PICICA: "Há alguns anos o termo etnocídio
não existia. A utilização da palavra ultrapassou ampla e rapidamente
seu lugar de origem, a etnologia, para cair de certo modo no domínio
público. No espírito de seus inventores, a palavra estava decerto
destinada a traduzir uma realidade que nenhum outro termo exprimia. Se
surgiu a necessidade de criar um termo novo, é porque considerava-se que
uma outra palavra — genocídio — era inadequada ou imprópria para
preencher esta nova exigência."
"Sobre o Etnocídio" (de Pierre Clastres, em ARQUEOLOGIA DA VIOLÊNCIA, capítulo 4, pgs 77 a 87, ed. Cosac & Naify, 2004)
"Há alguns anos o termo etnocídio
não existia. A utilização da palavra ultrapassou ampla e rapidamente
seu lugar de origem, a etnologia, para cair de certo modo no domínio
público. No espírito de seus inventores, a palavra estava decerto
destinada a traduzir uma realidade que nenhum outro termo exprimia. Se
surgiu a necessidade de criar um termo novo, é porque considerava-se que
uma outra palavra — genocídio — era inadequada ou imprópria para
preencher esta nova exigência.
Criado em 1946 no processo de Nuremberg
[em que foram julgados criminosos nazistas], o conceito jurídico de
genocídio é a consideração no plano legal de um tipo de criminalidade
até então desconhecido: o extermínio sistemático dos judeus europeus
pelos nazistas alemães. O delito do genocídio tem sua raiz portanto no
racismo, é o seu produto lógico e, no limite, necessário: um racismo que
se desenvolve livremente, como foi o caso da Alemanha nazista, só pode
conduzir ao genocídio.
Embora o genocídio anti-semita dos nazistas tenha sido o primeiro a ser
julgado em nome da lei, não foi o primeiro a ser perpetrado. A história
da expansão colonial no século XIX, a história da constituição dos
impérios coloniais pelas grandes potências européias, está pontilhada de
massacres metódicos de populações nativas/autóctones. No entanto, por
sua extensão continental, pela amplitude da queda demográfica que
provocou, é o genocídio de que foram vítimas os indígenas americanos o
que mais chama a atenção. A partir da descoberta da América em 1492,
pôs-se em funcionamento uma máquina de destruição dos índios. Esta
máquina continua a funcionar ao longo da grande floresta amazônica, onde
subsistem as últimas tribos “selvagens”.
Se o termo genocídio remete à idéia de "raça" e ao desejo de extermínio
de uma minorial racial, o termo etnocídio aponta não para a destruição
física dos homens, como o genocídio, e sim para a destruição de sua cultura.
O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática de modos de vida e de
pensamento de povos diferentes daquelas que empreendem essa destruição.
Em suma, o genocídio assassina os povos em seus corpos e o etnocídio os
mata em seu espírito.
O genocídio e o etnocídio tem em comum uma visão idêntica do Outro: o
Outro é a diferença, certamente, mas é sobretudo a má diferença. O
genocida quer pura e simplesmente negar a diferença; exterminam-se os
outros porque eles são absolutamente maus. O etnocídio, por outro lado,
admite a relatividade do mal na diferença: os outros são maus, mas
pode-se melhorá-los obrigando-os a se transformar até que se tornem, se
possível, idênticos ao modelo que lhes é proposto, que lhes é imposto.
Cena do filme "A Missão" (The Mission), de Roland Joffe, com Jeremy Irons e Robert DeNiro. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, 1987. |
Quem são, por outro lado, os praticantes do etnocídio? Em primeiro
lugar, aparecem na América do Sul, mas também em muitas outras regiões,
os missionários. Propagadores militantes da fé cristã, eles se esforçam
por substituir as crenças bárbaras dos pagãos pela religião do Ocidente.
A atitude evangelizadora implica duas certezas: primeiro, que a
diferença - o paganismo - é inaceitável e deve ser recusada; a seguir,
que o mal dessa má diferença pode ser atenuado ou mesmo abolido. É nisto
que a atitude etnocida é sobretudo otimista: o Outro, mau no ponto de
partida, é suposto perfectível, reconhem-lhe os meios de se alçar, por
identificação, à perfeição que o cristianismo representa.
O etnocídio é praticado para o bem do selvagem. O discurso leigo não diz
outra coisa quando enuncia, por exemplo, a doutrina oficial do governo
brasileiro quanto à política indigenista: "Nossos índios, proclamam os
responsáveis, são seres humanos como os outros. Mas a vida selvagem que
levam nas florestas os condena à miséria e à infelicidade. É nosso dever
ajudá-los a libertar-se da servidão. Eles têm o direito de se elevar à
dignidade de cidadãos brasileiros, a fim de participar plenamente do
desenvolvimento da sociedade nacional e de usufruir de seus benefícios".
A espiritualidade do etnocídio é a ética do humanismo.
Denomina-se etnocentrismo
a vocação para avaliar as diferenças pelo padrão da sua própria
cultura. O Ocidente seria etnocida porque é etnocentrista, porque se
pensa e quer ser a civilização. Surge, no entanto, uma pergunta:
nossa cultura detém o monopólio do etnocentrismo? Consideremos o modo
pelo qual as sociedades primitivas se denominam a si mesmas. Em geral
elas se designam como “os homens, os humanos”. Os Guayaki, por exemplo,
chamam a si próprios de aché, isto é, “pessoas”; os esquimós se denominam innuit,
ou seja, “homens”; e assim por diante. E, inversamente, cada sociedade
designa sistematicamente seus vizinhos com nomes pejorativos,
desprezíveis e injuriosos. Toda cultura procede assim a uma partilha da
humanidade entre ela própria, os humanos por excelência, e os outros,
que só participam secundariamente da humanidade. O etnocentrismo aparece
então como a coisa mais bem compartilhada do mundo e, pelo menos neste
aspecto, a cultura do Ocidente não se distingue das outras.
