PICICA: "Na realidade, o próprio governo tem a perder com a venezuelização das
ideias, num momento em que o antipetismo ameaça tornar-se, por si só,
uma força organizativa real. O impeachment tem tudo para ser uma sombra
incômoda nos próximos anos. E talvez tenham a perder também a potência e
a vitalidade dos movimentos. Qualquer tentativa de impor uma lógica
unitária vai alhear a possibilidade de composição heterogênea com outras
forças de transformação. Desde pelo menos junho de 2013, essas forças
não foram capturadas nem pelo governo nem pela oposição, e estão
calcadas sobre uma multiplicidade de antagonismos reais (transporte,
saúde, direito à cidade, desmilitarização do estado etc)."
Venezuelização fora do lugar
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Dilma se reelegeu com apenas 3% de margem nos votos válidos. Perdeu no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, em grandes centros como São Paulo, Brasília ou Belo Horizonte. O PT perdeu em bairros pobres com tradição de resistência que nem a esquerda mais elitista poderia chamar de “alienados”, além de ser simbolicamente afastado da campanha no segundo turno. Pela primeira vez, o antipetismo ganhou escala e complexidade, a partir de uma mobilização social capilar. Se na década de 2000, o antipetismo era claramente um sentimento elitista raivoso dos cansados, em 2014 essa explicação unitária não se sustenta. O antipetismo se ramificou num fenômeno mais abrangente.
Dilma foi bem sucedida, no entanto, em praticamente unificar a esquerda. Ao supercaricaturizar os adversários, em vez de pautas, instalou no centro do debate a figura do mais pior, com o que a militância passou a cobrar os eleitores. Em questão de duas semanas, o voto crítico se tornou uma espécie de mínimo moral. O momento, afinal, era “delicado”. Não surpreendeu a escalada de voto crítico a entusiasmo crítico das adesões de última hora, mas surpreendeu a velocidade e intensidade com que aconteceu. A campanha pescou o petismo residual nas profundezas do oceano. A rede voltou repleta de peixes espontâneos e nostálgicos.
O processo e o resultado final reforçaram o senso de pertencimento da oposição, e também o fizeram entre a esquerda, como se Dilma e o PT fossem o último bastião diante da invasão dos fascistas. Da mesma forma que estas forças são achatadas como petralhas, achatam o outro lado como direita golpista. De achatamento em achatamento, as recentes manifestações em São Paulo beiram o coreográfico, na encenação de discursos e símbolos: um se define como o não-outro. A maior parte do eleitorado, evidentemente, não aderiu a tão grosseira dicotomia. Sem assumir-se direita nem esquerda, é guiada antes pela própria percepção do que por esquematismos ideológicos ou linhas partidárias, inclinada a um sincretismo pragmático cuja lógica é conjuntural antes de ser estrutural.
Ao governo, interessa o terceiro turno. Primeiro e sobretudo porque, ao conduzir o olhar às caricaturas de direita, permite desviá-lo daqueles conservadores pragmáticos bem aninhados no próprio governo, eles devem abocanhar ainda mais espaços. Nada mais conveniente a um governo do que incentivar binarismos para encobrir os antagonismos reais em que o próprio governo está negativamente implicado. Segundo, porque facilita o nivelamento de toda e qualquer oposição como fazendo o jogo da direita golpista, conforme os automatismos e a cartilha maceteada das mídias governistas. Mas este é apenas o ponto de vista do governo.
Do ponto de vista de alguns movimentos organizados, também interessa prolongar o terceiro turno. Um dia a ditadura unificou a esquerda, quem sabe agora se uniria contra Bolsonaro, Feliciano e as madames de Higienópolis que saíram às ruas. A estratégia parece mesmo ganha-ganha: confronta-se a direita mais caricata, ao mesmo tempo que se obtém bons termos de negociação com o governo, favorecendo projetos eleitorais e financiamentos. E ainda garantindo o palanque do terceiro turno a emergentes dirigentes populares. Daí marchas inteiramente de vermelho, com bandeiras partidárias, balões da CUT e faixas pela “reforma política”, indo do ponto A ao ponto B da cidade, com hora, lugar e até frequência (!) pré-definidas.
Sem qualquer pretensão de deslegitimar a ocupação das ruas, generosa em sua inexorável excedência, vale a pena contudo inquietar-se a respeito da tendência dessa nova linha de ação: fortalecerá a vitalidade dos movimentos em sua dinâmica constituinte, única propícia à expansão horizontal? ou será absorvida pelo jogo reivindicativo de cálculos e negociações de gabinete que, cinicamente respaldada pelo par meios/fins, termina por atuar como linha auxiliar (de frente) do governo? É uma questão em aberto.
Se é inadequada a avaliação de conservadores de que o governo Dilma flerta com o bolivarianismo, um erro de forma e conteúdo; não é errada a de que movimentos sociais desejem levar a sério a comparação no esforço da “eleição prolongada”. Toda a simbologia atesta essa dicotomia. A Venezuela aparece assim como o positivo e o negativo de um embate mais ou menos teatralizado que, quando indexado ao governo e suas pautas, passa longe da natureza de seus arranjos neodesenvolvimentistas, — com Kátia Abreu, Kassab, Pezão e Sarney no círculo do poder. É preciso, então, afastar a Venezuela de uma vez por todas como referente à condição das lutas no Brasil: inclusive para valorizar a própria conjuntura venezuelana, impudentemente apropriada e merecedora de entendimento mais cuidadoso.
Na realidade, o próprio governo tem a perder com a venezuelização das ideias, num momento em que o antipetismo ameaça tornar-se, por si só, uma força organizativa real. O impeachment tem tudo para ser uma sombra incômoda nos próximos anos. E talvez tenham a perder também a potência e a vitalidade dos movimentos. Qualquer tentativa de impor uma lógica unitária vai alhear a possibilidade de composição heterogênea com outras forças de transformação. Desde pelo menos junho de 2013, essas forças não foram capturadas nem pelo governo nem pela oposição, e estão calcadas sobre uma multiplicidade de antagonismos reais (transporte, saúde, direito à cidade, desmilitarização do estado etc).
Para usar expressão de Roberto Schwarz, as ideias fora do lugar estão exatamente onde deveriam estar: reforçando a ordem vigente, com governo e oposição comodamente sentados em seus lugares de identidade e poder. A venezuelização das lutas, à direita ou esquerda, é uma dessas ideias.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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