PICICA: "Comissão Nacional da Verdade entregará à presidente Dilma Rousseff seu
relatório final em 10.dez.2014 recomendando a responsabilização criminal
–e a punição– de aproximadamente 100 militares que ainda estão vivos e
participaram de maneira direta de violações de direitos humanos durante a
ditadura militar (1964-1985)."
ENTREVISTA / PEDRO DALLARI
Comissão da Verdade pedirá punição para cerca de 100 militares vivos
Por Fernando Rodrigues em 18/11/2014 na edição 825
Reproduzido do UOL, 18/11/2014; título original “Comissão da Verdade pedirá punição para cerca de 100 militares vivos, diz Pedro Dallari”
Comissão Nacional da Verdade entregará à presidente Dilma Rousseff seu
relatório final em 10.dez.2014 recomendando a responsabilização criminal
–e a punição– de aproximadamente 100 militares que ainda estão vivos e
participaram de maneira direta de violações de direitos humanos durante a
ditadura militar (1964-1985).
Em entrevista ao programa "Poder e Política",
do UOL, o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari,
55 anos, declarou que esse desfecho "é uma decorrência natural da
apuração" realizada durante 3 anos de trabalho.
"Vamos indicar a necessidade da responsabilização. Como isto vai ser
feito, se vai ser feito afastando-se a aplicação da Lei de Anistia,
reinterpretando a lei, modificando a lei, isto é algo que caberá ao
Ministério Público, ao Poder Judiciário e ao Legislativo", declarou
Dallari, que é advogado e professor da USP.
A publicação do relatório da Comissão Nacional da Verdade levará,
argumenta ele, a uma interpretação da Lei da Anistia a partir de "casos
concretos" por parte do Supremo Tribunal Federal, "com vítimas
concretas, com autores concretos".
O relatório será "impactante", com dados sobre "estupros, uso de
animais em tortura, um quadro de horrores, e a partir daí vai se
instaurar uma situação muito constrangedora no país". Para Dallari, "a
sociedade vai se virar para as Forças Armadas, para a presidente, para o
governo, esperando uma atitude. E o que é pior, como esses atuais
comandantes [das Forças Armadas] vão deixar seus postos, eles deixarão
uma bomba armada para seus sucessores, que terão que lidar então com
esse quadro muito difícil de administração".
Embora o relatório final vá nomear os responsáveis por violações dos
direitos humanos, "essa identificação dos autores não significa acusação
de que eles sejam responsáveis, porque isso depende do devido processo
legal".
Mas os relatos serão todos detalhados. "À luz do direito internacional
dos direitos humanos essas graves violações são crimes contra a
humanidade e não há anistia".
Quebra de hierarquia
O coordenador da comissão também chama a atenção para a dificuldade que
a foi enfrentada nos últimos 3 anos, com muitos oficiais das Forças
Armadas resistindo e preferindo não colaborar. Dallari cita um fato
ocorrido na sexta-feira (14.nov.2014) da semana passada, quando o
Ministério Público descobriu que um hospital do Exército, no Rio,
ocultou documentos da época da ditadura –e também houve um trabalho para
investigar quem eram o integrantes da CNV.
"Essa situação é muito grave e deve ser apurada. Ou essa ocultação de
documentos obedeceu a ordem superiores, o que eu realmente não creio, ou
houve quebra de hierarquia e desobediência ao que seria uma orientação
do [comandante do Exército], Enzo Peri", declara Dallari.
"Se o Ministério da Defesa e o comandante do Exército, diante desse
quadro muito grave, não tomarem providência, isto será visto mais do que
como inação, como cumplicidade. Não há razão para as Forças Armadas, na
sua atual composição, se acumpliciarem com condutas que não
praticaram".
A seguir, trechos da entrevista concedida por Pedro Dallari na manhã de 17.nov.2014, no estúdio do UOL:
A Comissão Nacional da Verdade apurou que 421 pessoas foram mortas
ou desapareceram pelas mãos do regime militar. A Comissão sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos tem uma lista um pouquinho menor, 362 nomes.
Tem um dossiê que foi preparado pelos familiares das vítimas que falou
em 436 mortos e desaparecidos. Por que ocorre essa diferença nesses
números?
Pedro Dallari – Esse número de 421 nomes não é definitivo. Ainda
estamos fazendo uma triagem e creio que vá subir um pouco e ficar na
faixa dos 430 nomes. A diferença se deve a critérios de comprovação e de
documentação. Por exemplo, na lista dos familiares aparece uma pessoa
que faleceu no exterior vítima de um acidente de automóvel, ou de
motocicleta. Nós não consideramos esse tipo de situação como uma morte
que decorre diretamente das graves violações de direitos humanos. Mas
desde que os critérios fiquem explicitados, essa diferença não é
relevante. No caso da Comissão de Mortos e Desaparecidos, esse número é
um pouco menor porque envolveu limitações com relação ao prazo dos
pedidos.