Em outras palavras, a alteridade cultural nunca é apreendida como
diferença positiva, mas sempre como inferioridade segundo um eixo
hierárquico. O etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas
inferiores e más; é a aplicação de um projeto de redução do outro ao
mesmo. O índio amazônico suprimido como outro e reduzido ao mesmo como
cidadão brasileiro. Em outras palavras, o etnocídio resulta na
dissolução do múltiplo em Um.
O critério clássico de distinção entre os selvagens e os civilizados,
entre o mundo primitivo e o mundo ocidental, é que o primeiro reúne o
conjunto das sociedades sem Estado, o segundo compõe-se de sociedades
com Estado. O que significa o Estado? O Estado se quer e se proclama o
centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos
diversos órgãos desse corpo. Descobre-se assim, no núcleo da substância
do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o
temor e o horror da diferença, (...) a vontade de redução da diferença e
da alteridade. Toda formação estatal é etnocida.
"Iracema - Uma Transa Amazônica", clássico do cinema brasileiro |
Os Incas haviam conseguido edificar nos Andes uma máquina de governo que
causou a admiração dos espanhóis. O aspecto propriamente etnocida dessa
máquina estatal aparece em sua tendência a incaizar as populações
recentemente conquistadas: não apenas obrigando-as a pagar tributo aos
novos senhores, mas sobretudo forçando-os a celebrar prioritariamente o
culto dos conquistadores, o culto do Sol. É verdade também que a pressão
exercida pelos Incas sobre as tribos submetidas nunca atingiu a
violência do zelo maníaco com que os espanhóis aniquilariam mais tarde a
idolatria indígena.
Onde se situa a diferença que proíbe colocar no mesmo plano ou enfiar no
mesmo saco os Estados bárbaros (Incas, Faraós, despotismos orientais
etc.) e os Estados ditos civilizados (o mundo ocidental)? Nos Estados
ocidentais a capacidade etnocida se mostra sem limites, ela é
desenfreada.
O que contém a civilização ocidental, que a torna infinitamente mais
etnocida que qualquer outra forma de sociedade? É o seu regime de
produção econômica, o capitalismo, enquanto impossibilidade de
permanecer no aquém de uma fronteira; é o capitalismo como sistema de
produção para o qual nada é impossível, exceto não ser para si mesmo seu
próprio fim. A sociedade industrial, a mais formidável máquina de
produzir, é por isso mesmo a mais terrível máquina de destruir. Raças,
sociedades, indivíduos; espaço, natureza, mares, florestas, subsolo:
tudo deve ser útil, tudo é útil, tudo deve ser utilizado, tudo deve ser
produtivo, de uma produtividade levada a seu regime máximo de
intensidade.
Eis por que era intolerável, aos olhos do Ocidente, o desperdício
representado pela não-exploração econômica de imensos recursos. A
escolha deixada a essas sociedades era um dilema: ou ceder à produção ou
desaparecer; ou o etnocídio ou o genocídio. No final do século XIX, os
índios do pampa argentino foram totalmente exterminados a fim de
permitir a criação extensiva de ovelhas e vacas, o que fundou a riqueza
do capitalismo argentino. No início do século XX, centenas de milhares
de índios amazônicos pereceram sob a ação dos exploradores de borracha.
Atualmente, em toda a América do Sul, os últimos índios livres sucumbem
sob a pressão enorme do crescimento econômico, brasileiro em particular.
As estradas transcontinentais, cuja construção se acelera, constituem
eixos de colonização dos territórios atravessados: azar dos índios com
quem a estrada depara!"
Arqueologia da Violência - Pesquisas de Antropologia Política
(Originalmente publicado em 1980) Compre aqui ou Leia na Íntegra
(Originalmente publicado em 1980) Compre aqui ou Leia na Íntegra
Ed. Cosac & Naify, 2004
Tradução de Paulo Neves
Prefácio de Bento Prado Jr.
Posfácio de Eduardo Viveiros de Castro
Tradução de Paulo Neves
Prefácio de Bento Prado Jr.
Posfácio de Eduardo Viveiros de Castro
Documentário completo: "Belo Monte: Anúncio de uma Guerra"
Trailer do filme "Segredos da Tribo", de José Padilha,
diretor de Tropa de Elite 1 e 2, Ônibus 174 e Garapa
Outras leituras recomendadas:
diretor de Tropa de Elite 1 e 2, Ônibus 174 e Garapa
Outras leituras recomendadas:
- Pierre Clastres, A Sociedade Contra o Estado (Ed. Cosac e Naify)
- Tzvetan Todovov, A Conquista da América (Ed. Martins Fontes)
- Oswald de Andrade, Utopia Antropofágica (Ed. Globo)
- Eduardo Viveiros de Castro, A Inconstância da Alma Selvagem (Ed. Cosac e Naify)
- Correio da Cidadania: Belo Monte é forma de viabilizar mineração em terras indígenas
Fonte: Depredando
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