PICICA: "(...) a filosofia do Deleuze não recobre, não representa – ela diz o que Espinoza não disse! Então, seria uma maneira toda original de fazer filosofia: seria uma filosofia das núpcias, dos matrimônios, dos agenciamentos, em
que o historiador – no caso Deleuze – ao invés de falar sobre aquilo
que o filósofo falou – o que de modo nenhum ele faria! – ele se associa com o filósofo e – os dois – fazem uma viagem recriando Espinoza."
Aula 2 – 18/01/1995 – O solo nômade da filosofia – Uma imagem do pensamento
Há, nas faculdades de filosofia, uma disciplina que se chama História da Filosofia e o professor de filosofia é – na verdade – um historiador da filosofia.
O que comumente um professor de filosofia faz – é pegar as obras consideradas filosóficas e reproduzi-las em seu discurso: representá-las, retomá-las – geralmente com comentários. Classicamente, é isso o que o professor de filosofia faz! Se ele fala sobre Platão, ele expõe, por exemplo, o problema do Timeu – a demiurgia, as formas, a matéria louca – e recobre o discurso platônico, fazendo algum comentário, às vezes pouco inteligente – porque ele concorda ou não concorda com aquilo.
Mas essa posição não é a minha posição!
- Por quê?
Porque minha associação filosófica é com Gilles Deleuze, que como todo filósofo, pelo menos como todo historiador de filosofia, fala sobre os outros filósofos, ou seja: sobre aqueles que são considerados filósofos. Há na obra de Deleuze, por exemplo, um livro sobre Espinoza; um livro sobre Nietzsche; outro, sobre Hume… mas Deleuze não é um historiador clássico da filosofia, ou melhor: o trabalho dele não é recobrir o que os outros filósofos disseram, não é repetir o que os outros filósofos disseram, nem tampouco comentar sobre o que os outros filósofos teriam falado. Num trabalho sobre Espinoza, por exemplo, chamado Espinoza e o problema da expressão, Deleuze vai se ligar à noção de expressão – que está dentro da obra de Espinoza, mas não tem um valor conceitual como teria, por exemplo, a noção de substância na obra de Aristóteles.
O conceito de expressão – e a partir daqui eu vou tentar mostrar isso – não é para ser explicado ou comentado – porque o Espinoza não nos diz o que é o conceito de expressão. O conceito de expressão no Espinoza é uma prática – é o exercício filosófico propriamente espinozista. Então, Deleuze, ao invés de comentar ou reproduzir Espinoza, viaja nesse conceito de expressão, ou seja, não é uma filosofia sobre Espinoza: é uma filosofia com Espinoza.
(Eu vou melhorar pra vocês!)
Um homem de teatro e de cinema chamado Carmelo Bene é o responsável – junto com outros – pelo que se chama vagamente de teatro moderno. (Que nada tem a ver com o que está acontecendo no Rio de Janeiro – porque não existe [esse tipo de teatro] no Rio de Janeiro!)
Nesse teatro, o Carmelo Bene pega uma peça como Romeu e Julieta do Shakespeare – por exemplo – e faz uma prática excepcionalmente original – que é amputar determinados personagens [da peça original]. Em Romeu e Julieta, por exemplo, ele amputa, ele retira o Romeu. Eu não sei se vocês se lembram: o Mercúcio tem uma vida muito breve em Romeu e Julieta – ele morre, na peça, salvo equívoco, pela espada de Teobaldo, exatamente porque Romeu se intrometeu… ( Atenção, que começa a aparecer a questão:) N o momento em que Carmelo Bene faz isso, ele liberta as virtualidades de Mercúcio.
- Em que sentido?
Passando do Teatro pra vida. .. – pra prática das nossas vidas – haveria sobre qualquer um de nós determinados exercícios de poder que impediriam que nós efetuássemos uma série de virtualidades nossas. Isso que eu estou chamando de “virtualidade” é alguma coisa que, por exemplo, não aparece na obra de Espinoza, ou seja: você não encontra as virtualidades de Espinoza na obra dele. Mas se você utilizar – na filosofia – o processo que Carmelo Bene utilizou no teatro… ou seja, digamos: você decepa alguma coisa dentro da obra do Espinoza, e aí uma virtualidade do Espinoza se libera.
Então, a filosofia do Deleuze não recobre, não representa – ela diz o que Espinoza não disse! Então, seria uma maneira toda original de fazer filosofia: seria uma filosofia das núpcias, dos matrimônios, dos agenciamentos, em que o historiador – no caso Deleuze – ao invés de falar sobre aquilo que o filósofo falou – o que de modo nenhum ele faria! – ele se associa com o filósofo e – os dois – fazem uma viagem recriando Espinoza.
Então, é esse o meu modelo, é assim que eu trabalho, ou seja, eu não recubro de maneira nenhuma o filósofo: eu não faço isso! O que eu procuro, é encontrar nele aquilo com que eu possa fazer o meu processo. Um filósofo de língua inglesa do séc. XVIII, chamado Hume, por exemplo, introduz, no campo da filosofia, a categoria de CRENÇA. Essa categoria – de crença – faz desabar toda a tradição da filosofia! Mas Hume, em momento nenhum, explica o que é a crença. Ele não explica – ele faz uma viagem com essa noção. Então: se eu for falar de Hume, eu vou ser um companheiro dele nessa viagem sobre a crença.
Alª.: E você também faz isso com o Deleuze?
Cl.: Exatamente – é isso que eu estou dizendo!
Alª.: Com o próprio Deleuze?!
Cl.: Com o próprio Deleuze!…Se eu não fizesse isso com o Deleuze, eu não estaria sendo deleuzeano – porque eu estaria re cobrindo aquilo que o Deleuze diz.
Então, evidentemente eu já notei que vocês compreenderam a dificuldade extremada do que é isso… e o porquê de, no começo desta aula, eu ter dito: “Aparentemente eu vou expor pra vocês o meu método!” – mas, de forma nenhuma, é um método que eu estarei expondo. Eu vou colocar outra categoria. Eu estarei, no começo desta aula, produzindo – sempre com os objetivos das aulas [que se seguirão], o que na obra do Deleuze vai-se chamar IMAGEM DO PENSAMENTO – idéia que vocês não encontrarão, de maneira nenhuma, em outro filósofo.
O que eu tenho que fazer agora? Agora – necessariamente – por ser um componente fundamental da minha exposição, eu tenho que levá-los a compreender o que vem a ser Imagem do Pensamento.
Então vamos lá:
Em todas as filosofias – Platão, Hegel, Aristóteles, Kant – não importa qual o filósofo, todos eles colocam o pensamento como uma atividade positiva que busca um alvo: alcançar alguma coisa. No Platão, por exemplo:
- Qual é o grande alvo da filosofia do Platão?
Encontrar a verdade! Então, o pensamento se equipa para encontrar o objetivo dessa filosofia. Que no caso específico de Platão seria – encontrar a verdade.
Mas, em todas as filosofias – e aqui vocês vão ficar um pouco surpresos! – existe o que se chama o NEGATIVO DO PENSAMENTO . Todas as filosofias marcam o que seria o negativo do pensamento. Por exemplo: eu disse que o Platão tem como objetivo encontrar a verdade. Então, o Platão tem como objetivo: como prática afirmativa – a busca da verdade. E, para ele, o negativo do pensamento…
- O que quer dizer o negativo do pensamento?
O negativo do pensamento é exatamente aquilo que atordoa o pensamento; aquilo que confunde a prática do pensamento – que, no caso de Platão e Aristóteles – é o erro, o falso. Para esses pensadores, o pensamento tem um exercício e esse exercício – [ao se processar] – de repente se defronta com uma espécie de névoa – a névoa do falso.
Se eu abandonar esses pensadores e for, por exemplo, para o Espinoza, é claro que a questão do Espinoza – da mesma maneira que em Platão e Aristóteles – é fazer o pensamento funcionar e encontrar os seus objetivos. Mas, da mesma maneira que neles apareceu o negativo e esse negativo era o falso, em Espinoza o grande negativo é a ignorância e a superstição.
Então vejam o que eu disse:
O que eu estou colocando é alguma coisa de muito novo: que para o entendimento de uma prática filosófica, importa a compreensão do negativo do pensamento. Então, o negativo do pensamento para Platão é o erro. E num confronto que ele faz com os sofistas, ele vai provar que o erro existe – o que lhe permite gerar o seu negativo – o erro.
Agora, se vocês forem estudar Nietzsche, por exemplo, Nietzsche tem um negativo. Mas o negativo dele não é o erro – é a tolice .
Então, o que eu disse pra vocês, é que essa noção de “negativo do pensamento” tem tanta importância como a noção de “positividade do pensamento”. Em função da ameaça do negativo…
- O que é que o negativo ameaça? Ameaça o pensamento! O falso ameaça a verdade; a ignorância ameaça o pensamento. A ignorância ameaçar o pensamento é muito fácil de ver! Então, em função dessas ameaças, que os negativos produzem sobre a sua prática de pensamento, os filósofos criam o que se chama MÉTODO.
- O que é o método?
O método é para enfraquecer, afastar o perigo do negativo.
Alª.: E o positivo em Espinoza e em Nietzsche também é A Verdade?
Cl.: Eu vou mostrar! (Certo?)
Então, aqui termina essa fase, eu acho que foi bem compreendido… O filósofo está sempre com aquela questão – que é AFASTAR O NEGATIVO DO PENSAMENTO.
Por exemplo: em Kant – o negativo é a ilusão; então Kant vai passar sua obra toda tentando afastar os poderes da ilusão.
Mas eu estou citando o Aristóteles e o Espinoza. No Aristóteles, o negativo é o falso. No Espinoza, o negativo é a ignorância… Eu não vou nem dizer a superstição, porque eu posso dizer que a superstição é uma conseqüência da ignorância. (Certo?) Então, de um lado o falso e de outro lado a ignorância.
- O que eles fazem?
Ambos constroem um método – com o objetivo único e exclusivo de afastar os poderes do negativo. O Aristóteles, por exemplo, coloca a existência de duas práticas, digamos, do saber: duas práticas científicas – que ele chama de filosofia teórica e de filosofia prática.
Na filosofia teórica – que é a prática da física, a prática da matemática – diz Aristóteles que o grande problema é que o verdadeiro – que é o objetivo que ele quer alcançar – está ameaçado pelo falso. Na filosofia prática – a política, a economia, a moral – é onde ele diz que o bem se encontra ameaçado pelo mal. Então, na filosofia prática, na hora em que o político, o economista ou o moralista praticassem o bem, poderiam ser tomados pelo mal – porque o mal se transvestiria de bem, assim como o falso se transveste de verdade. Então, ele constrói um método com o objetivo – no caso de Aristóteles – de afastar o falso e afastar o mal.
Espinoza, para quem o negativo é a ignorância, constrói um método – que ele chama de formal e reflexivo (vejam como fica claro!) – com o objetivo único de fortalecer o poder DO ENTENDIMENTO: levar o poder do entendimento a sua mais alta potência.
- Por quê?
Porque quanto mais potente for o entendimento, menos o poder da ignorância. Então, essa posição espinozista é uma posição grave, uma posição trágica, porque ela já colocou a grande questão – a fragilidade da subjetividade humana, a imensa fragilidade da subjetividade humana; ou numa linguagem mais espinozista – a IMENSA FRAGILIDADE DA CONSCIÊNCIA. A consciência é frágil, confusa, OU MELHOR: a CONSCIÊNCIA: esta ignorante. Esta ignorante – a consciência – segundo Espinoza, seria a causa de todo o sofrimento da humanidade.
Todo o mal da humanidade estaria – exatamente – na consciência, com a sua ignorância – [e a sua incapacidade] de compreender os movimentos da natureza. Porque a consciência não compreende os movimentos da natureza – o regime existencial dela é sempre o mesmo: recompensa e punição. Ou seja: ela busca ser recompensada – quando cumpre o seu papel com perfeição; e teme ser punida.
A consciência não é um órgão constituído para entender – ela é um órgão constituído para obedecer; e a obediência é a fábrica da ignorância. Porque um espírito livre – e é exatamente este o objetivo do Espinoza: a produção de um espírito livre! - tem que se confrontar fundamentalmente com a consciência.
Porque a consciência ou, como diz Espinoza, Adão – ao ouvir de Deus a frase – “Não coma desse fruto, porque se você comer desse fruto você vai se envenenar”, Adão, o ignorante, comeu do fruto, se envenenou e pensou que Deus havia lhe dado uma ordem – e que ele não tinha cumprido a ordem de Deus. Ao acreditar “ter desobedecido” a ” ordem de Deus” – comendo o fruto; logo, não aceitando a ordem de Deus – teve cólica.
Mas, diz Espinoza, não foi nada disso: Deus não deu uma ordem a Adão – ele disse a Adão o funcionamento e o entendimento da natureza. Adão não entendeu… porque Adão funciona pela consciência – e a consciência é impotente para compreender o funcionamento da natureza. Então, nós, adâmicos: os ignorantes!
Daí, o que eu estou falando é algo muito sério – nós estamos praticamente “na porta” do século XXI, (não é?); na porta das maiores revoluções que já aconteceram neste planeta – revoluções que vão do computador à música eletrônica; que vão ao corpo do homem: aos códigos genéticos, às relações da biologia molecular. Esses acontecimentos não são capazes de ser compreendidos pela consciência – por isso a grande questão do Espinoza é – dar potência ao pensamento, aumentar a potência do pensamento. E ele funda um método que se chama FORMAL E REFLEXIVO – um método que pega o pensamento e – constantemente – o estimula a aumentar a sua potência de entendimento. Ou seja: o que Espinoza está acabando de nos dizer é que o homem pode – não é; mas pode – ser livre e existir sob o regime do entendimento. Mas o homem é adâmico e vive sob o regime da obediência e da recompensa e da punição. A grande questão do Espinoza seria produzir um homem livre!
Então, isso que eu inicialmente chamei de método – não é um método: é uma IMAGEM DO PENSAMENTO. Ou seja: o que distingue um filósofo do outro – por exemplo: o que distingue o Platão do Kant; ou Hegel de Berkeley – é que cada filósofo produz a sua própria imagem do pensamento. Então, cada filósofo compreende o pensamento como alguma coisa que vai utilizar. E vocês vão verificar a diferença assim BRUTAL, quando você estuda Platão e quando você estuda Nietzsche… e, ao mesmo tempo, a incrível semelhança – porque ambos estão construindo imagens do pensamento que começam [de uma maneira] e depois… derivam.
Então, essa idéia de Imagem do Pensamento – que eu coloquei pra vocês – é o fundamento, o constituinte do Deleuze. Deleuze produz UMA NOVA IMAGEM DO PENSAMENTO.