Entregue o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em 10
dezembro, esse será o número oficial de mortes e desaparecidos por conta
do regime militar?
P.D. – Sem dúvida. Como a Comissão Nacional da Verdade é um
órgão de Estado, os números que ela apresentar terão esse caráter
oficial.
Nesta terça-feira, 18 de novembro de 2014, completam-se 3 anos da
sanção da lei que criou a Comissão Nacional da Verdade. Nesse período,
como o sr. definiria a relação que os integrantes da Comissão tiveram
com as Forças Armadas?
P.D. – Uma relação difícil. Desde o começo ficou claro que,
embora as Forças Armadas não fossem se opor à Comissão Nacional da
Verdade, a disposição para uma colaboração efetiva não seria grande. Não
podemos reclamar do atendimento e do relacionamento que nós tivemos por
meio do Ministério da Defesa, que foi bom. Realizamos visitas aos
locais de graves violações com abertura, com acesso a todas as
instalações que nós quiséssemos ver. Isto funcionou bem.
Mas tivemos dificuldades na obtenção de documentos. Houve documentos que só foram entregues a nós agora, no final da atividade de apuração. E há a situação, que para nós não está suficientemente comprovada, em que as Forças Armadas alegam que um grande número de documentos foi destruído. Nós não temos nenhuma evidência dessa destruição e os documentos não aparecem. E agora, recentemente, houve o episódio no Hospital Central do Exército [no Rio], onde documentos que eram dados como não existentes ou como desaparecidos estavam numa sala secreta.
O que aconteceu no Hospital do Exército?
P.D. – É um episódio muito recente, muito grave. Em setembro, a
Comissão Nacional da Verdade, acompanhada de membros da Comissão da
Verdade do Rio, fez uma visita ao hospital. Havia denúncias de que
pessoas foram detidas lá e, eventualmente, torturadas. No caso do
engenheiro Raul Amaro [1944-1971], há evidências muito sólidas de que
ele foi torturado dentro do hospital. Nós queríamos o prontuário médico
dele. Fomos ao hospital, fizemos a visita e não conseguimos localizar
documentos. O diretor do hospital disse que não tinha documentos que não
aqueles que estavam nos arquivos, que eram mais recentes. Disse que que
essa documentação não existiria mais e que ele não saberia onde
estariam.
E posteriormente?
P.D. – Graças a uma denúncia anônima, o Ministério Público
Federal fez uma diligência na última sexta-feira, dia 14 de novembro [de
2014], no hospital e descobriu, em salas que não eram aquelas que
deveriam estar, prontuários médicos de anos referentes à ditadura e
outros documentos que deveriam estar no Instituto Médico Legal do
hospital. E [descobriu] um dossiê dos membros da Comissão Nacional da
Verdade e da Comissão Estadual da Verdade, com fotografias, demonstrando
que, previamente à nossa visita, eles fizeram uma investigação. Revelou
a ocultação de documentos, o que é um absurdo tratando-se de uma
solicitação feita por um órgão de Estado. E uma investigação sobre os
membros da Comissão feita pelo Exército que não se justifica.
Que informações continham esses dossiês sobre os integrantes da Comissão Nacional da Verdade?
P.D. – Recebi essa informação do Ministério Público Federal. O
procurador da República Antonio Cabral, muito preocupado, me ligou e
disse: "Descobrimos uma sala em que havia um cofre, uma pasta com
documentos sobre Raul Amaro". Não o prontuário médico dele, mas outros
documentos, e também uma pasta com informações sobre os visitantes [da
Comissão], com fotografias e biografias.
O Ministério Público conseguiu identificar a origem desse dossiê?
P.D. – Não. Ele só conseguiu localizar porque era uma operação
de busca e apreensão. Ele apreendeu o dossiê e vai agora, pelo o que eu
soube, pedir a instauração de um inquérito policial.
Foi ouvido o diretor do hospital?
P.D. – Consta que o diretor teria alegado completo desconhecimento sobre tudo que foi encontrado.
Inclusive a sala onde estavam os documentos?
P.D. – Inclusive sobre a sala dos documentos. Eu não tenho
nenhum motivo para achar que isto tenha decorrido de uma ação coordenada
dos comandantes militares. Mas o fato de que tenha ocorrido a ocultação
de documentos da Comissão Nacional da Verdade e a investigação dos
membros da Comissão é bastante grave e eu espero que o Ministério [da
Defesa] tome providências.
