Se quisermos
entender um pouco mais o que estava acontecendo, precisaremos levar em
consideração o processo que as regiões periféricas ao desenvolvimento
industrial iriam experimentar, num quadro que consagrava a hegemonia
europeia por todo o planeta.
Assim, ao se transformar numa capital que se queria
majestosa, com ares parisienses, abandonando os antigos contornos
mouriscos, herdados da cultura ibérica, a cidade, inconsequentemente,
via seus filhos serem expulsos do seu próprio mundo.
Num contraponto a esse estado de coisas, curiosamente se
ergue o cortejo na antiga porta de entrada da cidade. Exatamente ali,
naquele trecho da nossa costa, onde os navios estrangeiros outrora
atracavam e despejavam levas de homens e mulheres d’outras terras.
Interessante lembrar que foi exatamente essa condição uma das armas de
convencimento para a grande transformação urbanística daqueles primeiros
anos.
Encenado numa tarde de outono, num domingo, na antiga Praça Mauá, em frente ao Museu de Arte do Rio – MAR, a Chegança do Almirante Negro
deixa claro que irá nos revelar, melhor, tirar o véu das nossas
sabenças confusas e mais estupidamente imediatas. E é aí, quando aquela
rude pergunta repousa de novo: quem é esse almirante negro? Talvez fosse
melhor começar sabendo o que ele não é.
Estamos distantes daquelas figuras que, num passado não
muito remoto, rapidamente se transformavam em efígies de poderosos,
lambidas pelos dedos infantis nas páginas dos livros escolares. Nada de
presidentes engalanados, donos da pátria, acadêmicos, marechais de
ferro, poetas de sobrecasaca, ou heróicos bandeirantes que se
glorificaram em “adquirir o tapuia gentio-brabo e comedor de carne
humana”. Nada disso encontraremos nas vestes brancas de um estranho
chamado João. A bem da verdade, a imagem do herói é cerzida no manto de
uma fidalguia popular.
E o espanto que nos faz admirar tão velha criação
humana, em parte, se dá por conta dos seus realizadores tomarem para si o
papel de presentificar o mito, numa vasta e portentosa
celebração/representação. E, assim, na sua alegria descomunal, acenam
todos aqueles marujos de araque, dando vivas como quem re-apresenta
o que poderia ter sido e não foi. Orgulhosos de si e da fantasia que
expulsam do ventre. Nela, veremos, adernando em navios espetaculares, o
episódio da Revolta da Chibata e de seu líder João Cândido Felisberto, o
almirante negro.
Trata-se, provavelmente, de um dos movimentos políticos
mais significativos da era moderna do Brasil. Como se sabe, a Revolta
foi organizada por militares da Marinha do Brasil, cujo planejamento,
por cerca de dois anos, viria a explodir num intenso motim, durante a
semana de 22 a 27 de novembro de 1910, na baía de Guanabara, no Rio de
Janeiro. Fundamentalmente, ocorre numa reação aos intensos castigos
corporais e ao oferecimento forçado do consumo de carne podre a que eram
submetidos os marujos.
Não é difícil entrever, nesse quadro, uma espécie de
renitência dos tempos do escravismo. Curiosamente, o escritor Oswald de
Andrade, uma das mais expressivas testemunhas daquela revolta, irá
comparar, em seu livro de memórias, Um homem sem profissão, a experiência narrada no filme Encouraçado Potemkim, de Sergei Eisenstein, às reivindicações dos marujos brasileiros. Vamos lá.
Como se fossem pelos ares, em galopes de pernas de pau,
os atores e bailarinos criam embates, em danças e contradanças.
Igualmente pelo ar, os músicos plantados no chão fazem revoar uma antiga
toada dos marinheiros. Por anos seguidos, a canção fora associada a um
verde-amarelismo ufanista, espécie de devotamento cívico, que mascarava
dores e chibatas, quando não ostentava toda a sorte de opressão. No
entanto, agora, toma-se novamente gosto por ela. Como se a velha melodia
fosse devolvida aos seus legítimos senhores, duramente arrancada que
fora por mãos inábeis, para dela cuidar de forma perversa e molestá-la.
Isso talvez equivaleria a dizer que o nosso navio, ao menos numa vaga
esperança, também flutua.
Mais à frente, desce o corpo à terra. Se o almirante
está morto, é nesse momento que a sua história tem início. Contada por
bufões, que se desdobram em inúmeros atores-narradores, é essa
reinvenção que dará suporte ao mito, levando-nos a pensar naquela linha
tênue, a separar toda a fantasia da história, e retornando pela
imaginação em voos surpreendentes.