- Qual?
Deleuze não recobre os filósofos; ele não representa os filósofos sobre os quais ele fala. O que ele faz é dizer aquilo que o filósofo – sobre o qual ele está falando – não disse!
É isso!
Então, quando Deleuze estuda Bergson – e apresenta uma obra sobre Bergson; quando estuda Nietzsche – e apresenta uma obra sobre o Nietzsche; quando estuda Espinoza – e apresenta uma obra sobre Espinoza – nós tomamos um susto! Porque vemos um Espinoza, um Hume, um Nietzsche que nós não encontramos em outros historiadores da filosofia. Nós não encontramos de maneira nenhuma – ao ponto de Adão, o ignorante, dizer:
- Mas o que é isso? Ele está dizendo o que o filósofo não disse?
Sim! Ele não precisa reproduzir o filósofo. Porque não teria nenhum valor – nenhum valor para o pensamento – se a única prática que nós pudéssemos fazer quando nós nos conjugamos com um filósofo fosse reproduzir o que ele disse. A história da filosofia já teria nascido morta – e sem o menor sentido!
Então, o pensamento – isso não precisa ser só em mim; pode ser em qualquer estudante de filosofia: pode ser em todos nós – sempre que nós nos depararmos com alguma coisa com a qual nós nos agenciamos, nós temos que – nesse agenciamento – fazer a renovação daquele pensamento. Ou seja: a grandeza do espírito, o poder do espírito, o poder do pensamento – é exatamente a prática dessa renovação.
E aqui eu coloquei esta noção que se chama – Imagem do Pensamento. (Certo?) Eu vou voltar a isso na próxima aula. Vocês então já sabem que existiria – eu vou clarear mais! – existiria uma imagem chamada IMAGEM CLÁSSICA E DOGMÁTICA do pensamento. Essa imagem clássica e dogmática do pensamento é exatamente a imagem do pensamento que Platão introduziu na história.
Platão introduz uma imagem do pensamento em que o pensamento quer e ama o VERDADEIRO, e detesta o falso ou o erro; e em que o pensamento – por sua boa natureza – não pára de buscar a verdade. Quando nós encontramos a imagem do pensamento… (Olhem que chocante, hein?) Quando nós encontramos a imagem de pensamento de um esquizofrênico – o Artaud. Quando a gente utiliza uma linguagem de clínica – esquizofrênica… a gente tem que funcionar de duas maneiras: porque existe um esquizofrênico psicossocial – uma esquizofrenia produzida pelo próprio capitalismo; e existe a esquizofrenia do pensamento. O Artaud era ao mesmo tempo esquizofrênico do campo social e esquizofrênico do pensamento. Então, [a questão d]o pensamento do ARTAUD – ele dizia: “Eu não consigo pensar, eu não consigo pensar” – e daí vinha seu grande sofrimento.
- Por que ele não conseguia pensar?
Porque o pensamento não pensa por boa vontade, nem por boa natureza; o pensamento só pensa – se for forçado a pensar. É preciso forçá-lo a pensar – motivo pelo qual, na aula anterior, eu disse que o corpo força o pensamento a pensar – e o pensamento vai pensar o corpo. (Certo?)
Então, esse estranho “filósofo”, que eu acabei de citar – o Artaud. Seria um choque, dentro de todas as universidades do planeta, chamá-lo de filósofo! Mas, sem dúvida nenhuma, um grande pensador – o maior pensador: que compreendeu exatamente o que seria o pensamento. O pensamento é como se fosse um ser num sono hipnótico: ele não quer fazer nada – é preciso forçá-lo. E aí – quando ele é forçado – ele vem pensar.
Proust e também Espinoza – eles dizem que o pensamento só pensa em razão do ACASO DOS ENCONTROS. Então, um determinado tipo de encontro pode forçar o pensamento a pensar. Se nós voltarmos a Platão, nós vamos encontrar coisas platônicas assustadoras – de tão bonitas! Porque há um momento da obra de Platão – isso é na República-Livro 10, em que ele diz – exatamente – o que Artaud vai dizer 2.300 anos depois. Ele diz que o pensamento – só pensa – se for forçado a pensar. E Platão vai e diz: “o que força o pensamento a pensar é a contradição”. Então, sempre que um homem estiver no mundo – e não se deparar com a contradição – ele não pensa! Ou seja, o homem fica submetido ao que se chama DOXA – à opinião, à variação das suas opiniões. Ele só pensa, segundo Platão, na hora que ele se depara com a contradição; por exemplo: quando ele nota que esse dedo daqui [Claudio mostra o dedo indicador] é menor do que este [Cl. mostra o dedo médio] e maior que este [Cl. mostra o polegar]. Logo, este dedo [o indicador] é ao mesmo tempo maior e menor – isso é uma CONTRADIÇÃO. Este dedo que está aqui força Platão a pensar.
- Pra que ele vai pensar?
Para – dessa contradição do maior e do menor – construir a sua Teoria das Essências, a sua Teoria das Idéias e fazer com que a contradição desapareça – e o apaziguamento volte ao seio dos homens.
Então – na verdade – o que Platão quer é que o pensamento apazigúe os temores e os sustos da humanidade. O que, por exemplo, Deleuze – numa linha nietzschiana – colocaria, é que não; nada disso! – o pensamento não busca apaziguamento; o que ele busca é exatamente a conquista, a criação e a invenção. Então, quando o pensamento começa a funcionar, os seus objetivos não são jamais satisfazer os interesses humanos de acordo e de paz. O que o pensamento faz é um mergulho – às vezes sem volta – no CAOS. É tolice, ignorância completa, dizer que o CAOS é o maior inimigo do pensamento. O CAOS é inteiramente afim ao pensamento. Eles se complementam, fazem uma afinidade. A questão aqui é que o pensamento só pensa quando ele é forçado a pensar e o que ele pensa é o CAOS. A matéria do pensamento é o CAOS.
(virada de fita!)
O maior adversário do pensamento é a opinião – porque a opinião é variável e a questão dela nunca é aumentar a potência do pensamento. O método aristotélico se origina…
- Qual o método do Aristóteles?
O método demonstrativo!
O método do Aristóteles é afastar os perigos do falso – e conduzir o pensador à verdade. O método dele chama-se MÉTODO DEMONSTRATIVO e dentro de seus objetivos – evidentemente – ele obteve todos os êxitos. Então, a partir de agora, eu coloco que existiria uma IMAGEM CLÁSSICA DO PENSAMENTO – cujo modelo é Platão – que seria simultaneamente chamada de IMAGEM DOGMÁTICA DO PENSAMENTO; e uma série de imagens do pensamento que correm permanentemente o risco de serem destruídas pela sua matéria – o CAOS. (Certo?)
Essa foi uma introdução básica pra nossa compreensão – pelo menos pra sabermos o que eu estou fazendo!… O que eu estou fazendo de diferente é porque eu caminho numa imagem do pensamento que não é a imagem clássica. .. e – exatamente porque não é a imagem clássica – permite-me compreender que quando Godard e Cassavetes fazem um filme; ou quando o Egon Schiele e Bacon pintam um quadro; ou quando Boulez faz uma música; e assim por diante… – todas essas práticas são literalmente práticas de pensamento. Ou seja: a arte, a filosofia e a ciência só trabalham pensando – são três práticas em que o pensamento estaria inteiramente presente. Vocês já sentiram, vocês já sabem as dificuldades que eu terei para sustentar isso. A afirmação que eu fiz agora foi que filosofia, arte – principalmente arte, porque geralmente é muito confundida!… [frase incompleta]
Quando um artista produz a sua obra – Pollock: que sobe em cima de uma tela e começa a respingar tintas nessa tela – produz um pensamento. E eu vou mostrar [essa questão] pra vocês e vocês vão entendê-la no percurso da aula.
Agora, eu abandono essa exposição ainda numa tecnologia – tecnologia de aula. Abandono essa exposição… – e passo para um confronto: um confronto, cujo território é o pensamento do Deleuze. É como se – no pensamento do Deleuze – dois adversários se confrontassem! Esses dois filósofos que eu vou colocar – e confrontar – chamam-se Bergson e Husserl. Husserl é alemão; Bergson é francês. Eles nasceram mais ou menos na mesma época – por volta de 1860 – não sei precisar: por ali! E morreram mais ou menos na mesma época – o Bergson em 1941; o Husserl em 1939-40 – não sei exatamente.
Então, quando esses dois filósofos – ambos realmente filósofos – começaram a produzir as suas filosofias – e aqui a gente precisa compreender isso – o filósofo é forçado a produzir a sua filosofia pelo próprio pensamento. O pensamento se sente forçado a pensar! Mas há também uma pressão do campo social. Uma pressão do campo social – que produz uma ressonância. Eu não estou dizendo que o filósofo é determinado pelo campo social – isso é uma idiotia! Ele não é determinado pelo campo social coisíssima nenhuma! Mas, o campo social pode pressioná-lo. PRESSIONÁ-LO – e não produzir o pensamento dele – é diferente!
Então, no fim do século XIX e no princípio do século XX uma questão muito forte atravessava a filosofia e a ciência: uma questão muito poderosa! E, agora, vocês vão me permitir usar uma linguagem apropriada para esse momento, para esses dois filósofos. Pode ser uma linguagem que dê uma pequena complicação pra vocês. Então, antes de eu começar a falar, eu vou colocar pra vocês que a PALAVRA – qualquer palavra – traz nela uma ambigüidade essencial. Ou uma equivocidade essencial. Então, às vezes, a gente usa uma palavra procurando uma corrente de sentido – e às vezes a gente usa a MESMA palavra numa outra corrente de sentido. Então, o que aconteceu foi que, no fim do século XIX, no começo do XX havia uma questão pressionando os pensadores – que era a DISTÂNCIA entre a CONSCIÊNCIA e o MUNDO. A consciência como o órgão, como o instrumento principal do pensador. E ela, a consciência, com a função de pensar o mundo que estaria a sua frente. Então, a consciência de um lado – o mundo do outro.
O que acontecia naquele momento é que havia um ABISMO; uma separação RADICAL; uma separação IMENSA – entre a CONSCIÊNCIA e o MUNDO. A consciência não conseguia atingir o mundo, e por isso – ela batia fotografias do mundo. Não estou exagerando! Então a consciência seria uma grande fotógrafa, reproduziria o mundo: re produziria o mundo – mas não seria capaz de mergulhar DENTRO dele.
Essa questão pressionou Bergson e Husserl: eles foram imensamente pressionados por essa questão.
- Então, o que ambos vão querer fazer?
Aproximar a consciência do mundo.
Pra ficar mais claro, eu vou mudar a palavra MUNDO para COISA.
Então, no momento em que Bergson e Husserl aparecem, a consciência e a coisa – a consciência e esta mesa – estão separadas por um IMENSO abismo. Forçando a consciência a produzir o que se chama – REPRESENTAÇÕES.
As representações são um fenômeno especulativo. Um fenômeno especular. Um fenômeno de espelho. Ela representa – mas não penetra naquilo.
Husserl vai dar o seu grito de guerra; e Bergson vai dar o seu grito de guerra.
- Qual é a questão deles?
A aproximação [entre a] consciência [e as] coisas.
Husserl vai e diz: a consciência é sempre consciência de alguma coisa. Na tese dele, ele já começou a aproximar a consciência das coisas. Então, a definição de consciência para o Husserl – definição definitiva e invariável é: “a consciência é sempre consciência de alguma coisa”.
E o Bergson, que tem a mesma questão, ou seja: aproximar a consciência das coisas, diz: “a consciência é alguma coisa”.
Então, nós temos essas duas linhas brotando… iluminando o princípio do século XX. Uma linha que diz: a consciência é consciência de alguma coisa – e a outra que diz: a consciência é alguma coisa.
Husserl funda sua teoria da consciência através de uma propriedade, de uma categoria que tem sua origem basicamente na Idade Média; depois ressoa no século XIX – com um filósofo chamado Franz Brentano; e depois vai repercutir no Husserl – que é a categoria de INTENCIONALIDADE.
- O que quer dizer intencionalidade? O que Husserl quer dizer com intencionalidade?
Ele quer dizer que a consciência é um ser relativo. Não é que a consciência seja relativa hoje – e daqui a pouco não seja mais. Ele quer dizer que a essência da consciência é a RELAÇÃO – e a relação com AS COISAS. Então, a consciência seria algo que nunca estaria fechado em si mesmo; a consciência estaria sempre debruçada em cima das coisas – por isso – consciência de alguma coisa. E esse princípio que o Husserl vai colocar… – o princípio, a essência – chama-se intencionalidade.
Então, Husserl vai montar a doutrina da intencionalidade para sustentar sua tese de que a consciência é uma abertura para o mundo.
Bergson não diz isso! Pressionado pela mesma questão – sem que se possa afirmar que um conheceu a obra do outro. Se isso ocorreu, um não deu importância para o outro: No máximo – se. .., talvez. .., existe o Bergson na França…existe o Husserl na Alemanha…, (não é?)
Alº.: Isso parece a sincronicidade!…
Cl.: Isso que está acontecendo deles dizerem a mesma coisa? Alguma coisa assim como o “espírito da época” – não se pode dizer assim? É! Mais na frente eu vou mostrar pra vocês uma categoria que eu vou chamar de ressonância – que vai dar exatamente nessa questão que você colocou. É como se – numa determinada época – ressoassem problemas semelhantes. É isso que permite nascer – por exemplo – uma escola de pintura – a barroca – com as mesmas questões: os pintores variam – mas mantêm as questões essenciais. Como no Renascimento, e assim por diante…
Então, o Bergson não fala consciência de alguma coisa. Ele fala – a consciência é alguma coisa. Bom. Vamos agora entrar nesses dois filósofos: dar conta deles! Porque eu tenho a impressão que se nós dermos conta deles – desses dois filósofos – eu me fortaleço mais no encadeamento das nossas aulas.
O Husserl faz a seguinte afirmação: ( Atenção! – porque o solo filosófico é um solo escorregadio: às vezes a gente pensa que ouviu alguma coisa – mas não ouviu! Ou deixa alguma coisa passar, que a gente não verifica – não ouve! (Entendeu?) Ele é um solo que escapa da gente! Eu posso dizer que o solo da filosofia – isso traria uma contrariedade para o Platão – é um solo móvel, um solo nômade, é como se fosse um deserto, é como se fosse uma geleira, é como se fosse um mar – ele está sempre em movimento! É um solo que está sempre em movimento, então você tem que estar sempre refazendo seus campos conceituais. (Não sei se vocês entenderam bem aqui). É como se o filósofo estivesse condenado à insônia permanente para re fazer as suas práticas de conceituação – porque o solo não pára de se mover.