Qual é o volume de documentos encontrados nessa sala?
P.D. – Nesta sala em que foi achado o dossiê da Comissão
Nacional da Verdade havia alguma documentação de Raul Amaro, mas não o
prontuário. Em outra sala, chamada de sala de contingência, e que não
era a sala dos arquivos do hospital, foram localizados em sacos
plásticos um conjunto de prontuários que envolveriam anos em que houve
graves violações de direitos humanos.
Esse material foi apreendido?
P.D. – Foi todo apreendido. E o fato de que ele estava separado mostra que alguma preocupação havia por parte dos militares.
Qual é o volume aproximado?
P.D. – Número eu não sei avaliar. Mas somando os diversos anos
referentes ao material encontrado, eu acredito que dê um número maior
que 6 ou 7 anos, bem no período da repressão.
Essa atitude pode ter sido de alguém do próprio hospital e não necessariamente de algum comandante, ao seu juízo?
P.D. – O próprio diretor do hospital é um general, é um oficial
graduado. O que não creio é que tenha partido dos comandantes ou do
comandante do Exército. Não tenho nenhum motivo para achar que o general
Enzo Peri tenha qualquer relação com isso. Agora, a minha avaliação é a
seguinte. Sinto nas Forças Armadas um certo autismo por parte dos seus
comandantes. Periodicamente a Comissão Nacional da Verdade divulga seus
relatórios preliminares de pesquisa, apontando fatos muito graves que
ocorreram no período da ditadura militar. Caso Riocentro, caso Rubens
Paiva, caso da Casa da Morte de Petrópolis, com provas, depoimentos
testemunhais, evidências localizadas. E a reação do comando das Forças
Armadas tem sido um tanto quanto autista. Eles não reagem. Não reagem.
Sempre que há alguma informação, a imprensa vai procurar o outro lado,
vai procurar saber qual é a posição, eles dizem que não comentam as
atividades da Comissão. Eu tenho receio de que isto tenha estimulado em
escalões inferiores uma certa resistência a apoiar a Comissão Nacional
da Verdade. E aí podemos ter um evento grave, embora isolado, como esse
do Hospital do Exército.
Essa atitude por parte do comando das Forças leva a atitudes como essa no Hospital do Exército do Rio?
P.D. – Como essa, como o episódio em que alguns oficiais da
reserva se negaram a ir depor, um deles até escreveu no termo de
convocação que se recusava a depor: "Não colaboro com o inimigo,
virem-se". Uma reação que obviamente não era orientada pelo comando, mas
o fato de que o comando se mantém inerte cria espaço para esse tipo de
reação.
O sr. citou o comandante Enzo Peri, do Exército. Ele, em fevereiro
de 2014, disse que em todas as requisições de informação sobre o regime
militar teriam de ser encaminhadas a ele, impondo, na prática, um
controle centralizado do fluxo de informações. Esse general que comanda o
hospital do Rio de Janeiro...
P.D. – General Vitor César.
...De maneira deliberada ou inadvertida, mantém esses documentos lá,
que eram documentos que a Comissão da Verdade estava procurando. Mas o
comandante do Exército pediu que tudo fosse enviado a ele. Houve quebra
de hierarquia de alguém?
P.D. – Sem dúvida. Por isso que essa situação é muito grave e
deve ser apurada. Ou essa ocultação de documentos obedeceu a ordem
superiores, o que eu realmente não creio, ou houve quebra de hierarquia e
desobediência ao que seria uma orientação do Enzo Peri. Nós aguardamos
que entre hoje [segunda-feira, 17.nov.2014] e amanhã [terça-feira,
18.nov.2014] o Ministério da Defesa tome providências. Se o Ministério
da Defesa e o comandante do Exército, diante desse quadro muito grave,
não tomarem providência, isto será visto mais do que como inação, como
cumplicidade. Não há razão para as Forças Armadas, na sua atual
composição, se acumpliciarem com condutas que não praticaram.
Por que os atuais comandantes das Forças não têm uma atitude mais proativa?
P.D. – Confesso que não tenho resposta. A Comissão foi criada
pelo Congresso Nacional, com sanção da presidente da República, com a
presença no seu ato de instalação dos ex-presidentes da República do
Brasil, dos comandantes militares, do ministro da Defesa, dos ministros
do governo. Seria razoável que os comandantes militares reagissem diante
disso. E hoje está mais que demonstrado não só que houve graves
violações de direitos humanos, mas que essas violações não foram
produtos da ação isolada de alguns psicopatas, casos fortuitos, foram
produto de uma atividade planejada, sistemática. Caberia nesse momento,
aos comandantes, reconhecer isto. É o que nós pedimos, que eles
reconheçam que houve essas graves violações. Que houve protagonismo nas
Forças Armadas, de tal maneira que se encerre, com a Comissão Nacional
da Verdade e com esse reconhecimento por parte das Forças Armadas, se
encerre definitivamente este período da história do Brasil.
