PICICA: "Quando se fala em criminalização da homofobia, a questão tem pelo
menos dois lados. De um lado, a violência homofóbica. De outro, a
criminalização. Sobre a violência homofóbica, os grupos LGBT têm
legitimidade preferencial para formular um ponto de vista sobre suas
necessidades, desejos e demandas políticas. Sobre a criminalização,
também existe um ponto de vista de crítica ao sistema penal. Este último
ponto de vista é articulado, por exemplo, pela criminologia crítica.
Sob enfoque estratégico de ações práticas, os pontos de vista podem
qualificar-se entre si, sem que precisem coincidir ou convergir num
consenso."
A criminalização da homofobia, uma abordagem do abolicionismo penal
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Quando se fala em criminalização da homofobia, a questão tem pelo menos dois lados. De um lado, a violência homofóbica. De outro, a criminalização. Sobre a violência homofóbica, os grupos LGBT têm legitimidade preferencial para formular um ponto de vista sobre suas necessidades, desejos e demandas políticas. Sobre a criminalização, também existe um ponto de vista de crítica ao sistema penal. Este último ponto de vista é articulado, por exemplo, pela criminologia crítica. Sob enfoque estratégico de ações práticas, os pontos de vista podem qualificar-se entre si, sem que precisem coincidir ou convergir num consenso.
A criminologia crítica aborda o sistema penal como ele é e não como deveria ser. Não parte da estrutura jurídico-normativa, mas do funcionamento real dos vários subsistemas do poder punitivo: polícias, judiciário, prisões e execução penal, mídias, políticas legislativas. Vai estudar os mecanismos institucionais enquanto violência sistêmica e organizada pelo próprio estado. Dentro da criminologia crítica, a vertente abolicionista penal se orienta pela extinção gradual do sistema penal e do caldo punitivista que lhe dá consistência. Não se trata, contudo, de mais uma utopia siderada. É, antes, o gesto teórico e prático de uma ruptura epistêmica, que afirma a disfunção essencial e irremediável do sistema penal, em nenhum caso via apta para cumprir as pretensões declaradas, sejam elas preventivas, retributivas, reabilitadoras ou ressocializadoras.
O sistema penal funciona bem, sim, para conservar a ordem vigente, isto é, manter a desigualdade sob controle, perpetuar as discriminações e canalizar os fluxos de ressentimento social e vingança privada para dentro dos mecanismos do estado posto. A ruptura epistêmica do abolicionismo significa encarar o abismo de frente, sem subterfúgios, e daí partir para a construção sustentada de heterotopias (Michel Foucault). Como não existe possibilidade real de abolir por decreto, da noite para o dia, o sistema penal, o ponto de vista abolicionista precisa se colocar nas franjas de descriminalização (despatologização, mitigação, redução de danos etc) e de criminalização (redução da maioridade penal, guerra às drogas, direitos reprodutivos etc), a fim de resistir à expansão do punitivismo.
Os movimentos LGBT demandam por apoio e resposta. Lutam por um novo regime de visibilidade e dizibilidade da violência homofóbica, em todas suas dimensões. Buscam assim marcos legais em que possam apoiar-se para fortalecer a luta, que se dá no plano molecular, no dia a dia de uma militância difusa pela sociedade, ou concentrada em grupos mais orgânicos. Por violência homofóbica, entende-se aquela contra pessoas gays, lésbicas, travestis, transgêneros e transexuais, em razão de sua condição. Uma violência que assume caráter estrutural, quer dizer, os casos individuais exprimem causas profundas e sistêmicas. A par dos movimentos negros, indígenas ou feministas, os movimentos LGBT exigem a criminalização e o fazem frequentemente em termos incisivos e mesmo agressivos. Esses tons não devem ser desqualificados, mas reconhecidos e escutados. O cinema de um Glauber Rocha ensina como a violência do oprimido guarda assimetria em relação à violência do opressor. Porque a violência do oprimido é criativa e constrói para si uma estética própria e singular.