Então, o Husserl vai explicar o que ele chama de COISA. Coisa – para o Husserl – é todo o universo. Então, o mundo, o universo, a coisa – para ele – é um negrume absoluto! São as trevas. Este universo são trevas: as trevas mais absolutas!
E a consciência chega neste universo para iluminá-lo. Ela seria como um jato de luz de uma lanterna, que viria iluminar a escuridão, a inércia escura das coisas. Mas vejam bem: se o UNIVERSO para o Husserl é trevas e a consciência é luz…
- Qual é a conclusão que se chega nesse solo escorregadio?
É que a consciência não é produto do universo; porque – se ele fosse produto do universo – ela teria que ser escura, trevas!
Então, nessa filosofia, a consciência não é produto deste universo. Isso que eu acabei de mostrar para vocês é que o Husserl colocou a consciência num plano de TRANSCENDÊNCIA. Transcendência semelhante às essências platônicas! Porque a gente não sabe de onde vem essa consciência. Talvez tenha tido a necessidade de um Deus para fabricá-la – porque a consciência é luz e o universo é trevas!
- De onde vem, afinal, a consciência intencional – foco de luz do Husserl?
De outro lado, Bergson diz: – “O universo é luz, é linha de luz, é iluminura, são raios permanentes em velocidade infinita de luz. E nesse universo de luz – dentro desse universo de luz – aparecerá a consciência. Então, para o Bergson, a consciência pressupõe o que se chama um PLANO DE IMANÊNCIA.
- O que é um PLANO DE IMANÊNCIA?
A consciência não é DUAL ao mundo. Ela está dentro dele – ela emerge dessas luzes. Por isso, a consciência do Bergson e a consciência do Husserl têm uma semelhança – porque a consciência do Husserl projeta luz; a consciência do Bergson é luz. É LUZ! Mas acontece que a consciência do Bergson – que é luz – não tem que iluminar mundo nenhum – porque o mundo é a própria luz. Então, nesse universo do Bergson, tudo aquilo que existir é necessariamente iluminado; enquanto que no universo do Husserl a única coisa que é iluminada é a consciência.
Então, nós nos defrontamos com dois filósofos que trariam a mesma questão – eles estariam pressionados pela mesma questão – a questão de explicar o que seria a relação do pensamento com o mundo e o Bergson lança – eu estou mudando a palavra consciência pela palavra Pensamento! – o Bergson lança o pensamento para dentro da luz. Chama-se “Plano de Imanência”. Enquanto que o Husserl coloca a consciência fora do Universo. Logo: existe um princípio de transcendência na obra do Husserl.
Essa questão do princípio de transcendência eu não vou perseguir hoje, não. Mas eu vou mostrar pra vocês os três grandes princípios de transcendência que acontecem na filosofia ocidental. E Deleuze diz: – “A transcendência é o maior veneno do pensamento.”
Então, o que eu estou dizendo do Husserl, eu acho que deu para compreender com facilidade, porque a consciência husserliana não emerge daquele plano de trevas – ela está separada dele. Enquanto que, para o Bergson, a consciência vai emergir do plano de luz. Então, aqui, agora, é fácil: tornou-se fácil… O Husserl, para explicar a consciência, produz um universo negro – de trevas! E a consciência seria um rastro transcendente que jogaria luz dentro daquele universo. Bergson coloca o universo de luz – e vai jogar a consciência ali dentro. Vamos ver como:
Há, no pensamento jurídico, duas expressões bastante poderosas. Uma se chama ” de direito ” e outra se chama ” de fato ” – que é mais ou menos o seguinte: você dizer que algo existe de direito, e algo existe de fato.
- Qual seria a diferença fundamental?
Esse algo que existe de direito, mas não existe de fato – seria uma VIRTUALIDADE; enquanto que o que existe de fato – é REAL e ATUAL.
A diferença de “de fato” e “de direito” – vamos dizer – é que este objeto existe de fato. Ele, então, tem uma existência CONCRETA, REAL e ATUAL. E aquilo que existe de direito não tem propriamente uma existência – é uma POTÊNCIA EXISTENCIAL; uma VIRTUALIDADE.
Virtualidade é mais do que nada. A virtualidade é alguma coisa que já está inscrita ali, mas – por algum motivo – não pode se tornar de fato.
Bergson diz que esta natureza nas suas origens – a palavra origem aqui pesa um pouco! – é luz. Só luz! E a consciência já está dentro dela; mas não de fato – de direito. Quando Bergson constrói o que eu chamei de Plano de Imanência, ele está falando que este universo é constituído de luz – e a luz tem uma velocidade infinita. Então, é a luz – numa velocidade infinita! Mas ele vai dar… – neste momento, eu não vou explicar os motivos, senão nós faríamos um deslize muito grande… Ele vai colocar luz – e matéria, imagem e movimento como sinônimos. São sinônimos! Então, movimento, luz, matéria e imagem – são sinônimos; mas isso eu não vou explicar hoje, (tá?)
Então, a gente já sabe de uma coisa: que nesse universo do Bergson nada repousa; tudo está em movimento – e em movimento infinito!
E agora eu abandono, sobretudo, a noção de matéria – e passo para a noção de imagem.
Ou seja: o universo do Bergson é um universo em que as imagens atravessam umas às outras em velocidade infinita, pela eternidade afora. Elas não param de atravessar umas às outras. E cada imagem dessas é um bloco de luz.
Então, vejam bem: um bloco de luz… e uma imagem, que também é um bloco de luz. Esse bloco de luz atravessa o outro: não pára; ele atravessa! Então, as imagens do Bergson não têm o poder de reter ou deter as outras imagens – todas elas são translúcidas, no sentido de que são transparentes, são atravessadas. É como se as imagens do Bergson fossem “fotógrafos frustrados” que batessem a fotografia – mas ela não se efetuasse, (certo?) Ou seja: cada imagem dessas recebe a outra imagem; mas não é capaz de detê-la. Porque todas as imagens do mundo bergsoniano – desse Plano de Imanência dele – são imagens translúcidas. Então – por serem translúcidas – não detêm as outras; mas – por serem translúcidas – são atravessadas pelas outras. E isso é o princípio da consciência. O princípio da consciência – é ser penetrada por imagens!
Mas, como nesse plano de imanência do Bergson, as imagens são penetradas [ umas] pelas outras – esse é o princípio da consciência: as imagens entrarem em nosso interior: n aquelas imagens que estão ali. É esse o princípio dela! Mas acontece que – quando a consciência recebe uma imagem – ela tem que deter aquela imagem. No plano de imanência do Bergson, isso não pode acontecer – porque todas as imagens são translúcidas. E sendo translúcidas, ao serem penetradas pelas imagens, não as detêm – daí o nome CONSCIÊNCIA DE DIREITO. Ou seja, exatamente como é uma consciência, ela recebe as imagens, mas não é capaz de detê-las.
Al.: Uma pessoa normal —? —-? —? — poder deter!…
Cl.: Poder deter: exatamente! Aí fica muito nítido que no Plano de Imanência do Bergson as imagens são da consciência, porque elas recebem [essas imagens], mas não [as] detêm. Por isso, elas são consciência DE DIREITO. Melhor explicado: diz o Bergson – “O universo é esse processo de luz infinita. Mas, num determinado momento desse universo – que é luz, matéria e imagem, (certo?) – conforme eu falei pra vocês, vão nascer os corpos, vão nascer as ações e vão nascer as qualidades. Por isso, usarmos substantivo, verbo e adjetivo. Ou seja: naquele Plano de Imanência – que era só luz – não havia corpos. Para que os corpos apareçam – diz o Bergson – é necessário que [nesse universo de] luz, nessa matéria fluente, nesse turbilhão universal aconteça um pequeno resfriamento. (E sse, que nos causa gripe (não é?) – pelo menos em mim!)
Então, é quando surge esse resfriamento – diz o Bergson – que os seres vivos vão aparecer; e os seres vivos vão ser marcados por uma coisa de uma originalidade excepcional – pela consciência DE FATO. E a consciência de fato do Bergson, à diferença da consciência do Husserl, que é uma projeção de luz – é uma TELA DE CINEMA: é um ÉCRAN!
A função do écran é deter a luz. E, portanto, a consciência torna-se uma tela que detém a luz que [chega], ou seja, a consciência do Bergson tem a capacidade de cortar um pedaço do fluxo infinito das luzes. E é exatamente com esse pedaço que ela lida. Ou, melhor explicado: cada espécie que existe no Universo – a mosca, o cachorro – cada uma delas recorta essa luz de uma maneira que lhe é própria – chama-se MUNDO PRÓPRIO. Ou seja: se entrar aqui uma barata, por exemplo – essa barata vai recortar a luz do universo de maneira diferente daquela que nós recortamos. Então, para o Bergson, a consciência de fato é aquela que recebe luz, mas ao invés dessa luz transpassá-la, a consciência detém essa luz.
Então, para o Bergson, a consciência de direito antecipa a consciência de fato. E, para ele, não é necessário procurar a explicação do nascimento da consciência numa transcendência qualquer, como fez o Husserl.
- De onde Husserl tirou a consciência?
Sem dúvida nenhuma, de Deus – como sempre!
Bergson não necessita de Deus para produzir a sua consciência. Mas, no momento em que aparecem os corpos, no momento em que a vida se instala aqui neste planeta – e a vida é singular: de uma singularidade imensa! – imediatamente, ou seja: junto com ela nasce o ÉCRAN – que detém a luz. Todo ser vivo tem esse ÉCRAN, essa capacidade de reter a luz que lhe interessa.
(final de fita)
O resto, o infinito de luz do universo, o indivíduo não apreende. Ele apreende um pequeno ponto: recorta um pequeno ponto – como um enquadramento em cinema. Ele enquadra e recorta aquilo – e para o resto da luz ele é translúcido. O resto da luz ele não apreende. Isso se chama percepção. Bergson nos mostra nitidamente que a percepção é necessariamente utilitária. Ela está permanentemente a serviço daquele ser vivo. A percepção tem uma existência única e exclusiva, interessada, utilitária, a serviço daquele ser!
- Por quê?
Porque a percepção é uma tela! A percepção apreende um determinado movimento e – ao apreender esse movimento – ela vai ter que devolver movimento para o universo.
- O que quer dizer “devolver movimento para o universo”?
Uma ameba se defronta com o movimento de elementos químicos, que ela apreende pela percepção – e a ação da ameba é capturar esses elementos químicos. Ou, então, a ameba apreende pela percepção a presença de um predador – não sei qual é o predador da ameba! – e a ação é dar no pé: fugir! É importante que vocês saibam que a ameba – um protozoário – na hora em que vai capturar os alimentos, produz o que se chama “pseudópodes” – ela produz um conjunto de órgãos que funciona apenas naquele momento da captura dos alimentos; e depois desaparece.
- O que quer dizer isso?
Todo ser vivo tem um esquema dentro dele, chamado – ESQUEMA SENSÓRIO-MOTOR. O esquema sensório-motor é necessário e participa de todo e qualquer ser vivo. Antes do nascimento do vivo, os movimentos são ininterruptos e em velocidade infinita. Quando o ser vivo aparece, logo, quando aparece o esquema sensório-motor, ele é constituído de três elementos, ou melhor: três imagens, ou melhor: três luzes a percepção – que tem a capacidade de apreender os movimentos que vêm de fora; a reação ou a ação – que responde àquilo com que a percepção entrou em contato. A ação é uma espécie de prolongamento da percepção, que apreende o que vem de fora. E entre a percepção e a ação nasce um suntuoso elemento – o VIVO! Nasce o que o Bergson chama de um PEQUENO INTERVALO.
Se fôssemos compreender no sujeito humano – esse pequeno intervalo seria o CÉREBRO.
Que é o quê, exatamente? Que é o vivo – quando apreende o mundo que vem de fora, os movimentos que vêm de fora; essa apreensão dos movimentos que vêm de fora não se prolonga imediatamente na reação – passam pelo pequeno intervalo. E o pequeno intervalo – que se fôssemos nós, poderia ser o cérebro – tem como função decidir qual o movimento de resposta que vai ser dado. Por isso, esse pequeno intervalo produz o que não havia no primeiro sistema de imagens (que eu expliquei pra vocês) – que se chama hesitação. A vida introduz a hesitação! Não é dúvida, hein? – é HESITAÇÃO. Ela hesita [sobre] qual caminho seguir – por isso, a vida vai trazer uma ralentação do movimento. Ralentar o movimento.
A vida introduz dentro do universo o movimento ralentado – exatamente porque essa hesitação do pequeno intervalo faz com que as respostas dadas pela reação – que podem ser múltiplas – escolha [apenas] uma. Isso é o que se chama – usando a antropologia – a tragédia do homem, porque o sonho do vivo é agir dentro de todos os seus possíveis. Vamos dizer que nós recebemos o movimento de fora e temos 50 mil possibilidades de resposta a esse movimento – nós damos uma só; e 49.999 ficam perdidas e sonhadas por nós. Talvez – seja essa a causa das nossas angústias!…
(intervalo para o café)
É evidente que eu sei a dificuldade da exposição que eu fiz – eu sei que [o que eu falei] é muito difícil! Nessa exposição difícil, que eu fiz, – sem a menor preocupação -, eu afirmei que o nascimento do vivo pressupõe o surgimento de um pequeno intervalo. E que antes dele, do nascimento do vivo, esse pequeno intervalo não existia. Então, eu posso dizer pra vocês, com a maior facilidade, que o Bergson constrói na obra dele dois sistemas de imagens. (Vamos usar “falsamente”, não é? Bergson não usaria assim!)
No primeiro sistema de imagens não há intervalo. No segundo sistema de imagens, há intervalo. Então, para Bergson, o primeiro sistema de imagem é ACENTRADO e de direções infinitas – esse é o primeiro sistema. Ele é acentrado – ele não tem centro e tem múltiplas direções.
O segundo sistema – onde emergiu o intervalo – aparece um centro de indeterminação. Esse centro de indeterminação é o vivo. Ele é um centro hesitante; e, como ele é hesitante, ele é um centro de indeterminação.
Então eu vou fazer isso: eu vou manter a idéia de que o Bergson construiu dois sistemas de imagens. O que eu peço pra vocês é para associarem, ao primeiro sistema de imagens, a noção de acentrado; e ao segundo sistema de imagens, a noção de centros indeterminados.
- Ficou bem assim?
Centros indeterminados e acentrado.