A criação da Comissão Nacional da Verdade é obra da atual
administração federal, comandada pela presidente Dilma Rousseff. Por
outro lado, a atitude, talvez, tímida da presidente em cobrar dos seus
comandantes das Forças uma atitude mais proativa os leva também a agir
dessa forma. Há um paradoxo?
P.D. – A presidente tem dito, com frequência, que vai aguardar o
relatório da Comissão Nacional da Verdade e em função daquilo que for
recomendado vai tomar atitudes. E, em 10 de dezembro, nós faremos essa
entrega à presidente Dilma.
Essa data de 10 de dezembro é um marco que pode significar duas coisas diferentes.
Quais?
P.D. – Uma delas é a seguinte. Se os militares, antes disso,
tendo em vista tudo que foi apurado, se antecipam com o reconhecimento
do que houve por parte delas, [eles] convertem esse 10 de dezembro numa
data de celebração. Ou a data pode ser o contrário, não haver nada até
lá, as Forças Armadas não reconhecerem o papel que tiveram nessas graves
violações de direitos humanos, tortura, morte, execução,
desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres.
O relatório vai ser impactante, com dados sobre estupros, uso de animais em tortura, um quadro de horrores, e a partir daí vai se instaurar uma situação muito constrangedora no país. Vão ser apresentados dados e a sociedade vai se virar para as Forças Armadas, para a presidente, para o governo, esperando uma atitude. E o que é pior, como esses atuais comandantes vão deixar seus postos, eles deixarão uma bomba armada para seus sucessores, que terão que lidar então com esse quadro muito difícil de administração.
Há risco, se os militares mantiverem essa posição, de voltar aquele
discurso de que a Comissão da Verdade é revanchista, que quer mexer em
coisas do passado que deveriam ser deixadas para lá, porque a Lei da
Anistia está aí e não se deve falar nisso?
P.D. – Não creio, porque a Comissão conquistou ao longo da sua
atuação uma credibilidade muito grande que a imuniza contra esse tipo de
avaliação.
Dou um exemplo de por que isso não tem aderência. Quando fizemos a apuração sobre o caso do ex-presidente Juscelino Kubistchek [1972-1976], se ele teria sido assassinado ou não e chegamos à conclusão de que não houve atentado contra o ex-presidente Juscelino Kubistchek.
Foi um acidente.
P.D. – Ele morreu num acidente. Na rodovia. E era algo que
isentava os militares, porque a suspeita que havia era que ele tivesse
sido assassinado por militares no contexto daquela chamada Operação
Condor que reuniu militares do Brasil, da Argentina, do Chile, do
Uruguai. Mesmo a Comissão tendo comprovado que isso não ocorreu, isso
não nos levou a ocultar essa informação. Pelo contrário, fizemos da
mesma maneira que nos outros casos, uma audiência pública para relatar o
resultado da apuração e mostrar que, a nosso critério, não houve
assassinato e o Juscelino morreu num acidente de automóvel.
Isentando, no caso, o regime militar.
P.D. – Isentando o regime militar. Tanto é que a única ação
judicial movida contra mim como coordenador da Comissão Nacional da
Verdade foi uma ação, já julgada improcedente, promovida pela Câmara
Municipal de São Paulo. Porque a sua Comissão da Verdade, que entende
que Juscelino foi assassinado, queria proibir a Comissão Nacional de
divulgar o seu relatório, imagine só. E o juiz, obviamente, afastou sem
julgamento do mérito, considerou improcedente a ação.
A Comissão teve muita tranquilidade, num episódio que seria de grande relevância, de dar uma versão que favoreceu os militares. Por isso a tentativa de descaracterizar a isenção da Comissão não será bem sucedida.
O Estado brasileiro deu as condições políticas necessárias para a atuação da Comissão Nacional da Verdade?
P.D. – Do ponto de vista da comparação com as cerca de 40
Comissões da Verdade que funcionaram no mundo, sim. Ela foi criada por
lei, o que dá à Comissão uma autoridade maior do que aquelas criadas por
ato do presidente da República. E não houve ingerência do Poder
Executivo. Em nenhum momento, nesses 3 anos de aprovação da lei, dois
anos e meio de funcionamento da Comissão, houve interferência, o que foi
muito positivo. A dificuldade que nós temos, e isso nos frustra, é com a
documentação das Forças Armadas. Nós queríamos muito as chamadas folhas
de alterações, que registram a vida funcional dos militares. Agora
conseguimos receber, não haverá tempo para o processamento adequado
dessas informações para o nosso relatório. Mas a obtenção dessas folhas é
um legado que a Comissão deixa, porque todo o arquivo vai para o
Arquivo Nacional.