Mas, do quê exatamente eles falam? A chegança, que serve
de suporte à narrativa, ao invés de contar a história de mouros e
cristãos, como versa a tradição dos folguedos, inverte a roda. Dessa
maneira, a tradição imemorial é posta a serviço de uma recriação
sensível daquilo que originalmente pertencia a um mundo ibérico e que
nos chegou pela audácia, o destemor e a violência dos colonizadores,
abrasileirando-se indelevelmente, unificada que fora pelo trabalho
marítimo.
Quando paramos para observar a Chegança do Almirante Negro,
notamos, contudo, em sua narrativa, a presença de uma história de
tempos profanos misturados a uma transcendência que se liga aos ritos
dos antepassados negros, negros assim como o nosso herói. E exatamente
por isso se diferencia, ainda mais, das cartilhas e murais canônicos.
Cândido, aliás, nos é apresentado ainda menino, como um antigo negrinho
do pastoreio, que um dia irá se juntar às armas, por força da precisão e
de algum oculto desejo heróico.
Mas a sua história seria outra, de um outro heroísmo.
Assim, nesse auto popular brasileiro ocorre toda a sorte de violências,
castigos corporais, lutas e revoltas, compondo um quadro extremado e
violentamente poético de esperanças de um novo tempo, naufragadas em
novas esperanças desesperadoras. E será João o grande líder que irá
conduzir aquela pequena frota e os homens.
O embate decisivo, quando as armas dos navios apontam
para a cidade, traz clamores e revoltas de toda sorte, em torno daquela
epopeia. Parte da população civil se vê convidada a se envolver e a
decidir de que lado está, ou identificada com os marinheiros, ou com o
poder do Estado. Não há meio termo.
Dessa maneira, a cena é invadida por personagens que
medem forças políticas e indiretamente repensam o estado civilizatório
em que nos chafurdamos. São populares, jornalistas, políticos e
artistas. E ditadores disfarçados, marechais, representantes do grande
capital, altas patentes. Bem-intencionados, cretinos, puros d’alma,
malfazejos, oportunistas e covardes. Alguns cabem na história como
maioria. Outros têm os seus nomes reduzidos a lembranças incômodas.
E, em meio a todo esse conflito, surge como um bálsamo
do futuro o relato sereno e vigoroso de Oswald de Andrade. Numa noite,
ainda jovem, ao sair da casa de amigos, em meio à Avenida Central, mais
tarde Rio Branco, o poeta ouviu falar em revolução. O coração
maravilhado e sedento de aventuras, pergunta: onde? E apontaram o mar. E
do mar se escutava um “prolongado soluço de sereia”.
E novamente no cais, ao admirar uma baía que “esplendia
com seus morros e enseadas”, o escritor, lá pelas quatro da manhã,
naquela hora shakespeariana em que tudo pode acontecer, qualquer
levante, qualquer virada radical no enredo, é acordado por um reles
ladrão.
Encontrava-se nos jardins da Glória, perto da Praça
Paris. Em frente, navios de guerra, todos de aço. Naquele momento,
reconhece o encouraçado Minas Gerais, que conduzia a marcha, o São Paulo
e mais um outro. E, simbolicamente, todos ostentavam, “numa verga do
mastro dianteiro, uma pequenina bandeira triangular vermelha”.
E, assim, conduzido por um destino zombeteiro, o poeta
estava “diante da revolução”. E ali, muito provavelmente, ainda distante
do que aquilo efetivamente significava para a história do país,
semearia a pergunta que um diria conseguiria exprimir, numa notável
poética: “Seria toda revolução uma aurora?”
Os dois movimentos se integravam. A esperança dos homens
por uma radical transformação do mundo, ainda alicerçada, segundo
alguns, numa categoria mítica, e a expressão do próprio mundo que se
revigora em seus nascimentos e mortes, em suas noites de frio e suas
manhãs ensolaradas. E aí, desembocamos nas cheganças.
Em alguma medida, as cheganças, duramente construídas
por séculos de sabedoria popular e semi-erudita, se combinam com uma
tradição muito antiga, que envolve a dialética vida e morte.
Espantosamente, nelas testemunhamos um registro humano
das expressões dos ciclos vitais. Surgem enquanto possibilidade de
compreensão do homem diante de um mundo tão fascinante quanto
assombroso. E ele próprio, homem, sujeito e testemunha dessa
transformação, chega (de chegança), para lutar e contemplar. E era (e
ainda é) esse o mundo do folguedo popular, considerado como um ato
divinatório, a considerar a própria criação como uma expressão que se
perde em tempos arcaicos.
No entanto, se olharmos bem, na Chegança do Almirante Negro no Mar da Pequena África
esse ciclo é diverso da tradição popular. Vai além. Nem melhor, nem
pior, mas opera num minuano que sopra para outros lados, provocando um
refazimento daquilo que herdamos para aquilo que potencialmente somos
enquanto nação brasileira. E se deixa levar, ao final, num novo cortejo
que se encaminha para um outro tempo, de ressurreição do herói, cujos
cantos ensejam o romper de uma nova aurora.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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