Ao primeiro sistema – acentrado e de múltiplas direções – eu chamarei, de um modo musical – de espaço liso; de um modo histórico – de espaço nômade; de uma maneira ainda mais musical – de tempo não pulsado.
Ao outro sistema – onde está o intervalo e onde aparecem os centros de indeterminação – eu vou chamar de espaço estriado, tempo pulsado e espaço sedentário.
E assim, nós poderemos comparar o primeiro sistema de imagens ao imenso oceano, ao imenso deserto – que não têm centros e têm múltiplas direções.
Então, é exatamente isso que vai fundamentar minha aula pra vocês. É um momento em que eu tenho que me garantir de que aquilo que eu estou dizendo está sendo compreendido.
Bergson constrói dois sistemas de imagens – num deles, coloca um intervalo; no outro, não! No primeiro, não há intervalo. E não há consciência de fato – só há de direito. No segundo, há consciência de fato.
Na verdade, esses dois sistemas são um só. O segundo sistema é um sub conjunto, num imenso conjunto – pra mostrar pra vocês que não há dualismo no pensamento bergsoniano. Então, nós teríamos de um lado, o pequeno intervalo – que faz uma modificação no movimento; e de outro lado, o acentramento. Eu também posso chamar o primeiro sistema de imagem do Bergson de CAOS. E ai, mostrar pra vocês que o CAOS não é propriamente desordem. O que eu estou chamando de Caos é apenas velocidade infinita.
(Mas agora, a partir disso que eu expliquei pra vocês, eu começo a sentir necessidade de avolumar, de aumentar a potência do que eu estou dizendo.)
Esse primeiro sistema de imagem do Bergson – que eu identifiquei ao CAOS – eu o chamei de Caos, em virtude de que, nele, tudo [está em] velocidade infinita e tudo está misturado – como se houvesse uma mistura de tudo com tudo. Nada se distingue, nada ressalta: é uma mistura total dos componentes desse primeiro sistema de imagens. Isso daí me possibilita uma investida no neo-platonismo – que nos trará uma maior potência de entendimento. Exatamente a proposta do Espinoza: sempre aumentar a potência do entendimento!
Os neo-platônicos, à diferença do pensamento religioso, davam à idéia de eternidade uma noção completamente original – porque o pensamento religioso, quando fala de eternidade, diz que a eternidade é uma existência que se prolonga pelo infinito afora e é aquilo onde não há mudança. Então, quando você ouve o pensamento religioso falando de eternidade, ele vai nos dizer que na eternidade as existências se prolongam ao infinito. Quem existir – existe infinitamente. E na eternidade não haveria mudança.
A posição neoplatônica é que a eternidade é a mistura: é onde tudo está misturado – nada está distinguido. (Eu acho que isso daqui vai dar um ponto de partida muito poderoso pra nós…)
Para o neo-platônico, na eternidade não existe tempo. Na eternidade o tempo não existe! (A tenção para o que eu vou dizer!) Ele, o tempo, não existe ATUALMENTE.
- O que quer dizer atualmente?
[Claudio faz um gesto qualquer e diz:]
Olhem a minha mão: eu faço este gesto – esse gesto se atualizou! [Claudio vai modificando os gestos...] Mas eu poderia fazer este aqui, este aqui, este [outro] aqui… uma infinitude de gestos… Então, um se atualiza – e os outros são virtuais.
Então, para os neo-platônicos o tempo é uma virtualidade na eternidade. Como? Ele é virtual porque na eternidade, as dimensões do tempo ainda não se distinguem – elas estão misturadas. Os latinos aproveitaram isso e deram à noção de eternidade o nome de COMPLICATIO.
- O que é complicatio?
Complicatio quer dizer que tudo que está na eternidade está COMPLICADO, co- implicado: eles se co-implicam, mas não se distinguem, não se ressaltam. Ou seja: na eternidade há tempo – mas TEMPO VIRTUAL. Porque não há ainda essa distinção, por exemplo – em passado, presente e futuro – que é nossa! Lá, na eternidade, [todas essas dimensões] estão inteiramente misturadas. Então, é essa a noção que o neoplatônico nos dá de eternidade. Fazendo essa noção crescer, depois, com a noção de complicatio – aquilo que é eterno é inteiramente complicado. E isso não é difícil de entender. Ainda é neoplatônico:
Nós, os vivos, não paramos de mergulhar na eternidade. No SONO, quando nós dormimos, nós mergulhamos na eternidade. No sono – não é no sonho! No sono, tudo perde a nitidez: tudo se mistura. Por isso os amantes do cinema noir – e eu estou vendo uma daqui! – não se surpreendem quando Humphey Bogard leva uma coronhada na cabeça, e ao acordar diz: “onde estou”? Porque ele perdeu toda a referência. Na eternidade, no CAOS – que é o complicatio – o que não existe é referência, não há ponto de referência.
Este momento é um momento provavelmente sublime – como se diz sublime em Kant (na frente eu vou explicar a vocês o que é…) – para se explicar o nascimento do tempo. Ou seja: tornar o tempo atual, porque na eternidade o tempo é virtual.
Tornar o tempo atual é distinguir as suas dimensões. Então, vejam o que eu vou dizer:
É falso nós pensarmos que as únicas dimensões que o tempo tem são passado, presente e futuro. Não! Passado, presente e futuro são as maneiras como o tempo se distinguiu para nós. Como essas dimensões se tornaram distintas – como elas foram arrancadas da eternidade. Por exemplo: se vocês acompanharem de um lado a obra de Proust (e eu vou mostrar) – a obra literária de Proust; e se, de outro lado, vocês acompanharem a obra cinematográfica do Visconti, vocês vão encontrar dimensões de tempo que não existem nessa noção de tempo que nós temos – porque a nossa subjetividade materializada só pensa em termos de passado, presente e futuro.
Vocês encontram no Visconti uma noção de tempo muito clara, que ele chama de – “tarde demais”. Mas não é só isso! No Proust, vocês vão encontrar uma dimensão do tempo que ele chama de “tempo redescoberto”. Então, quando nós fizermos esse procedimento – que é o procedimento mais grave da nossa aula; que eu falei que seria sempre uma aula de pensamento, corpo e tempo – quando nós formos mergulhar na eternidade pra de lá arrancar o tempo, quem faz essa prática é necessariamente o artista. É necessariamente o pensamento. Só o pensamento pode mergulhar no CAOS e arrancar de lá as dimensões que nele estão misturadas.
Por isso vocês encontram no cinema do Visconti, ou no cinema do Antonione, ou no cinema do Cassavetes, ou no cinema do Godard, vocês encontram distinções de tempo inteiramente originais. O tempo pressupõe o pensamento. Sem o pensamento – o tempo está virtual nesse CAOS que se chama eternidade.
Neste instante, eu vou-me servir de um pensador de língua inglesa do século XVIII – Hume, escocês – para fazer determinadas passagens, dentro de certos limites: eu vou conter o meu discurso!
- O que eu quero dizer com conter?
É que se eu não fizer uma contenção no meu discurso, ele se esparrama. Ele se esparrama numa velocidade ilimitada – ao ponto de se tornar o primeiro sistema de imagens do Bergson. Eu tenho que fazer uma contenção no meu discurso – da mesma fora que, com uma garrafa, nós contemos os fluidos do vinho. É a mesma Coisa!
A nossa questão agora – já que eu levantei a idéia de eternidade – que eu identifiquei à complicatio; que eu levantei a idéia de Caos – que eu também identifiquei à eternidade… Vejam bem:
CAOS igual à eternidade. Então, a produção do tempo se origina na eternidade. Ou seja, é da eternidade que o tempo vai sair.
Momento terrível de difícil – que eu terei que fazer todos os trabalhos na exposição da aula, para que haja a possibilidade de vocês compreenderem. Eu usarei qualquer recurso: o meu objetivo é que vocês compreendam. Nós não temos muito tempo, nós temos que seguir, eu disse isso pra vocês: que a aula que eu dou é ralentada, ela é lenta – mas entre as aulas a velocidade é absoluta. Entre as aulas é uma velocidade bergsoniana!
- O que eu quero dizer com isso?
É que de uma aula pra outra eu já passo de uma velocidade assustadora e isso então me leva, me força a dar a vocês os meios de entender os procedimentos que irão aparecer. Muito bem!
A idéia de eternidade vai ficar fácil – ao ser identificada a Complicatio e a Caos; ou seja, a eternidade é onde tudo está misturado. Usem a expressão co - implicado: tudo se co implica. É a melhor expressão! Pra vocês compreenderem o que vier em seguida.
Mas, se eu explico a eternidade, eu tenho que necessariamente explicar o nascimento do Tempo. Se eu falo em eternidade; se eu tenho a ousadia de nessa filosofia tocar na eternidade, falar sobre a eternidade, de imediato eu tenho que falar sobre o que é o nascimento do tempo. Então eu vou usar essa noção de eternidade – já definitiva – complicatio/co- implicação. E quando eu introduzir – e eu estou introduzindo! – a noção de nascimento do tempo, eu vou lançar a categoria chamada CON-TEM-PLA-ÇÃO, que inicialmente não resolve nada, mas agora o nosso procedimento é desenlaçado (como Aristóteles coloca na lógica dele).
Nós vamos pensar a eternidade, vamos pensar a contemplação, vamos pensar o tempo, mas não vamos enlaçá-los, porque se quisermos enlaçá-los, nós – literalmente – “dançamos”. (Certo?) Vamos pegar cada conceito isolado… Evidentemente isso é arbitrário, porque eles nunca estão assim. Mas é o pedagógico: é a Paidéia; é o meio pelo qual nós vamos chegar ao entendimento.
Então, vocês vejam que é diferente a prática do pensamento e a prática do estudo, da prática da pedagogia. O pensamento tem que fazer voltas; retornos; “outra volta do parafuso” – tipo Henry James; pra poder dar conta do que ele está produzindo.
Noção de eternidade, Complicatio e CAOS: tudo está misturado. Exemplo fisiológico: o sono. No sono – nós estamos na eternidade. (Eu não disse no sonho. A questão do surrealista é o sonho. A eternidade não é questão do surrealista!) E, do outro lado, a noção de contemplação!
Essa noção de contemplação se origina na Grécia, nos filósofos pré-socráticos. Existe até uma anedota irritante – pra nós que estudamos filosofia: que [ao andar], olhando para o céu, Tales de Mileto meteu o pé numa poça d’água. Isso é o filósofo: aquele que se desterritorializa!
Então, a noção de contemplação se origina em duas linhas: numa linha científica ou para-científica; e numa linha religiosa.
A linha científica ou para-científica é o filósofo pré-socrático – que costuma contemplar o céu para falar sobre eclipses, movimentos de meteoros, movimentos de estrelas. .. Então, ele introduz na sua prática existencial o processo de contemplação – o que não deixa de ser uma coisa fantástica – porque os homens são musculares, alimentares, orgânicos: eles vivem correndo pra comer não sei o quê, (não é?)
E aqui os pré-socráticos produziram um corpo… um tipo de corpo do “ideal do Kelvin Klein”: um corpo anoréxico, bem anoréxico – para poder contemplar com alegria. E eles contemplavam as estrelas: é a primeira contemplação.
A segunda contemplação é religiosa. Vocês podem ver que a palavra contemplação já dá conta disso: é TEMPLÁRIA, (não é?): é TEMPLO. É a contemplação das estátuas religiosas – quando não se faz outra coisa senão se embebedar das visões que se tem daqueles objetos tidos como religiosos.
Essas duas contemplações se juntaram na alma do Platão, e na junção dessas duas contemplações, o Platão produziu a terceira contemplação – que é a contemplação propriamente filosófica.
- O que é a contemplação propriamente filosófica?
Segundo Platão, o homem é um ser dotado de alma; e a alma é constituída de três partes: uma parte é a sensualidade; a outra é a virtude; e a terceira é a razão. Esta terceira parte da alma – a razão – é a parte propriamente imortal. E a razão é contemplativa. Onde Platão vai utilizar uma expressão muito bonita – Platão era lindíssimo! – que essa [parte da] alma – a razão – tem um olhar noético: ela contempla as essências. Ou seja: a contemplação das essências – para Platão – é a obtenção da verdade. Mas isso não pode ser feito pelo corpo, por isso pode-se dizer que Platão é um filósofo que pede a morte.
Al º.: Da outra vez você falou que a razão é o pensamento a serviço do orgânico.
Cl.: Logo, Platão é um pensador a serviço do orgânico! É! A conclusão é essa! E é isso que eu estou dizendo!
Alº.: A razão se baseia no conhecimento e na moral!
Cl.: E na moral! Ela se baseia no conhecimento e na moral. E toda essa colocação que o Platão está fazendo, ao distinguir a alma em três partes – colocar a razão como a parte superior da alma e dar à razão uma imortalidade; e dizer que a razão tem um olhar – que não é um olhar da sensibilidade, mas um olhar noético, o olhar da alma, o olhar espiritual; e que esse olhar contempla as essências; e que as essências são invisíveis ao olhar físico, mas visíveis ao olhar espiritual – ele está constituindo toda uma teoria do conhecimento. Ele está construindo uma ontologia e toda uma teoria do conhecimento – inteiramente orgânica.
Essas três posições da contemplação platônica vão aparecer no mundo plotiniano: no mundo neoplatônico. Mas o mundo neoplatônico – aqui acontece uma coisa lindíssima, de uma beleza!… Porque a natureza é feita de fluxos – fluxos que não param de percorrer e se entrecruzar – algumas vezes poderosos, algumas vezes enfraquecidos. Lá – na época do Plotino – percorria um fluxo do animismo. É a mesma coisa que eu dizer pra vocês que num determinado instante um estranho fluxo – chamado fluxo da evolução – percorria este planeta. De outro lado, outro estranho fluxo – chamado fluxo da cognição – percorria o planeta. Quando os dois se encontraram – nasceu a VIDA. Quer dizer: a vida é muito melhor explicada por fluxos do que por átomos!
Então, lá no Plotino, percorria o fluxo do animismo e do Platão vinha o fluxo da contemplação. Esses dois fluxos se encontram. E o Plotino diz “contemplação animista”. Tudo o que existe na natureza contempla – é quase um pensamento leibnitziano A natureza é constituída de pequenos pontos, pequenos pontos luminosos, olhares – que ao contemplar produzem modificações.
- Em quem?
Neles próprios!
Então, o que importa aqui não é nem mesmo – o que é o sonho de qualquer professor – embelezar ou tornar sedu… [...]
(Fim de fita)
[...] compreenda essa passagem de dois fluxos: o fluxo da contemplação e o fluxo do animismo.