Haverá um processo de digitalização desse material para que as
pessoas tenham mais fácil acesso de qualquer parte remota do país?
P.D. – Sim. Nós estamos digitalizando e vamos passar para o
Arquivo Nacional o nosso arquivo digitalizado. Agora, há muitas
informações que estão sujeitas a sigilo. As próprias folhas de
alteração. Portanto, o acesso a elas será controlado, não por força da
Comissão, mas pela lei. E aí haverá algum tipo de restrição, mas a ideia
é que a pelo menos, a curto prazo, a maior parte desse material esteja
disponível e uma grande parte, a médio prazo, esteja totalmente
disponível.
Por que as folhas de alteração ainda ficam sujeitas a sigilo se muitas devem ter mais de 25 anos?
P.D. – Nós temos tido cuidado porque elas dizem respeito à
intimidade das pessoas. A folha de alteração tem toda a vida funcional
de uma pessoa. Houve um caso da viúva de um general que moveu uma ação
contra a Comissão pedindo que fosse negado a entrega das folhas de
alteração, mas o Judiciário não aceitou.
Argentina, Uruguai e Chile foram países da América Latina que
adotaram condutas incisivas para punir agentes do Estado responsáveis
por crimes em suas ditaduras. No Paraguai foi montada uma comissão, mas
não se puniu militares envolvidos. No Brasil, onde o debate ainda está
aberto, qual será o modelo para o qual se vai convergir?
P.D. – Trabalho a dimensão da responsabilidade em dois planos.
Um é o que eu chamo de responsabilidade institucional, que é a política e
que é a necessidade das Forças Armadas reconhecerem que houve graves
violações de direitos humanos no Brasil, o que até hoje eles não
fizeram. As Forças Armadas não negam mais, como negavam antes, mas não
reconhecem explicitamente. E, mais do que isso, reconhecerem o
protagonismo que tiveram. Isto é uma decisão política que já devia ter
sido tomada.
Por quem?
P.D. – Pelas Forças Armadas. Resta saber em que estágio de
relação de comando a Presidência da República deve interferir, ou o
Ministério da Defesa, mas a responsabilidade em última instância é das
Forças Armadas.
Seu juízo é que a Presidência da República e o Ministério da Defesa
deveriam interferir para que os comandos das Forças tomassem atitude?
P.D. – Isso poderá ocorrer após a divulgação do relatório. As
Forças Armadas poderiam se antecipar a isso, tal o volume de evidências.
E eu quero crer que isso seja possível até 10 de dezembro.
Será que eles não temem que, no momento em que os comandantes das
Forças vêm a público e admitem violação de direitos humanos e sua
responsabilidade institucional, eles abram espaço para que ações sejam
ajuizadas contra os que ainda estão vivos, ainda que na reserva, para
serem responsabilizados criminalmente?
P.D. – Não. Pelo simples fato que essas ações já estão sendo
ajuizadas. O Ministério Público já vem propondo ações, propôs no caso
Rubens Paiva, propôs no caso Riocentro, e agora, inclusive, o Supremo
Tribunal Federal voltará a examinar essa situação a partir desses casos
concretos. E aí nós entramos na segunda dimensão da responsabilidade, a
responsabilidade individual, que envolve a discussão sobre a Lei de
Anistia. A Comissão vai recomendar que haja a responsabilização daqueles
que deram causa a essas graves violações, porque é uma decorrência
natural da apuração que ela fez. A Comissão não é um órgão
técnico-jurídico, embora muitos de nós sejamos da área do direito, ela
não é um órgão que tenha essa natureza técnica. Portanto nós vamos
indicar a necessidade da responsabilização. Como isto vai ser feito, se
vai ser feito afastando-se a aplicação da Lei de Anistia,
reinterpretando a lei, modificando a lei, isto é algo que caberá ao
Ministério Público, ao Poder Judiciário e ao Legislativo. É um debate
que já existe na sociedade, as ações já estão colocadas e é inevitável
que isto venha ocorrer.
Até o momento, o Supremo Tribunal Federal vem dizendo que a Lei da
Anistia deve ficar do jeito que está. Seria necessária uma mudança
grande por parte do Congresso para sobrestar essa decisão do Supremo.
P.D. – A decisão do Supremo Tribunal Federal foi tomada em uma
análise em tese da lei, discutindo a validade ou não da lei. O Supremo
entendeu que ela era válida.