A criminologia crítica na sua vertente abolicionista (Maria Lúcia Karam, Nilo Batista, Vera Malaguti) pesquisa histórica e empiricamente a persistência de opressões articuladas pelo sistema penal. Esquematicamente, três. Primeiro, a escravidão e o extermínio indígena, que determinam a seletividade sistêmica de todo o circuito de estigmatização, culpabilização e punição, dirigido contra negros, índios e pobres. Segundo, a ditadura(s), que determina a permanência de práticas de execução sumária, tortura policial, instauração de estado de exceção, criminalização de movimentos sociais e, paralelamente, concentração proprietária dos meios de comunicação em massa, praticamente os mesmos desde o período ditatorial. E terceiro, a tradição ibérica da Inquisição, que determina a obsessão social/policial pela confissão extraída sob ameaça e tortura, bem como a exigência e incentivo à delação e a percepção que os suspeitos em princípios são culpados, gerando portanto um dever perverso de ter de provar a inocência diante do inquisidor. Tais elementos são fatos profundos e não reminiscências históricas, como descrevem em detalhes os autores da melhor literatura de formação nacional, de Euclides da Cunha a Octávio Ianni.
Os movimentos LGBT formulam, em termos próprios, os elementos para uma criminologia queer. O reconhecimento da criminologia queer acontece, por exemplo, no programa teórico da criminologia cultural, uma derivação da criminologia crítica a partir dos anos 1990, dita “pós-crítica”. Em linhas gerais, a criminologia cultural propugna que os processos de criminalização devam ser estudados mais especificamente, de maneira situada (Donna Haraway), a partir dos sujeitos implicados, inclusive na capacidade de elaborar a própria experiência e agir afirmativamente nela. Está embutida nesse programa uma crítica à criminologia crítica considerada esquemática, dogmática, estruturalista, sem fundo empírico ou marxistoide. A bem dizer, essa crítica da crítica às vezes cheira ao fim da história fukuyâmico do triunfo neoliberal, num academicismo complacente mais preocupado em sofisticar métodos e ocupar mercados universitários do que encarar a luta de classe. O “pós-crítico”, aí, tem ar de capitulação. Mas esse é um falso problema, com vias não-excludentes. Na questão da criminalização da homofobia, a tensão aparece claramente como um debate de escolas. O caso não é falar sobre os sujeitos, nem como os sujeitos, mas com os sujeitos. Pois não se trata de colocar em relação duas posições práticas para tirar uma estratégia teórica, mas tirar posições práticas a partir de uma estratégia relacional. Nem reducionismo sociológico, nem culturalismo relativista, mas relacionismo pragmático. Outra desqualificação contumaz dirigida ao abolicionismo penal, desta vez pelos movimentos, é que seria divisionista, “esquerda da esquerda”, acusação que, partindo de grupos ligados a minorias políticas, soa estranha, já que há não muito tempo boa parte da esquerda organizada acusava esses grupos de comprometer a frente unificada de luta, por serem “pós-modernos” ou “racialistas”, o que dispersaria as energias de transformação.
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Uma linha possível
Como então dar a partida numa linha possível de encontro com a luta abolicionista? De imediato, a luta pela descriminalização e despatologização da condição LGBT, para rechaçar as pretensões eugênico-lombrosianas de procedimentos de “cura gay” ou “desomossexualização”. A dificuldade reside, entretanto, quando a pauta passa a ser a criminalização da homofobia. Da parte do abolicionismo, uma possibilidade de abordagem é partir de uma cooptação entre criminologias, mais especificamente, entre criminologia feminista (Carmen Hein) e criminologia queer (Salo de Carvalho). É assumir a Lei Maria da Penha (LMP) como paradigma para a questão da criminalização da homofobia. Da perspectiva do abolicionismo penal, não existe contradição em admitir a LMP como um avanço para o movimento das mulheres. Mais do que isso, uma conquista que pode qualificar, em ação reflexa, a própria criminologia crítica e a vertente abolicionista.