Animismo quer dizer que tudo o que existe tem uma animação própria. (Um rochedo, a lama, a água). O animismo é muito próximo do vitalismo do Bergson. Tudo é impregnado de vida. Essa noção de animismo é o componente mais poderoso da biologia moderna, da biologia molecular, pois elas vão constituir aí todo o seu campo de saber.
Fonte: Centro de Estudos Claudio Ulpiano
O que comumente um professor de filosofia faz – é pegar as obras consideradas filosóficas e reproduzi-las em seu discurso: representá-las, retomá-las – geralmente com comentários. Classicamente, é isso o que o professor de filosofia faz! Se ele fala sobre Platão, ele expõe, por exemplo, o problema do Timeu – a demiurgia, as formas, a matéria louca – e recobre o discurso platônico, fazendo algum comentário, às vezes pouco inteligente – porque ele concorda ou não concorda com aquilo.
Mas essa posição não é a minha posição!
- Por quê?
Porque minha associação filosófica é com Gilles Deleuze, que como todo filósofo, pelo menos como todo historiador de filosofia, fala sobre os outros filósofos, ou seja: sobre aqueles que são considerados filósofos. Há na obra de Deleuze, por exemplo, um livro sobre Espinoza; um livro sobre Nietzsche; outro, sobre Hume… mas Deleuze não é um historiador clássico da filosofia, ou melhor: o trabalho dele não é recobrir o que os outros filósofos disseram, não é repetir o que os outros filósofos disseram, nem tampouco comentar sobre o que os outros filósofos teriam falado. Num trabalho sobre Espinoza, por exemplo, chamado Espinoza e o problema da expressão, Deleuze vai se ligar à noção de expressão – que está dentro da obra de Espinoza, mas não tem um valor conceitual como teria, por exemplo, a noção de substância na obra de Aristóteles.
O conceito de expressão – e a partir daqui eu vou tentar mostrar isso – não é para ser explicado ou comentado – porque o Espinoza não nos diz o que é o conceito de expressão. O conceito de expressão no Espinoza é uma prática – é o exercício filosófico propriamente espinozista. Então, Deleuze, ao invés de comentar ou reproduzir Espinoza, viaja nesse conceito de expressão, ou seja, não é uma filosofia sobre Espinoza: é uma filosofia com Espinoza.
(Eu vou melhorar pra vocês!)
Um homem de teatro e de cinema chamado Carmelo Bene é o responsável – junto com outros – pelo que se chama vagamente de teatro moderno. (Que nada tem a ver com o que está acontecendo no Rio de Janeiro – porque não existe [esse tipo de teatro] no Rio de Janeiro!)
Nesse teatro, o Carmelo Bene pega uma peça como Romeu e Julieta do Shakespeare – por exemplo – e faz uma prática excepcionalmente original – que é amputar determinados personagens [da peça original]. Em Romeu e Julieta, por exemplo, ele amputa, ele retira o Romeu. Eu não sei se vocês se lembram: o Mercúcio tem uma vida muito breve em Romeu e Julieta – ele morre, na peça, salvo equívoco, pela espada de Teobaldo, exatamente porque Romeu se intrometeu… ( Atenção, que começa a aparecer a questão:) N o momento em que Carmelo Bene faz isso, ele liberta as virtualidades de Mercúcio.
- Em que sentido?
Passando do Teatro pra vida. .. – pra prática das nossas vidas – haveria sobre qualquer um de nós determinados exercícios de poder que impediriam que nós efetuássemos uma série de virtualidades nossas. Isso que eu estou chamando de “virtualidade” é alguma coisa que, por exemplo, não aparece na obra de Espinoza, ou seja: você não encontra as virtualidades de Espinoza na obra dele. Mas se você utilizar – na filosofia – o processo que Carmelo Bene utilizou no teatro… ou seja, digamos: você decepa alguma coisa dentro da obra do Espinoza, e aí uma virtualidade do Espinoza se libera.
Então, a filosofia do Deleuze não recobre, não representa – ela diz o que Espinoza não disse! Então, seria uma maneira toda original de fazer filosofia: seria uma filosofia das núpcias, dos matrimônios, dos agenciamentos, em que o historiador – no caso Deleuze – ao invés de falar sobre aquilo que o filósofo falou – o que de modo nenhum ele faria! – ele se associa com o filósofo e – os dois – fazem uma viagem recriando Espinoza.
Então, é esse o meu modelo, é assim que eu trabalho, ou seja, eu não recubro de maneira nenhuma o filósofo: eu não faço isso! O que eu procuro, é encontrar nele aquilo com que eu possa fazer o meu processo. Um filósofo de língua inglesa do séc. XVIII, chamado Hume, por exemplo, introduz, no campo da filosofia, a categoria de CRENÇA. Essa categoria – de crença – faz desabar toda a tradição da filosofia! Mas Hume, em momento nenhum, explica o que é a crença. Ele não explica – ele faz uma viagem com essa noção. Então: se eu for falar de Hume, eu vou ser um companheiro dele nessa viagem sobre a crença.
Alª.: E você também faz isso com o Deleuze?
Cl.: Exatamente – é isso que eu estou dizendo!
Alª.: Com o próprio Deleuze?!
Cl.: Com o próprio Deleuze!…Se eu não fizesse isso com o Deleuze, eu não estaria sendo deleuzeano – porque eu estaria re cobrindo aquilo que o Deleuze diz.
Então, evidentemente eu já notei que vocês compreenderam a dificuldade extremada do que é isso… e o porquê de, no começo desta aula, eu ter dito: “Aparentemente eu vou expor pra vocês o meu método!” – mas, de forma nenhuma, é um método que eu estarei expondo. Eu vou colocar outra categoria. Eu estarei, no começo desta aula, produzindo – sempre com os objetivos das aulas [que se seguirão], o que na obra do Deleuze vai-se chamar IMAGEM DO PENSAMENTO – idéia que vocês não encontrarão, de maneira nenhuma, em outro filósofo.
O que eu tenho que fazer agora? Agora – necessariamente – por ser um componente fundamental da minha exposição, eu tenho que levá-los a compreender o que vem a ser Imagem do Pensamento.
Então vamos lá:
Em todas as filosofias – Platão, Hegel, Aristóteles, Kant – não importa qual o filósofo, todos eles colocam o pensamento como uma atividade positiva que busca um alvo: alcançar alguma coisa. No Platão, por exemplo:
- Qual é o grande alvo da filosofia do Platão?
Encontrar a verdade! Então, o pensamento se equipa para encontrar o objetivo dessa filosofia. Que no caso específico de Platão seria – encontrar a verdade.
Mas, em todas as filosofias – e aqui vocês vão ficar um pouco surpresos! – existe o que se chama o NEGATIVO DO PENSAMENTO . Todas as filosofias marcam o que seria o negativo do pensamento. Por exemplo: eu disse que o Platão tem como objetivo encontrar a verdade. Então, o Platão tem como objetivo: como prática afirmativa – a busca da verdade. E, para ele, o negativo do pensamento…
- O que quer dizer o negativo do pensamento?
O negativo do pensamento é exatamente aquilo que atordoa o pensamento; aquilo que confunde a prática do pensamento – que, no caso de Platão e Aristóteles – é o erro, o falso. Para esses pensadores, o pensamento tem um exercício e esse exercício – [ao se processar] – de repente se defronta com uma espécie de névoa – a névoa do falso.
Se eu abandonar esses pensadores e for, por exemplo, para o Espinoza, é claro que a questão do Espinoza – da mesma maneira que em Platão e Aristóteles – é fazer o pensamento funcionar e encontrar os seus objetivos. Mas, da mesma maneira que neles apareceu o negativo e esse negativo era o falso, em Espinoza o grande negativo é a ignorância e a superstição.
Então vejam o que eu disse:
O que eu estou colocando é alguma coisa de muito novo: que para o entendimento de uma prática filosófica, importa a compreensão do negativo do pensamento. Então, o negativo do pensamento para Platão é o erro. E num confronto que ele faz com os sofistas, ele vai provar que o erro existe – o que lhe permite gerar o seu negativo – o erro.
Agora, se vocês forem estudar Nietzsche, por exemplo, Nietzsche tem um negativo. Mas o negativo dele não é o erro – é a tolice .
Então, o que eu disse pra vocês, é que essa noção de “negativo do pensamento” tem tanta importância como a noção de “positividade do pensamento”. Em função da ameaça do negativo…
- O que é que o negativo ameaça? Ameaça o pensamento! O falso ameaça a verdade; a ignorância ameaça o pensamento. A ignorância ameaçar o pensamento é muito fácil de ver! Então, em função dessas ameaças, que os negativos produzem sobre a sua prática de pensamento, os filósofos criam o que se chama MÉTODO.
- O que é o método?
O método é para enfraquecer, afastar o perigo do negativo.
Alª.: E o positivo em Espinoza e em Nietzsche também é A Verdade?
Cl.: Eu vou mostrar! (Certo?)
Então, aqui termina essa fase, eu acho que foi bem compreendido… O filósofo está sempre com aquela questão – que é AFASTAR O NEGATIVO DO PENSAMENTO.
Por exemplo: em Kant – o negativo é a ilusão; então Kant vai passar sua obra toda tentando afastar os poderes da ilusão.
Mas eu estou citando o Aristóteles e o Espinoza. No Aristóteles, o negativo é o falso. No Espinoza, o negativo é a ignorância… Eu não vou nem dizer a superstição, porque eu posso dizer que a superstição é uma conseqüência da ignorância. (Certo?) Então, de um lado o falso e de outro lado a ignorância.
- O que eles fazem?
Ambos constroem um método – com o objetivo único e exclusivo de afastar os poderes do negativo. O Aristóteles, por exemplo, coloca a existência de duas práticas, digamos, do saber: duas práticas científicas – que ele chama de filosofia teórica e de filosofia prática.
Na filosofia teórica – que é a prática da física, a prática da matemática – diz Aristóteles que o grande problema é que o verdadeiro – que é o objetivo que ele quer alcançar – está ameaçado pelo falso. Na filosofia prática – a política, a economia, a moral – é onde ele diz que o bem se encontra ameaçado pelo mal. Então, na filosofia prática, na hora em que o político, o economista ou o moralista praticassem o bem, poderiam ser tomados pelo mal – porque o mal se transvestiria de bem, assim como o falso se transveste de verdade. Então, ele constrói um método com o objetivo – no caso de Aristóteles – de afastar o falso e afastar o mal.
Espinoza, para quem o negativo é a ignorância, constrói um método – que ele chama de formal e reflexivo (vejam como fica claro!) – com o objetivo único de fortalecer o poder DO ENTENDIMENTO: levar o poder do entendimento a sua mais alta potência.
- Por quê?
Porque quanto mais potente for o entendimento, menos o poder da ignorância. Então, essa posição espinozista é uma posição grave, uma posição trágica, porque ela já colocou a grande questão – a fragilidade da subjetividade humana, a imensa fragilidade da subjetividade humana; ou numa linguagem mais espinozista – a IMENSA FRAGILIDADE DA CONSCIÊNCIA. A consciência é frágil, confusa, OU MELHOR: a CONSCIÊNCIA: esta ignorante. Esta ignorante – a consciência – segundo Espinoza, seria a causa de todo o sofrimento da humanidade.
Todo o mal da humanidade estaria – exatamente – na consciência, com a sua ignorância – [e a sua incapacidade] de compreender os movimentos da natureza. Porque a consciência não compreende os movimentos da natureza – o regime existencial dela é sempre o mesmo: recompensa e punição. Ou seja: ela busca ser recompensada – quando cumpre o seu papel com perfeição; e teme ser punida.
A consciência não é um órgão constituído para entender – ela é um órgão constituído para obedecer; e a obediência é a fábrica da ignorância. Porque um espírito livre – e é exatamente este o objetivo do Espinoza: a produção de um espírito livre! - tem que se confrontar fundamentalmente com a consciência.
Porque a consciência ou, como diz Espinoza, Adão – ao ouvir de Deus a frase – “Não coma desse fruto, porque se você comer desse fruto você vai se envenenar”, Adão, o ignorante, comeu do fruto, se envenenou e pensou que Deus havia lhe dado uma ordem – e que ele não tinha cumprido a ordem de Deus. Ao acreditar “ter desobedecido” a ” ordem de Deus” – comendo o fruto; logo, não aceitando a ordem de Deus – teve cólica.
Mas, diz Espinoza, não foi nada disso: Deus não deu uma ordem a Adão – ele disse a Adão o funcionamento e o entendimento da natureza. Adão não entendeu… porque Adão funciona pela consciência – e a consciência é impotente para compreender o funcionamento da natureza. Então, nós, adâmicos: os ignorantes!
Daí, o que eu estou falando é algo muito sério – nós estamos praticamente “na porta” do século XXI, (não é?); na porta das maiores revoluções que já aconteceram neste planeta – revoluções que vão do computador à música eletrônica; que vão ao corpo do homem: aos códigos genéticos, às relações da biologia molecular. Esses acontecimentos não são capazes de ser compreendidos pela consciência – por isso a grande questão do Espinoza é – dar potência ao pensamento, aumentar a potência do pensamento. E ele funda um método que se chama FORMAL E REFLEXIVO – um método que pega o pensamento e – constantemente – o estimula a aumentar a sua potência de entendimento. Ou seja: o que Espinoza está acabando de nos dizer é que o homem pode – não é; mas pode – ser livre e existir sob o regime do entendimento. Mas o homem é adâmico e vive sob o regime da obediência e da recompensa e da punição. A grande questão do Espinoza seria produzir um homem livre!
Então, isso que eu inicialmente chamei de método – não é um método: é uma IMAGEM DO PENSAMENTO. Ou seja: o que distingue um filósofo do outro – por exemplo: o que distingue o Platão do Kant; ou Hegel de Berkeley – é que cada filósofo produz a sua própria imagem do pensamento. Então, cada filósofo compreende o pensamento como alguma coisa que vai utilizar. E vocês vão verificar a diferença assim BRUTAL, quando você estuda Platão e quando você estuda Nietzsche… e, ao mesmo tempo, a incrível semelhança – porque ambos estão construindo imagens do pensamento que começam [de uma maneira] e depois… derivam.
Então, essa idéia de Imagem do Pensamento – que eu coloquei pra vocês – é o fundamento, o constituinte do Deleuze. Deleuze produz UMA NOVA IMAGEM DO PENSAMENTO.
- Qual?
Deleuze não recobre os filósofos; ele não representa os filósofos sobre os quais ele fala. O que ele faz é dizer aquilo que o filósofo – sobre o qual ele está falando – não disse!
É isso!