Agora, o alcance efetivo da lei, no meu entendimento jurídico, vai acabar sendo feito pelo Supremo Tribunal Federal em casos concretos, com vítimas concretas, com autores concretos.
E a partir do momento em que o relatório da Comissão Nacional venha a público, sistematizando um volume de informações que reflete um quadro muito grave, haverá uma certa cobrança da sociedade.
A divulgação, no dia 10 de dezembro, da íntegra dos achados da
Comissão Nacional da Verdade pode acabar funcionando como um fator
propulsor da discussão sobre a Lei da Anistia?
P.D. – Sem dúvida. O relatório vai identificar as vítimas e vai
identificar autores. Essa identificação dos autores não significa
acusação de que eles sejam responsáveis, porque isso depende do devido
processo legal, mas a própria lei diz que nós devemos indicar autoria e
isto será feito.
E ao indicar a autoria, o relatório final recomendará,
explicitamente, que é necessário abrir o processo criminal e que devem
ser punidos, se for encontrada a culpa?
P.D. – Sim, sem dúvida. Isso vai estar explícito. A recomendação da responsabilização criminal civil e administrativa.
Haverá uma interpretação sobre como isso se relaciona com a Lei da Anistia?
P.D. – Não. O cuidado que nós vamos tomar é dizer o seguinte.
Deve-se afastar qualquer obstáculo que possa ser identificado, na Lei de
Anistia ou qualquer outra legislação. À luz do direito internacional
dos direitos humanos essas graves violações são crimes contra a
humanidade e não há anistia. Mas nós queremos evitar a discussão técnico
jurídica, se tem que reinterpretar a lei, se tem que revogar, porque
essa é uma discussão do meio jurídico.
E que caberá ao Supremo
P.D. – Caberá ao Supremo Tribunal.
Quantos autores de violações de direito humanos serão identificados no relatório?
P.D. – Mais de uma centena, certamente.
Vivos?
P.D. – Uma parte sim, principalmente os mais jovens, que tiveram
uma conduta relacionada à repressão. Muitos deles estão vivos porque
era mais jovens na época.
Entre os vivos que poderão ser responsabilizados criminalmente há mais de 100?
P.D. – É provável que sim. Nós ainda não fechamos. Haverá uma
reunião da Comissão na quarta-feira [19.nov.2014] em São Paulo para
fazer uma análise dessa lista. Com muito cuidado, porque mesmo que não
seja uma acusação que implique em responsabilidade, porque a Comissão
não tem essa prerrogativa, sabemos que colocar o nome numa lista dessa
tem implicação. Estamos separando, inclusive, os graus de
responsabilidade. Há, por exemplo, aqueles que são responsáveis, como os
ex-presidentes da República do período militar, pelas decisões
políticas e institucionais que geraram essas graves violações como a
política de Estado. Por exemplo, o Serviço Nacional de Informações, o
famigerado SNI, que foi uma espécie de central de terror, era um órgão
que funcionava no gabinete da Presidência da República. Era ligado ao
gabinete da Presidência da República diretamente, portanto os
presidentes têm responsabilidades.
Todos os presidentes da República do período serão considerados responsáveis?
P.D. – Institucionalmente serão considerados responsáveis, pelo
controle que tinham da principal estrutura de comando da repressão. Os
ministros militares, a mesma coisa, por quê? Porque nos gabinetes dos
ministros militares funcionavam os centros de informação. O Centro de
Informação do Exército, o Centro de Informação da Marinha e o Centro de
Informação da Aeronáutica. Esses centros de informação foram as grandes
centrais em cada Arma que, relacionando-se com o serviço nacional de
informações, conduziram a atividade de repressão.
Temos aí também, descendo mais, os governadores de Estado e os
prefeitos de capitais e cidades consideradas de segurança nacional que
tinham muito contato com os órgãos de repressão...
P.D. – Mais aí é um pouco mais complicado porque para a Comissão
é muito importante que a apuração da vinculação decorra de um nexo
causal evidente. Abaixo desses que tiveram controle político, nós
identificamos aqueles que tiveram o controle pela gestão de estruturas
de repressão. Aqueles que chefiaram os Doi-Codis [Destacamento de
Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna],
chefiaram Dops [Departamento de Ordem Política e Social], chefiaram
estruturas que tiveram realmente uma atuação comprovada na tortura, na
execução de pessoas. Mesmo que essas pessoas não tenham participado
diretamente da tortura, ao controlarem uma estrutura cuja finalidade
específica era torturar e matar, há uma responsabilidade objetiva.