Em primeiro lugar, porque a LMP não é uma lei com foco punitivista. Não é preciso jogar fora o bebê com a água. Essencialmente processual, ela estabelece um inteiro regime jurídico de nominação, compreensão e resposta à violência doméstica e/ou de gênero. Institui juizados, políticas de apoio, e uma gama de medidas protetivas que não culminam necessariamente no sistema penal. Tais procedimentos contribuem, inclusive, para desbaratar a violência de gênero que ocorre por dentro do sistema. Reconhecer os pontos positivos da LMP, de qualquer modo, não significa concordância com os dispositivos propriamente penais, que devem ser criticados apesar do conjunto da obra ser positivo. Tentar dirigir o sistema penal para fazer justiça de gênero, indo além do apoio e da resposta imediata, não somente configura via inadequada para enfrentar o problema da violência contra a mulher, como termina por agravar outros e homologar o caldo punitivista. No caso da criminalização da homofobia, pensando perspectivamente, a experiência da LMP pode ser aproveitada no sentido de uma proposta mais completa e menos punitivista, do que um simples PL de listagem de novos tipos e penas. Seguindo o exemplo da LMP, a demanda LGBT pode se beneficiar dessa estratégia, dirigindo esforços na direção de uma lei específica, um estatuto dedicado exclusivamente à violência homofóbica, para instituir regime jurídico próprio, com modelos de gestão de conflito, um rol de medidas protetivas, bem como a institucionalização de juizados e delegacias sobre violência homofóbica. Um regime jurídico nada focado no aspecto punitivista nem forrado de dispositivos propriamente penais, ou da intensificação dos existentes. O atual PL 122, apensado em 2013 à reforma do código penal (isto é, postergado indefinidamente), se limita a diluir a questão na Lei de 1989 sobre o racismo (Carmen Hein, Salo de Carvalho).
Talvez o ponto de choque mais crítico do encontro entre demandas LGBT e o abolicionismo penal seja a percepção dos primeiros que é fundamental declarar “homofobia é crime”. A declaração inequívoca marcaria uma nova época em que a militância poderia se apoiar para fortalecer a luta contra a homofobia. Vale interrogar, então, se esse gesto declarativo necessita da inserção de novos tipos penais, qualificadores, agravantes ou penas. Não cumpriria o principal redigir um parágrafo que reconheça a violência homofóbica como crime em todos os casos já existentes da legislação penal, quando cometidos em razão dessa condição? Em vez de entulhar mais tipificações, dá-se o nomen iuris, nomina-se a violência homofóbica, a ser reconhecida explicitamente no processo penal, sem que se intensifiquem os mecanismos punitivos. A violência homofóbica poderia ser processada e julgada, portanto, segundo a legislação existente, já bastante engarrafada. Dessa maneira, homicídio homofóbico seria processado como homicídio, lesão homofóbica como lesão, ameaças, injúrias etc, com a diferença que, em todos os casos, a polícia, o juiz e demais operadores do direito reconheceriam explicitamente o caráter homofóbico da violência. Noutras palavras, se o principal efeito desejado é performativo, o gesto “homofobia é crime” da Lei não precisa ser acompanhado da exacerbação de um sistema penal extremamente punitivista, seletivo e aritmeticamente inútil para lidar com problemas sociais.
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Referências
Redação da fala apresentada à IX Semana Jurídica do Diretório Acadêmico de direito do ICF, em Teresina, Piauí, em 7/11/2014.
A ideia de ruptura epistêmica necessária que o abolicionismo propugna, indo além do direito penal mínimo ou do garantismo liberal, me ocorreu a partir de uma palestra de Moysés Pinto Neto, que usou a expressão num contexto próximo, porém diferente, no caso, da crítica à militarização do estado (ainda que o sistema penal não seja nada mais do que a face mais terrorista do estado).
BARATTA, Alessandro. O Paradigma do Gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Editora Sulina, 1999a. p. 19-80.
___. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à
sociologia do direito penal. 3ª edição. Tradução e prefácio Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
BATISTA, Vera Malguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
CAMPOS, Carmen Hein de. CARVALHO, Salo. Tensões Atuais entre a Criminologia Feminista e a Criminologia Crítica: a experiência brasileira. In: CAMPOS, Carmen Hein de. (org.) Lei Maria da Penha: comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen iuris, 2011. p. 143-169.
CAMPOS, Carmen Hein de. Lei Maria da Penha: mínima intervenção punitiva, máxima intervenção penal. São Paulo: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 73, 2008.
CARVALHO, Salo de. Sobre as possibilidades de uma criminologia queer. In: Revista Sistema Penal e Violência, UFRGS, Volume 4 – Número 2 – p. 151-168 – julho/dezembro 2012.
___. Sobre a criminalização da homofobia: perspectivas desde a criminologia queer. In: RBCrim n. 99, 2012. p. 188-204.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 10ª edição. Petrópolis: Vozes, 1993.
KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, ano 1, número 1, 1º semestre de 1996., p. 79-92.
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo: Editora Saraiva, 2014.
SANTOS, Rogério Dutra dos. Criminologia crítica e violência: o sistema penal como ultima ratio.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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