Então, quando Deleuze estuda Bergson – e apresenta uma obra sobre Bergson; quando estuda Nietzsche – e apresenta uma obra sobre o Nietzsche; quando estuda Espinoza – e apresenta uma obra sobre Espinoza – nós tomamos um susto! Porque vemos um Espinoza, um Hume, um Nietzsche que nós não encontramos em outros historiadores da filosofia. Nós não encontramos de maneira nenhuma – ao ponto de Adão, o ignorante, dizer:
- Mas o que é isso? Ele está dizendo o que o filósofo não disse?
Sim! Ele não precisa reproduzir o filósofo. Porque não teria nenhum valor – nenhum valor para o pensamento – se a única prática que nós pudéssemos fazer quando nós nos conjugamos com um filósofo fosse reproduzir o que ele disse. A história da filosofia já teria nascido morta – e sem o menor sentido!
Então, o pensamento – isso não precisa ser só em mim; pode ser em qualquer estudante de filosofia: pode ser em todos nós – sempre que nós nos depararmos com alguma coisa com a qual nós nos agenciamos, nós temos que – nesse agenciamento – fazer a renovação daquele pensamento. Ou seja: a grandeza do espírito, o poder do espírito, o poder do pensamento – é exatamente a prática dessa renovação.
E aqui eu coloquei esta noção que se chama – Imagem do Pensamento. (Certo?) Eu vou voltar a isso na próxima aula. Vocês então já sabem que existiria – eu vou clarear mais! – existiria uma imagem chamada IMAGEM CLÁSSICA E DOGMÁTICA do pensamento. Essa imagem clássica e dogmática do pensamento é exatamente a imagem do pensamento que Platão introduziu na história.
Platão introduz uma imagem do pensamento em que o pensamento quer e ama o VERDADEIRO, e detesta o falso ou o erro; e em que o pensamento – por sua boa natureza – não pára de buscar a verdade. Quando nós encontramos a imagem do pensamento… (Olhem que chocante, hein?) Quando nós encontramos a imagem de pensamento de um esquizofrênico – o Artaud. Quando a gente utiliza uma linguagem de clínica – esquizofrênica… a gente tem que funcionar de duas maneiras: porque existe um esquizofrênico psicossocial – uma esquizofrenia produzida pelo próprio capitalismo; e existe a esquizofrenia do pensamento. O Artaud era ao mesmo tempo esquizofrênico do campo social e esquizofrênico do pensamento. Então, [a questão d]o pensamento do ARTAUD – ele dizia: “Eu não consigo pensar, eu não consigo pensar” – e daí vinha seu grande sofrimento.
- Por que ele não conseguia pensar?
Porque o pensamento não pensa por boa vontade, nem por boa natureza; o pensamento só pensa – se for forçado a pensar. É preciso forçá-lo a pensar – motivo pelo qual, na aula anterior, eu disse que o corpo força o pensamento a pensar – e o pensamento vai pensar o corpo. (Certo?)
Então, esse estranho “filósofo”, que eu acabei de citar – o Artaud. Seria um choque, dentro de todas as universidades do planeta, chamá-lo de filósofo! Mas, sem dúvida nenhuma, um grande pensador – o maior pensador: que compreendeu exatamente o que seria o pensamento. O pensamento é como se fosse um ser num sono hipnótico: ele não quer fazer nada – é preciso forçá-lo. E aí – quando ele é forçado – ele vem pensar.
Proust e também Espinoza – eles dizem que o pensamento só pensa em razão do ACASO DOS ENCONTROS. Então, um determinado tipo de encontro pode forçar o pensamento a pensar. Se nós voltarmos a Platão, nós vamos encontrar coisas platônicas assustadoras – de tão bonitas! Porque há um momento da obra de Platão – isso é na República-Livro 10, em que ele diz – exatamente – o que Artaud vai dizer 2.300 anos depois. Ele diz que o pensamento – só pensa – se for forçado a pensar. E Platão vai e diz: “o que força o pensamento a pensar é a contradição”. Então, sempre que um homem estiver no mundo – e não se deparar com a contradição – ele não pensa! Ou seja, o homem fica submetido ao que se chama DOXA – à opinião, à variação das suas opiniões. Ele só pensa, segundo Platão, na hora que ele se depara com a contradição; por exemplo: quando ele nota que esse dedo daqui [Claudio mostra o dedo indicador] é menor do que este [Cl. mostra o dedo médio] e maior que este [Cl. mostra o polegar]. Logo, este dedo [o indicador] é ao mesmo tempo maior e menor – isso é uma CONTRADIÇÃO. Este dedo que está aqui força Platão a pensar.
- Pra que ele vai pensar?
Para – dessa contradição do maior e do menor – construir a sua Teoria das Essências, a sua Teoria das Idéias e fazer com que a contradição desapareça – e o apaziguamento volte ao seio dos homens.
Então – na verdade – o que Platão quer é que o pensamento apazigúe os temores e os sustos da humanidade. O que, por exemplo, Deleuze – numa linha nietzschiana – colocaria, é que não; nada disso! – o pensamento não busca apaziguamento; o que ele busca é exatamente a conquista, a criação e a invenção. Então, quando o pensamento começa a funcionar, os seus objetivos não são jamais satisfazer os interesses humanos de acordo e de paz. O que o pensamento faz é um mergulho – às vezes sem volta – no CAOS. É tolice, ignorância completa, dizer que o CAOS é o maior inimigo do pensamento. O CAOS é inteiramente afim ao pensamento. Eles se complementam, fazem uma afinidade. A questão aqui é que o pensamento só pensa quando ele é forçado a pensar e o que ele pensa é o CAOS. A matéria do pensamento é o CAOS.
(virada de fita!)
O maior adversário do pensamento é a opinião – porque a opinião é variável e a questão dela nunca é aumentar a potência do pensamento. O método aristotélico se origina…
- Qual o método do Aristóteles?
O método demonstrativo!
O método do Aristóteles é afastar os perigos do falso – e conduzir o pensador à verdade. O método dele chama-se MÉTODO DEMONSTRATIVO e dentro de seus objetivos – evidentemente – ele obteve todos os êxitos. Então, a partir de agora, eu coloco que existiria uma IMAGEM CLÁSSICA DO PENSAMENTO – cujo modelo é Platão – que seria simultaneamente chamada de IMAGEM DOGMÁTICA DO PENSAMENTO; e uma série de imagens do pensamento que correm permanentemente o risco de serem destruídas pela sua matéria – o CAOS. (Certo?)
Essa foi uma introdução básica pra nossa compreensão – pelo menos pra sabermos o que eu estou fazendo!… O que eu estou fazendo de diferente é porque eu caminho numa imagem do pensamento que não é a imagem clássica. .. e – exatamente porque não é a imagem clássica – permite-me compreender que quando Godard e Cassavetes fazem um filme; ou quando o Egon Schiele e Bacon pintam um quadro; ou quando Boulez faz uma música; e assim por diante… – todas essas práticas são literalmente práticas de pensamento. Ou seja: a arte, a filosofia e a ciência só trabalham pensando – são três práticas em que o pensamento estaria inteiramente presente. Vocês já sentiram, vocês já sabem as dificuldades que eu terei para sustentar isso. A afirmação que eu fiz agora foi que filosofia, arte – principalmente arte, porque geralmente é muito confundida!… [frase incompleta]
Quando um artista produz a sua obra – Pollock: que sobe em cima de uma tela e começa a respingar tintas nessa tela – produz um pensamento. E eu vou mostrar [essa questão] pra vocês e vocês vão entendê-la no percurso da aula.
Agora, eu abandono essa exposição ainda numa tecnologia – tecnologia de aula. Abandono essa exposição… – e passo para um confronto: um confronto, cujo território é o pensamento do Deleuze. É como se – no pensamento do Deleuze – dois adversários se confrontassem! Esses dois filósofos que eu vou colocar – e confrontar – chamam-se Bergson e Husserl. Husserl é alemão; Bergson é francês. Eles nasceram mais ou menos na mesma época – por volta de 1860 – não sei precisar: por ali! E morreram mais ou menos na mesma época – o Bergson em 1941; o Husserl em 1939-40 – não sei exatamente.
Então, quando esses dois filósofos – ambos realmente filósofos – começaram a produzir as suas filosofias – e aqui a gente precisa compreender isso – o filósofo é forçado a produzir a sua filosofia pelo próprio pensamento. O pensamento se sente forçado a pensar! Mas há também uma pressão do campo social. Uma pressão do campo social – que produz uma ressonância. Eu não estou dizendo que o filósofo é determinado pelo campo social – isso é uma idiotia! Ele não é determinado pelo campo social coisíssima nenhuma! Mas, o campo social pode pressioná-lo. PRESSIONÁ-LO – e não produzir o pensamento dele – é diferente!
Então, no fim do século XIX e no princípio do século XX uma questão muito forte atravessava a filosofia e a ciência: uma questão muito poderosa! E, agora, vocês vão me permitir usar uma linguagem apropriada para esse momento, para esses dois filósofos. Pode ser uma linguagem que dê uma pequena complicação pra vocês. Então, antes de eu começar a falar, eu vou colocar pra vocês que a PALAVRA – qualquer palavra – traz nela uma ambigüidade essencial. Ou uma equivocidade essencial. Então, às vezes, a gente usa uma palavra procurando uma corrente de sentido – e às vezes a gente usa a MESMA palavra numa outra corrente de sentido. Então, o que aconteceu foi que, no fim do século XIX, no começo do XX havia uma questão pressionando os pensadores – que era a DISTÂNCIA entre a CONSCIÊNCIA e o MUNDO. A consciência como o órgão, como o instrumento principal do pensador. E ela, a consciência, com a função de pensar o mundo que estaria a sua frente. Então, a consciência de um lado – o mundo do outro.
O que acontecia naquele momento é que havia um ABISMO; uma separação RADICAL; uma separação IMENSA – entre a CONSCIÊNCIA e o MUNDO. A consciência não conseguia atingir o mundo, e por isso – ela batia fotografias do mundo. Não estou exagerando! Então a consciência seria uma grande fotógrafa, reproduziria o mundo: re produziria o mundo – mas não seria capaz de mergulhar DENTRO dele.
Essa questão pressionou Bergson e Husserl: eles foram imensamente pressionados por essa questão.
- Então, o que ambos vão querer fazer?
Aproximar a consciência do mundo.
Pra ficar mais claro, eu vou mudar a palavra MUNDO para COISA.
Então, no momento em que Bergson e Husserl aparecem, a consciência e a coisa – a consciência e esta mesa – estão separadas por um IMENSO abismo. Forçando a consciência a produzir o que se chama – REPRESENTAÇÕES.
As representações são um fenômeno especulativo. Um fenômeno especular. Um fenômeno de espelho. Ela representa – mas não penetra naquilo.
Husserl vai dar o seu grito de guerra; e Bergson vai dar o seu grito de guerra.
- Qual é a questão deles?
A aproximação [entre a] consciência [e as] coisas.
Husserl vai e diz: a consciência é sempre consciência de alguma coisa. Na tese dele, ele já começou a aproximar a consciência das coisas. Então, a definição de consciência para o Husserl – definição definitiva e invariável é: “a consciência é sempre consciência de alguma coisa”.
E o Bergson, que tem a mesma questão, ou seja: aproximar a consciência das coisas, diz: “a consciência é alguma coisa”.
Então, nós temos essas duas linhas brotando… iluminando o princípio do século XX. Uma linha que diz: a consciência é consciência de alguma coisa – e a outra que diz: a consciência é alguma coisa.
Husserl funda sua teoria da consciência através de uma propriedade, de uma categoria que tem sua origem basicamente na Idade Média; depois ressoa no século XIX – com um filósofo chamado Franz Brentano; e depois vai repercutir no Husserl – que é a categoria de INTENCIONALIDADE.
- O que quer dizer intencionalidade? O que Husserl quer dizer com intencionalidade?
Ele quer dizer que a consciência é um ser relativo. Não é que a consciência seja relativa hoje – e daqui a pouco não seja mais. Ele quer dizer que a essência da consciência é a RELAÇÃO – e a relação com AS COISAS. Então, a consciência seria algo que nunca estaria fechado em si mesmo; a consciência estaria sempre debruçada em cima das coisas – por isso – consciência de alguma coisa. E esse princípio que o Husserl vai colocar… – o princípio, a essência – chama-se intencionalidade.
Então, Husserl vai montar a doutrina da intencionalidade para sustentar sua tese de que a consciência é uma abertura para o mundo.
Bergson não diz isso! Pressionado pela mesma questão – sem que se possa afirmar que um conheceu a obra do outro. Se isso ocorreu, um não deu importância para o outro: No máximo – se. .., talvez. .., existe o Bergson na França…existe o Husserl na Alemanha…, (não é?)
Alº.: Isso parece a sincronicidade!…
Cl.: Isso que está acontecendo deles dizerem a mesma coisa? Alguma coisa assim como o “espírito da época” – não se pode dizer assim? É! Mais na frente eu vou mostrar pra vocês uma categoria que eu vou chamar de ressonância – que vai dar exatamente nessa questão que você colocou. É como se – numa determinada época – ressoassem problemas semelhantes. É isso que permite nascer – por exemplo – uma escola de pintura – a barroca – com as mesmas questões: os pintores variam – mas mantêm as questões essenciais. Como no Renascimento, e assim por diante…
Então, o Bergson não fala consciência de alguma coisa. Ele fala – a consciência é alguma coisa. Bom. Vamos agora entrar nesses dois filósofos: dar conta deles! Porque eu tenho a impressão que se nós dermos conta deles – desses dois filósofos – eu me fortaleço mais no encadeamento das nossas aulas.
O Husserl faz a seguinte afirmação: ( Atenção! – porque o solo filosófico é um solo escorregadio: às vezes a gente pensa que ouviu alguma coisa – mas não ouviu! Ou deixa alguma coisa passar, que a gente não verifica – não ouve! (Entendeu?) Ele é um solo que escapa da gente! Eu posso dizer que o solo da filosofia – isso traria uma contrariedade para o Platão – é um solo móvel, um solo nômade, é como se fosse um deserto, é como se fosse uma geleira, é como se fosse um mar – ele está sempre em movimento! É um solo que está sempre em movimento, então você tem que estar sempre refazendo seus campos conceituais. (Não sei se vocês entenderam bem aqui). É como se o filósofo estivesse condenado à insônia permanente para re fazer as suas práticas de conceituação – porque o solo não pára de se mover.
Então, o Husserl vai explicar o que ele chama de COISA. Coisa – para o Husserl – é todo o universo. Então, o mundo, o universo, a coisa – para ele – é um negrume absoluto! São as trevas. Este universo são trevas: as trevas mais absolutas!