Caso, por exemplo, do general [José Antônio Nogueira] Belham, que dirigiu o Doi-Codi do Rio de Janeiro de 70 para 71, durante um período em que comprovadamente 8 pessoas que foram executadas ou desapareceram passaram por lá, inclusive o ex-deputado Rubens Paiva. Então ali há uma responsabilidade evidente, porque se ele era o chefe daquela instalação que era destinada àquela finalidade, esta responsabilidade está comprovada.
E no caso de empresários e empresas que colaboraram ostensivamente com a ditadura?
P.D. – Aí nós fazemos uma distinção, também muito cuidadosa,
entre o apoio que houve ao regime e aquilo que é o objeto da Comissão,
que são as graves violações dos direitos humanos.
Empresários que deram dinheiro para a Oban [Operação Bandeirante], por exemplo?
P.D. – Isso, aí sim. Está certo. Porque aí é uma colaboração não
só com a ditadura, mas com as graves violações. Nós iniciamos essa
apuração, há um dos textos do relatório que vai tratar disso, mas é uma
das áreas da nossa investigação que nós, na verdade, avançamos não tanto
quanto nós gostaríamos. Ficará para a continuidade.
Haverá um capítulo?
P.D. – Haverá um texto, um capítulo que trata justamente disso,
mas que nós mesmos reconhecemos que tem que ter aprofundamento. Há
algumas áreas, e a gente não tem nenhum problema de reconhecer isso, em
que avançamos menos.
Uma coisa que nos frustra enormemente diz respeito à localização dos corpos de desaparecidos políticos. Nós calculamos hoje em cerca de 200 os desaparecidos políticos. Cerca de 30, além desses, foram localizados desde que constaram como desaparecidos, mas apenas 1 foi localizado no período de funcionamento da Comissão Nacional da Verdade. E isto está diretamente associado à ausência de documentos das Forças Armadas, porque um número significativo, mais de 70, desapareceram na Guerrilha do Araguaia. Quem sabe onde estão os corpos são as Forças Armadas e nós não conseguimos essa informação.
Ou seja, cerca de 200 desaparecidos durante o regime militar continuarão desaparecidos?
P.D. – Continuarão desaparecidos. E isso para nós é a maior
frustação. Houve uma decepção muito grande. O esforço foi brutal da
nossa parte, mas nós não tivemos êxito em avançar mais nessa
localização.
Terminado o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, em 10 dezembro
de 2014, entrega-se o relatório. Quem, a partir da entrega do
relatório, cobrará consequências a partir do que achou a Comissão
Nacional da Verdade?
P.D. – A rigor, a sociedade, porque, a Comissão Nacional da
Verdade se extingue. Em 10 de dezembro nós entregamos o relatório e a
lei fixou a nossa data de extinção, 16 de dezembro. Então, a partir de
16 de dezembro, nós seremos história.
Que recomendação o sr. faria para o Estado brasileiro?
P.D. – Vamos propor que haja a criação, assim como houve no
Uruguai –no Uruguai teve até um nome poético, a Secretaria do Passado
Recente–, de um órgão que possa dar continuidade, em bases permanentes,
ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade. Talvez não com as mesmas
prerrogativas.
No âmbito da Presidência, do ministério?
P.D. – Da Presidência, ou da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República, como já é a Comissão de Mortos e
Desaparecidos, ou do Ministério da Justiça, como é a Comissão de
Anistia. Uma Comissão de seguimentos seria uma medida importante, porque
há necessidade de haver um órgão que centralize a continuidade dessas
iniciativas que a Comissão desenvolveu e são muito positivas.
O momento é um pouco conturbado do ponto de vista político. A
eleição de 2014 foi muito dura. Há um grande escândalo de corrupção na
praça. E o aspecto econômico também vai requerer cuidados por parte da
Presidência da República. Nesse ambiente, fica muito difícil para a
presidente comprar mais uma briga e tentar empurrar para frente as
recomendações da Comissão Nacional da Verdade?
P.D. – Não tenho condições de avaliar esse contexto todo. Agora,
que a Comissão Nacional da Verdade está propondo quando reivindica que
as Forças Armadas reconheçam as graves violações que existiram, e quando
apresenta recomendações no sentido do aprofundamento das investigações
que ela mesmo conduziu, ela está em sintonia com esse sentimento geral
da sociedade que clama pelo quê? Por transparência, por responsabilidade
dos órgãos públicos, por prestação de contas, aquilo que os
norte-americanos chamam de "accountability".
O que nós estamos querendo que as Forças Armadas façam é prestar contas. São instituições do Estado. Assim como a sociedade clama para que a Petrobras preste contas, para que o governo preste contas. Portanto, sou mais otimista, identifico nesse movimento que a Comissão Nacional da Verdade está fazendo em relação às Forças Armadas uma enorme sintonia com o movimento que existe hoje na sociedade em relação ao Estado brasileiro.
