novembro 21, 2014

"Deleuze: Máquinas Desejantes", por Rafael Trindade

PICICA: "“se não se montar uma máquina revolucionária capaz de se fazer cargo do desejo e dos fenômenos de desejo, o desejo continuará sendo manipulado pelas forças de opressão e repressão, ameaçando, mesmo por dentro, as máquinas revolucionárias” – Deleuze, Conversações."

Deleuze: Máquinas Desejantes


“O corpo sob a pele é uma fábrica superaquecida,
e por fora,
o doente brilha,
reluz,
em todos os seus poros,
estourados”
- Antonin Artaud
Somos máquinas desejantes. Não no sentido metafórico, literalmente. Máquinas acopladas a outras máquinas, máquinas produzindo conexões. Tudo em nós cria, faz, corta, processa, produz… Nosso corpo é uma usina. É assim que Deleuze e Guattari definem o ser humano em “O Anti-Édipo”. Suas críticas à psicanálise vão longe, neste texto abordaremos o conceito de máquinas desejantes e o inconsciente produtivo.

Tudo para Deleuze é produção, constante movimento. Nós também somos este fluxo material: átomos se juntando e se separando, formando moléculas que se sobrepõe, decompõe, justapõe. O movimento é sempre de expansão, sempre algo passando por cima de algo, sempre alguma coisa engolindo outra. Confuso? Pois é assim mesmo que Deleuze quer, as máquinas desejantes são uma multiplicidade pura que nega a identidade.

Estas partículas se juntam para formar coisas, elas adquirem uma determinada ordem que possui a capacidade de manter-se. E aqui é onde nós nos encontramos: a organização das máquinas desejantes cria o organismo (e o corpo é uma máquina dentro de uma máquina social). As células são máquinas microscópicas, os dentes são máquinas de morder, o olho é uma máquina de ver, o estômago é uma máquina de digerir, o pênis é uma máquina de fecundação, o útero é uma máquina de fazer bebês.

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Estas máquinas acoplam-se umas às outras em sistemas binários formando regimes associativos: junto-separado, corte-fluxo, enche-esvazia. Produção de produção. Sempre em movimento, sempre movimentando e sendo movimentadas por máquinas menores e maiores. Produção sem lógica, sem nexo, sem finalidade. Homem e terno e celular e carro caro se torna máquina alto executivo. Mulher e megafone e cartaz e tinta na cara se torna máquina feminista. Criança e espada de plástico e cavalo de brinquedo e máscara vira máquina super-herói. Sempre uma coisa e outra coisa, sempre “e… e… e…”.
“O que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao infinito, em todos os sentidos e em todas as direções” – Deleuze, O Anti-Édipo.
Esta produção é também o que define nosso inconsciente: uma usina, uma metalúrgica operando na máxima capacidade (a natureza não economiza). “O inconsciente produz. Não pára de produzir. Funciona como uma fábrica” (Deleuze, Abecedário). Somos fruto dessa produção desenfreada. O desejo se cria, se faz, se expande e nós sentimos isso em nós, zunindo, rangendo. E quando o desejo cresce e transborda, ele cria, e toda criação acontece no real (porque não há nada além da realidade). Não há negatividade na natureza; como ela existe, ela parte sempre de um ponto maior que zero. Por isso não falta nada ao desejo: todo desejo é produção de realidade.

Nesta oficina se processa toda a produção inconsciente que nos atravessa, podemos sentir o desejo a fluir por nossos poros e ultrapassar nossa pele. O inconsciente produtivo se utiliza da matéria para sua criação. Mas quando o inconsciente é impedido de produzir, ou quando o desejo não pode expandir-se, ele rebate e volta-se para dentro de nós, abrindo um buraco que passamos a definir como falta (ver Deleuze e o Desejo).

 O inconsciente produtivo não é um palco onde se interpreta uma peça de teatro grego, não interiorizamos nada porque não há interior, existem apenas fluxos, máquinas dispostas em determinadas ordens. O inconsciente não repete indefinidamente uma peça de teatro porque na verdade é uma usina atômica. Ele explode e podemos ouvir o estrondo nos atravessar e ecoar pelo espaço ao nosso redor. Esta produção desejante é completamente anedipiana, ela resiste ao Édipo.
Ninguém nos pergunta “quais são suas máquinas desejantes?”, ninguém quer saber como você está organizado, querem logo te encaixar em algum lugar. Nossas máquinas desejantes são organizadas pela máquina social. O padre diz que você é filho de Deus, o psicanalista te convida a se deitar no divã. A fantástica usina fica então reduzida a um “sujo segredinho familiar”: papai-mamãe-filhinho. Toda produção desejante é esmagada por Édipo e suas interpretações. O desejo não quer ser interpretado, ele quer criar, quer expandir-se.

Nós somos máquinas desejantes movidas por um inconsciente produtivo, façamos jus à definição! Enquanto formos organizados por máquinas sociais, nossa produção se perderá indefinidamente ou estará diretamente ligada a meios externos que não nos convém. Máquinas gregárias ao invés de máquinas nômades. Primeira tarefa positiva da esquizoanálise: descobrir suas próprias máquinas desejantes. Não interpretar, mas experimentar. Esta é a condição essencial para as produções se transformarem em intensidades. Produção a serviço da improdução (ver Corpo sem Órgãos). Só assim é possível passar de máquinas entorpecidas para máquinas revolucionárias.
“se não se montar uma máquina revolucionária capaz de se fazer cargo do desejo e dos fenômenos de desejo, o desejo continuará sendo manipulado pelas forças de opressão e repressão, ameaçando, mesmo por dentro, as máquinas revolucionárias” – Deleuze, Conversações.
O fogo, de Giuseppe Arcimboldo, 1956.
O fogo, de Giuseppe Arcimboldo, 1956.

Fonte: A Razão Inadequada

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