E a consciência chega neste universo para iluminá-lo. Ela seria como um jato de luz de uma lanterna, que viria iluminar a escuridão, a inércia escura das coisas. Mas vejam bem: se o UNIVERSO para o Husserl é trevas e a consciência é luz…
- Qual é a conclusão que se chega nesse solo escorregadio?
É que a consciência não é produto do universo; porque – se ele fosse produto do universo – ela teria que ser escura, trevas!
Então, nessa filosofia, a consciência não é produto deste universo. Isso que eu acabei de mostrar para vocês é que o Husserl colocou a consciência num plano de TRANSCENDÊNCIA. Transcendência semelhante às essências platônicas! Porque a gente não sabe de onde vem essa consciência. Talvez tenha tido a necessidade de um Deus para fabricá-la – porque a consciência é luz e o universo é trevas!
- De onde vem, afinal, a consciência intencional – foco de luz do Husserl?
De outro lado, Bergson diz: – “O universo é luz, é linha de luz, é iluminura, são raios permanentes em velocidade infinita de luz. E nesse universo de luz – dentro desse universo de luz – aparecerá a consciência. Então, para o Bergson, a consciência pressupõe o que se chama um PLANO DE IMANÊNCIA.
- O que é um PLANO DE IMANÊNCIA?
A consciência não é DUAL ao mundo. Ela está dentro dele – ela emerge dessas luzes. Por isso, a consciência do Bergson e a consciência do Husserl têm uma semelhança – porque a consciência do Husserl projeta luz; a consciência do Bergson é luz. É LUZ! Mas acontece que a consciência do Bergson – que é luz – não tem que iluminar mundo nenhum – porque o mundo é a própria luz. Então, nesse universo do Bergson, tudo aquilo que existir é necessariamente iluminado; enquanto que no universo do Husserl a única coisa que é iluminada é a consciência.
Então, nós nos defrontamos com dois filósofos que trariam a mesma questão – eles estariam pressionados pela mesma questão – a questão de explicar o que seria a relação do pensamento com o mundo e o Bergson lança – eu estou mudando a palavra consciência pela palavra Pensamento! – o Bergson lança o pensamento para dentro da luz. Chama-se “Plano de Imanência”. Enquanto que o Husserl coloca a consciência fora do Universo. Logo: existe um princípio de transcendência na obra do Husserl.
Essa questão do princípio de transcendência eu não vou perseguir hoje, não. Mas eu vou mostrar pra vocês os três grandes princípios de transcendência que acontecem na filosofia ocidental. E Deleuze diz: – “A transcendência é o maior veneno do pensamento.”
Então, o que eu estou dizendo do Husserl, eu acho que deu para compreender com facilidade, porque a consciência husserliana não emerge daquele plano de trevas – ela está separada dele. Enquanto que, para o Bergson, a consciência vai emergir do plano de luz. Então, aqui, agora, é fácil: tornou-se fácil… O Husserl, para explicar a consciência, produz um universo negro – de trevas! E a consciência seria um rastro transcendente que jogaria luz dentro daquele universo. Bergson coloca o universo de luz – e vai jogar a consciência ali dentro. Vamos ver como:
Há, no pensamento jurídico, duas expressões bastante poderosas. Uma se chama ” de direito ” e outra se chama ” de fato ” – que é mais ou menos o seguinte: você dizer que algo existe de direito, e algo existe de fato.
- Qual seria a diferença fundamental?
Esse algo que existe de direito, mas não existe de fato – seria uma VIRTUALIDADE; enquanto que o que existe de fato – é REAL e ATUAL.
A diferença de “de fato” e “de direito” – vamos dizer – é que este objeto existe de fato. Ele, então, tem uma existência CONCRETA, REAL e ATUAL. E aquilo que existe de direito não tem propriamente uma existência – é uma POTÊNCIA EXISTENCIAL; uma VIRTUALIDADE.
Virtualidade é mais do que nada. A virtualidade é alguma coisa que já está inscrita ali, mas – por algum motivo – não pode se tornar de fato.
Bergson diz que esta natureza nas suas origens – a palavra origem aqui pesa um pouco! – é luz. Só luz! E a consciência já está dentro dela; mas não de fato – de direito. Quando Bergson constrói o que eu chamei de Plano de Imanência, ele está falando que este universo é constituído de luz – e a luz tem uma velocidade infinita. Então, é a luz – numa velocidade infinita! Mas ele vai dar… – neste momento, eu não vou explicar os motivos, senão nós faríamos um deslize muito grande… Ele vai colocar luz – e matéria, imagem e movimento como sinônimos. São sinônimos! Então, movimento, luz, matéria e imagem – são sinônimos; mas isso eu não vou explicar hoje, (tá?)
Então, a gente já sabe de uma coisa: que nesse universo do Bergson nada repousa; tudo está em movimento – e em movimento infinito!
E agora eu abandono, sobretudo, a noção de matéria – e passo para a noção de imagem.
Ou seja: o universo do Bergson é um universo em que as imagens atravessam umas às outras em velocidade infinita, pela eternidade afora. Elas não param de atravessar umas às outras. E cada imagem dessas é um bloco de luz.
Então, vejam bem: um bloco de luz… e uma imagem, que também é um bloco de luz. Esse bloco de luz atravessa o outro: não pára; ele atravessa! Então, as imagens do Bergson não têm o poder de reter ou deter as outras imagens – todas elas são translúcidas, no sentido de que são transparentes, são atravessadas. É como se as imagens do Bergson fossem “fotógrafos frustrados” que batessem a fotografia – mas ela não se efetuasse, (certo?) Ou seja: cada imagem dessas recebe a outra imagem; mas não é capaz de detê-la. Porque todas as imagens do mundo bergsoniano – desse Plano de Imanência dele – são imagens translúcidas. Então – por serem translúcidas – não detêm as outras; mas – por serem translúcidas – são atravessadas pelas outras. E isso é o princípio da consciência. O princípio da consciência – é ser penetrada por imagens!
Mas, como nesse plano de imanência do Bergson, as imagens são penetradas [ umas] pelas outras – esse é o princípio da consciência: as imagens entrarem em nosso interior: n aquelas imagens que estão ali. É esse o princípio dela! Mas acontece que – quando a consciência recebe uma imagem – ela tem que deter aquela imagem. No plano de imanência do Bergson, isso não pode acontecer – porque todas as imagens são translúcidas. E sendo translúcidas, ao serem penetradas pelas imagens, não as detêm – daí o nome CONSCIÊNCIA DE DIREITO. Ou seja, exatamente como é uma consciência, ela recebe as imagens, mas não é capaz de detê-las.
Al.: Uma pessoa normal —? —-? —? — poder deter!…
Cl.: Poder deter: exatamente! Aí fica muito nítido que no Plano de Imanência do Bergson as imagens são da consciência, porque elas recebem [essas imagens], mas não [as] detêm. Por isso, elas são consciência DE DIREITO. Melhor explicado: diz o Bergson – “O universo é esse processo de luz infinita. Mas, num determinado momento desse universo – que é luz, matéria e imagem, (certo?) – conforme eu falei pra vocês, vão nascer os corpos, vão nascer as ações e vão nascer as qualidades. Por isso, usarmos substantivo, verbo e adjetivo. Ou seja: naquele Plano de Imanência – que era só luz – não havia corpos. Para que os corpos apareçam – diz o Bergson – é necessário que [nesse universo de] luz, nessa matéria fluente, nesse turbilhão universal aconteça um pequeno resfriamento. (E sse, que nos causa gripe (não é?) – pelo menos em mim!)
Então, é quando surge esse resfriamento – diz o Bergson – que os seres vivos vão aparecer; e os seres vivos vão ser marcados por uma coisa de uma originalidade excepcional – pela consciência DE FATO. E a consciência de fato do Bergson, à diferença da consciência do Husserl, que é uma projeção de luz – é uma TELA DE CINEMA: é um ÉCRAN!
A função do écran é deter a luz. E, portanto, a consciência torna-se uma tela que detém a luz que [chega], ou seja, a consciência do Bergson tem a capacidade de cortar um pedaço do fluxo infinito das luzes. E é exatamente com esse pedaço que ela lida. Ou, melhor explicado: cada espécie que existe no Universo – a mosca, o cachorro – cada uma delas recorta essa luz de uma maneira que lhe é própria – chama-se MUNDO PRÓPRIO. Ou seja: se entrar aqui uma barata, por exemplo – essa barata vai recortar a luz do universo de maneira diferente daquela que nós recortamos. Então, para o Bergson, a consciência de fato é aquela que recebe luz, mas ao invés dessa luz transpassá-la, a consciência detém essa luz.
Então, para o Bergson, a consciência de direito antecipa a consciência de fato. E, para ele, não é necessário procurar a explicação do nascimento da consciência numa transcendência qualquer, como fez o Husserl.
- De onde Husserl tirou a consciência?
Sem dúvida nenhuma, de Deus – como sempre!
Bergson não necessita de Deus para produzir a sua consciência. Mas, no momento em que aparecem os corpos, no momento em que a vida se instala aqui neste planeta – e a vida é singular: de uma singularidade imensa! – imediatamente, ou seja: junto com ela nasce o ÉCRAN – que detém a luz. Todo ser vivo tem esse ÉCRAN, essa capacidade de reter a luz que lhe interessa.
(final de fita)
O resto, o infinito de luz do universo, o indivíduo não apreende. Ele apreende um pequeno ponto: recorta um pequeno ponto – como um enquadramento em cinema. Ele enquadra e recorta aquilo – e para o resto da luz ele é translúcido. O resto da luz ele não apreende. Isso se chama percepção. Bergson nos mostra nitidamente que a percepção é necessariamente utilitária. Ela está permanentemente a serviço daquele ser vivo. A percepção tem uma existência única e exclusiva, interessada, utilitária, a serviço daquele ser!
- Por quê?
Porque a percepção é uma tela! A percepção apreende um determinado movimento e – ao apreender esse movimento – ela vai ter que devolver movimento para o universo.
- O que quer dizer “devolver movimento para o universo”?
Uma ameba se defronta com o movimento de elementos químicos, que ela apreende pela percepção – e a ação da ameba é capturar esses elementos químicos. Ou, então, a ameba apreende pela percepção a presença de um predador – não sei qual é o predador da ameba! – e a ação é dar no pé: fugir! É importante que vocês saibam que a ameba – um protozoário – na hora em que vai capturar os alimentos, produz o que se chama “pseudópodes” – ela produz um conjunto de órgãos que funciona apenas naquele momento da captura dos alimentos; e depois desaparece.
- O que quer dizer isso?
Todo ser vivo tem um esquema dentro dele, chamado – ESQUEMA SENSÓRIO-MOTOR. O esquema sensório-motor é necessário e participa de todo e qualquer ser vivo. Antes do nascimento do vivo, os movimentos são ininterruptos e em velocidade infinita. Quando o ser vivo aparece, logo, quando aparece o esquema sensório-motor, ele é constituído de três elementos, ou melhor: três imagens, ou melhor: três luzes a percepção – que tem a capacidade de apreender os movimentos que vêm de fora; a reação ou a ação – que responde àquilo com que a percepção entrou em contato. A ação é uma espécie de prolongamento da percepção, que apreende o que vem de fora. E entre a percepção e a ação nasce um suntuoso elemento – o VIVO! Nasce o que o Bergson chama de um PEQUENO INTERVALO.
Se fôssemos compreender no sujeito humano – esse pequeno intervalo seria o CÉREBRO.
Que é o quê, exatamente? Que é o vivo – quando apreende o mundo que vem de fora, os movimentos que vêm de fora; essa apreensão dos movimentos que vêm de fora não se prolonga imediatamente na reação – passam pelo pequeno intervalo. E o pequeno intervalo – que se fôssemos nós, poderia ser o cérebro – tem como função decidir qual o movimento de resposta que vai ser dado. Por isso, esse pequeno intervalo produz o que não havia no primeiro sistema de imagens (que eu expliquei pra vocês) – que se chama hesitação. A vida introduz a hesitação! Não é dúvida, hein? – é HESITAÇÃO. Ela hesita [sobre] qual caminho seguir – por isso, a vida vai trazer uma ralentação do movimento. Ralentar o movimento.
A vida introduz dentro do universo o movimento ralentado – exatamente porque essa hesitação do pequeno intervalo faz com que as respostas dadas pela reação – que podem ser múltiplas – escolha [apenas] uma. Isso é o que se chama – usando a antropologia – a tragédia do homem, porque o sonho do vivo é agir dentro de todos os seus possíveis. Vamos dizer que nós recebemos o movimento de fora e temos 50 mil possibilidades de resposta a esse movimento – nós damos uma só; e 49.999 ficam perdidas e sonhadas por nós. Talvez – seja essa a causa das nossas angústias!…
(intervalo para o café)
É evidente que eu sei a dificuldade da exposição que eu fiz – eu sei que [o que eu falei] é muito difícil! Nessa exposição difícil, que eu fiz, – sem a menor preocupação -, eu afirmei que o nascimento do vivo pressupõe o surgimento de um pequeno intervalo. E que antes dele, do nascimento do vivo, esse pequeno intervalo não existia. Então, eu posso dizer pra vocês, com a maior facilidade, que o Bergson constrói na obra dele dois sistemas de imagens. (Vamos usar “falsamente”, não é? Bergson não usaria assim!)
No primeiro sistema de imagens não há intervalo. No segundo sistema de imagens, há intervalo. Então, para Bergson, o primeiro sistema de imagem é ACENTRADO e de direções infinitas – esse é o primeiro sistema. Ele é acentrado – ele não tem centro e tem múltiplas direções.
O segundo sistema – onde emergiu o intervalo – aparece um centro de indeterminação. Esse centro de indeterminação é o vivo. Ele é um centro hesitante; e, como ele é hesitante, ele é um centro de indeterminação.
Então eu vou fazer isso: eu vou manter a idéia de que o Bergson construiu dois sistemas de imagens. O que eu peço pra vocês é para associarem, ao primeiro sistema de imagens, a noção de acentrado; e ao segundo sistema de imagens, a noção de centros indeterminados.
- Ficou bem assim?
Centros indeterminados e acentrado.
Ao primeiro sistema – acentrado e de múltiplas direções – eu chamarei, de um modo musical – de espaço liso; de um modo histórico – de espaço nômade; de uma maneira ainda mais musical – de tempo não pulsado.
Ao outro sistema – onde está o intervalo e onde aparecem os centros de indeterminação – eu vou chamar de espaço estriado, tempo pulsado e espaço sedentário.
E assim, nós poderemos comparar o primeiro sistema de imagens ao imenso oceano, ao imenso deserto – que não têm centros e têm múltiplas direções.
Então, é exatamente isso que vai fundamentar minha aula pra vocês. É um momento em que eu tenho que me garantir de que aquilo que eu estou dizendo está sendo compreendido.
Bergson constrói dois sistemas de imagens – num deles, coloca um intervalo; no outro, não! No primeiro, não há intervalo. E não há consciência de fato – só há de direito. No segundo, há consciência de fato.
Na verdade, esses dois sistemas são um só. O segundo sistema é um sub conjunto, num imenso conjunto – pra mostrar pra vocês que não há dualismo no pensamento bergsoniano. Então, nós teríamos de um lado, o pequeno intervalo – que faz uma modificação no movimento; e de outro lado, o acentramento. Eu também posso chamar o primeiro sistema de imagem do Bergson de CAOS. E ai, mostrar pra vocês que o CAOS não é propriamente desordem. O que eu estou chamando de Caos é apenas velocidade infinita.
(Mas agora, a partir disso que eu expliquei pra vocês, eu começo a sentir necessidade de avolumar, de aumentar a potência do que eu estou dizendo.)
Esse primeiro sistema de imagem do Bergson – que eu identifiquei ao CAOS – eu o chamei de Caos, em virtude de que, nele, tudo [está em] velocidade infinita e tudo está misturado – como se houvesse uma mistura de tudo com tudo. Nada se distingue, nada ressalta: é uma mistura total dos componentes desse primeiro sistema de imagens. Isso daí me possibilita uma investida no neo-platonismo – que nos trará uma maior potência de entendimento. Exatamente a proposta do Espinoza: sempre aumentar a potência do entendimento!
Os neo-platônicos, à diferença do pensamento religioso, davam à idéia de eternidade uma noção completamente original – porque o pensamento religioso, quando fala de eternidade, diz que a eternidade é uma existência que se prolonga pelo infinito afora e é aquilo onde não há mudança. Então, quando você ouve o pensamento religioso falando de eternidade, ele vai nos dizer que na eternidade as existências se prolongam ao infinito. Quem existir – existe infinitamente. E na eternidade não haveria mudança.
A posição neoplatônica é que a eternidade é a mistura: é onde tudo está misturado – nada está distinguido. (Eu acho que isso daqui vai dar um ponto de partida muito poderoso pra nós…)
Para o neo-platônico, na eternidade não existe tempo. Na eternidade o tempo não existe! (A tenção para o que eu vou dizer!) Ele, o tempo, não existe ATUALMENTE.
- O que quer dizer atualmente?
[Claudio faz um gesto qualquer e diz:]
Olhem a minha mão: eu faço este gesto – esse gesto se atualizou! [Claudio vai modificando os gestos...] Mas eu poderia fazer este aqui, este aqui, este [outro] aqui… uma infinitude de gestos… Então, um se atualiza – e os outros são virtuais.
Então, para os neo-platônicos o tempo é uma virtualidade na eternidade. Como? Ele é virtual porque na eternidade, as dimensões do tempo ainda não se distinguem – elas estão misturadas. Os latinos aproveitaram isso e deram à noção de eternidade o nome de COMPLICATIO.
- O que é complicatio?
Complicatio quer dizer que tudo que está na eternidade está COMPLICADO, co- implicado: eles se co-implicam, mas não se distinguem, não se ressaltam. Ou seja: na eternidade há tempo – mas TEMPO VIRTUAL. Porque não há ainda essa distinção, por exemplo – em passado, presente e futuro – que é nossa! Lá, na eternidade, [todas essas dimensões] estão inteiramente misturadas. Então, é essa a noção que o neoplatônico nos dá de eternidade. Fazendo essa noção crescer, depois, com a noção de complicatio – aquilo que é eterno é inteiramente complicado. E isso não é difícil de entender. Ainda é neoplatônico:
Nós, os vivos, não paramos de mergulhar na eternidade. No SONO, quando nós dormimos, nós mergulhamos na eternidade. No sono – não é no sonho! No sono, tudo perde a nitidez: tudo se mistura. Por isso os amantes do cinema noir – e eu estou vendo uma daqui! – não se surpreendem quando Humphey Bogard leva uma coronhada na cabeça, e ao acordar diz: “onde estou”? Porque ele perdeu toda a referência. Na eternidade, no CAOS – que é o complicatio – o que não existe é referência, não há ponto de referência.
Este momento é um momento provavelmente sublime – como se diz sublime em Kant (na frente eu vou explicar a vocês o que é…) – para se explicar o nascimento do tempo. Ou seja: tornar o tempo atual, porque na eternidade o tempo é virtual.
Tornar o tempo atual é distinguir as suas dimensões. Então, vejam o que eu vou dizer:
É falso nós pensarmos que as únicas dimensões que o tempo tem são passado, presente e futuro. Não! Passado, presente e futuro são as maneiras como o tempo se distinguiu para nós. Como essas dimensões se tornaram distintas – como elas foram arrancadas da eternidade. Por exemplo: se vocês acompanharem de um lado a obra de Proust (e eu vou mostrar) – a obra literária de Proust; e se, de outro lado, vocês acompanharem a obra cinematográfica do Visconti, vocês vão encontrar dimensões de tempo que não existem nessa noção de tempo que nós temos – porque a nossa subjetividade materializada só pensa em termos de passado, presente e futuro.
Vocês encontram no Visconti uma noção de tempo muito clara, que ele chama de – “tarde demais”. Mas não é só isso! No Proust, vocês vão encontrar uma dimensão do tempo que ele chama de “tempo redescoberto”. Então, quando nós fizermos esse procedimento – que é o procedimento mais grave da nossa aula; que eu falei que seria sempre uma aula de pensamento, corpo e tempo – quando nós formos mergulhar na eternidade pra de lá arrancar o tempo, quem faz essa prática é necessariamente o artista. É necessariamente o pensamento. Só o pensamento pode mergulhar no CAOS e arrancar de lá as dimensões que nele estão misturadas.
Por isso vocês encontram no cinema do Visconti, ou no cinema do Antonione, ou no cinema do Cassavetes, ou no cinema do Godard, vocês encontram distinções de tempo inteiramente originais. O tempo pressupõe o pensamento. Sem o pensamento – o tempo está virtual nesse CAOS que se chama eternidade.
Neste instante, eu vou-me servir de um pensador de língua inglesa do século XVIII – Hume, escocês – para fazer determinadas passagens, dentro de certos limites: eu vou conter o meu discurso!
- O que eu quero dizer com conter?
É que se eu não fizer uma contenção no meu discurso, ele se esparrama. Ele se esparrama numa velocidade ilimitada – ao ponto de se tornar o primeiro sistema de imagens do Bergson. Eu tenho que fazer uma contenção no meu discurso – da mesma fora que, com uma garrafa, nós contemos os fluidos do vinho. É a mesma Coisa!
A nossa questão agora – já que eu levantei a idéia de eternidade – que eu identifiquei à complicatio; que eu levantei a idéia de Caos – que eu também identifiquei à eternidade… Vejam bem:
CAOS igual à eternidade. Então, a produção do tempo se origina na eternidade. Ou seja, é da eternidade que o tempo vai sair.
Momento terrível de difícil – que eu terei que fazer todos os trabalhos na exposição da aula, para que haja a possibilidade de vocês compreenderem. Eu usarei qualquer recurso: o meu objetivo é que vocês compreendam. Nós não temos muito tempo, nós temos que seguir, eu disse isso pra vocês: que a aula que eu dou é ralentada, ela é lenta – mas entre as aulas a velocidade é absoluta. Entre as aulas é uma velocidade bergsoniana!
- O que eu quero dizer com isso?
É que de uma aula pra outra eu já passo de uma velocidade assustadora e isso então me leva, me força a dar a vocês os meios de entender os procedimentos que irão aparecer. Muito bem!
A idéia de eternidade vai ficar fácil – ao ser identificada a Complicatio e a Caos; ou seja, a eternidade é onde tudo está misturado. Usem a expressão co - implicado: tudo se co implica. É a melhor expressão! Pra vocês compreenderem o que vier em seguida.
Mas, se eu explico a eternidade, eu tenho que necessariamente explicar o nascimento do Tempo. Se eu falo em eternidade; se eu tenho a ousadia de nessa filosofia tocar na eternidade, falar sobre a eternidade, de imediato eu tenho que falar sobre o que é o nascimento do tempo. Então eu vou usar essa noção de eternidade – já definitiva – complicatio/co- implicação. E quando eu introduzir – e eu estou introduzindo! – a noção de nascimento do tempo, eu vou lançar a categoria chamada CON-TEM-PLA-ÇÃO, que inicialmente não resolve nada, mas agora o nosso procedimento é desenlaçado (como Aristóteles coloca na lógica dele).
Nós vamos pensar a eternidade, vamos pensar a contemplação, vamos pensar o tempo, mas não vamos enlaçá-los, porque se quisermos enlaçá-los, nós – literalmente – “dançamos”. (Certo?) Vamos pegar cada conceito isolado… Evidentemente isso é arbitrário, porque eles nunca estão assim. Mas é o pedagógico: é a Paidéia; é o meio pelo qual nós vamos chegar ao entendimento.
Então, vocês vejam que é diferente a prática do pensamento e a prática do estudo, da prática da pedagogia. O pensamento tem que fazer voltas; retornos; “outra volta do parafuso” – tipo Henry James; pra poder dar conta do que ele está produzindo.
Noção de eternidade, Complicatio e CAOS: tudo está misturado. Exemplo fisiológico: o sono. No sono – nós estamos na eternidade. (Eu não disse no sonho. A questão do surrealista é o sonho. A eternidade não é questão do surrealista!) E, do outro lado, a noção de contemplação!
Essa noção de contemplação se origina na Grécia, nos filósofos pré-socráticos. Existe até uma anedota irritante – pra nós que estudamos filosofia: que [ao andar], olhando para o céu, Tales de Mileto meteu o pé numa poça d’água. Isso é o filósofo: aquele que se desterritorializa!
Então, a noção de contemplação se origina em duas linhas: numa linha científica ou para-científica; e numa linha religiosa.
A linha científica ou para-científica é o filósofo pré-socrático – que costuma contemplar o céu para falar sobre eclipses, movimentos de meteoros, movimentos de estrelas. .. Então, ele introduz na sua prática existencial o processo de contemplação – o que não deixa de ser uma coisa fantástica – porque os homens são musculares, alimentares, orgânicos: eles vivem correndo pra comer não sei o quê, (não é?)
E aqui os pré-socráticos produziram um corpo… um tipo de corpo do “ideal do Kelvin Klein”: um corpo anoréxico, bem anoréxico – para poder contemplar com alegria. E eles contemplavam as estrelas: é a primeira contemplação.
A segunda contemplação é religiosa. Vocês podem ver que a palavra contemplação já dá conta disso: é TEMPLÁRIA, (não é?): é TEMPLO. É a contemplação das estátuas religiosas – quando não se faz outra coisa senão se embebedar das visões que se tem daqueles objetos tidos como religiosos.
Essas duas contemplações se juntaram na alma do Platão, e na junção dessas duas contemplações, o Platão produziu a terceira contemplação – que é a contemplação propriamente filosófica.
- O que é a contemplação propriamente filosófica?
Segundo Platão, o homem é um ser dotado de alma; e a alma é constituída de três partes: uma parte é a sensualidade; a outra é a virtude; e a terceira é a razão. Esta terceira parte da alma – a razão – é a parte propriamente imortal. E a razão é contemplativa. Onde Platão vai utilizar uma expressão muito bonita – Platão era lindíssimo! – que essa [parte da] alma – a razão – tem um olhar noético: ela contempla as essências. Ou seja: a contemplação das essências – para Platão – é a obtenção da verdade. Mas isso não pode ser feito pelo corpo, por isso pode-se dizer que Platão é um filósofo que pede a morte.
Al º.: Da outra vez você falou que a razão é o pensamento a serviço do orgânico.
Cl.: Logo, Platão é um pensador a serviço do orgânico! É! A conclusão é essa! E é isso que eu estou dizendo!
Alº.: A razão se baseia no conhecimento e na moral!
Cl.: E na moral! Ela se baseia no conhecimento e na moral. E toda essa colocação que o Platão está fazendo, ao distinguir a alma em três partes – colocar a razão como a parte superior da alma e dar à razão uma imortalidade; e dizer que a razão tem um olhar – que não é um olhar da sensibilidade, mas um olhar noético, o olhar da alma, o olhar espiritual; e que esse olhar contempla as essências; e que as essências são invisíveis ao olhar físico, mas visíveis ao olhar espiritual – ele está constituindo toda uma teoria do conhecimento. Ele está construindo uma ontologia e toda uma teoria do conhecimento – inteiramente orgânica.
Essas três posições da contemplação platônica vão aparecer no mundo plotiniano: no mundo neoplatônico. Mas o mundo neoplatônico – aqui acontece uma coisa lindíssima, de uma beleza!… Porque a natureza é feita de fluxos – fluxos que não param de percorrer e se entrecruzar – algumas vezes poderosos, algumas vezes enfraquecidos. Lá – na época do Plotino – percorria um fluxo do animismo. É a mesma coisa que eu dizer pra vocês que num determinado instante um estranho fluxo – chamado fluxo da evolução – percorria este planeta. De outro lado, outro estranho fluxo – chamado fluxo da cognição – percorria o planeta. Quando os dois se encontraram – nasceu a VIDA. Quer dizer: a vida é muito melhor explicada por fluxos do que por átomos!
Então, lá no Plotino, percorria o fluxo do animismo e do Platão vinha o fluxo da contemplação. Esses dois fluxos se encontram. E o Plotino diz “contemplação animista”. Tudo o que existe na natureza contempla – é quase um pensamento leibnitziano A natureza é constituída de pequenos pontos, pequenos pontos luminosos, olhares – que ao contemplar produzem modificações.
- Em quem?
Neles próprios!
Então, o que importa aqui não é nem mesmo – o que é o sonho de qualquer professor – embelezar ou tornar sedu… [...]
(Fim de fita)
[...] compreenda essa passagem de dois fluxos: o fluxo da contemplação e o fluxo do animismo.
Animismo quer dizer que tudo o que existe tem uma animação própria. (Um rochedo, a lama, a água). O animismo é muito próximo do vitalismo do Bergson. Tudo é impregnado de vida. Essa noção de animismo é o componente mais poderoso da biologia moderna, da biologia molecular, pois elas vão constituir aí todo o seu campo de saber.
Fonte: Centro de Estudos Claudio Ulpiano
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