O sr. acredita que a presidente Dilma vai se engajar para ajudar a
reinterpretar a Lei da Anistia ou empurrar adiante esses processos de
criminalização de quem for apontado como violador dos direitos humanos?
P.D. – Ela não vai, certamente, e nem deve, se enfronhar numa
discussão que cabe ao Poder Judiciário, cabe ao Ministério Público, e
eventualmente ao Parlamento. Mas na medida em que a Comissão Nacional da
Verdade apresente o seu relatório isto estará presente no domínio da
sociedade. É algo que a própria sociedade vai colocar em pauta.
Gostaria muito que as Forças Armadas tomassem essa iniciativa e tivéssemos esse avanço até antes de 10 de dezembro. Para que em 10 de dezembro, o dia dos Direitos Humanos, a data m que em 1948 foi celebrada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, nós tivéssemos uma celebração. Porque a lei fala que a Comissão Nacional da Verdade deve procurar trabalhar para promover a reconciliação. A reconciliação viria desse reconhecimento pelas Forças Armadas de que houve, realmente, fatos muito graves e isto encerraria esse período da história. Se não vier antes, virá depois, é inevitável. Pode levar uma semana, um mês, um ano, mas virá.
A impressão que se tem é que é um problema geracional. Enquanto
houver oficiais que já estavam nas Forças à época da ditadura, vai ser
difícil isso acontecer. O sr. concorda?
P.D. – É um argumento ponderável, mas, por outro lado, nas
visitas que fizemos às instalações militares –e nós fomos acompanhados
por muito oficiais que ouviram as vítimas–, eu vi, no rosto daqueles
jovens oficiais, um constrangimento tão grande, porque eles não
participaram disso, não deram causa a isso.
Os atuais comandantes deveriam refletir. E um gesto deles tiraria desses jovens oficiais esse legado que eles têm que carregar, que é uma espécie de corresponsabilidade institucional pelas graves violações que existiram.
Ao mesmo tempo que eu reconheço, até por esse aspecto geracional e até afetivo, dificuldade nos comandantes atuais, por outro lado vejo neles a possibilidade de adotar um gesto que terá uma importância enorme no sentido de liberar as Forças Armadas desse passado.
As Forças Armadas têm recebido apoio da sociedade brasileira. Entre os maiores investimentos do Estado brasileiro estão investimentos na Forças Armadas. Por exemplo, o submarino de propulsão nuclear. É o maior investimento individual que existe do Estado brasileiro hoje em desenvolvimento de tecnologia.
O investimento no projeto que a Embraer está desenvolvendo para os aviões que vão substituir os antigos Hercules. A renovação da frota de jatos com a compra dos jatos Gripen suecos.
Se as Forças Armadas querem merecer este apoio da sociedade e serem credoras, e devem ser, elas têm que ter credibilidade, têm que ter respeitabilidade, e por isso não podem ter uma conduta em relação a graves violações que não revele a transparência necessária. Entendo que é muito importante que as Forças Armadas liquidem esse passivo que existe da vinculação às graves violações, para que possam transitar com mais tranquilidade num futuro onde elas são muito importantes para o Brasil.
Há muitas manifestações de rua ocorrendo desde o processo eleitoral e
parcela dos manifestantes pede a volta da ditadura militar. Existe na
sociedade hoje esse tipo de sentimento, na sua avaliação, de maneira
enraizada?
P.D. – Não acredito. Essa demanda aparece mais numa conduta
quase patética de alguns do que propriamente como expressão organizada
da sociedade. Não identifico isso no Brasil como existem em outros
países.
No Chile, por exemplo, vejo ainda largos setores sociais com uma certa nostalgia do pinochetismo. Não vejo isso no Brasil. As manifestações são quase patéticas. Isso no Brasil está sepultado.
A Comissão Nacional da Verdade ajudou um pouco isso, apresentando dados, fatos e informações sobre o horror que foi a ditadura. Se alguém pudesse ter nostalgia, deixou de ter. Porque é óbvio que a democracia tem suas dificuldades, mas como já dizia Winston Churchill (1874-1965), pode ser o pior dos sistemas, com exceção de todos os outros.
O sr. é professor, mas teve também uma vida muito ativa
político-partidária. Foi do PT. Depois, filiou-se ao PSB –partido ao
qual ainda continua filiado. O sr. pretende retomar sua atividade
político-partidária após a participação na Comissão Nacional da Verdade?
P.D. – De maneira nenhuma. Considero que foi uma fase muito
importante da minha vida. Dediquei-me a ela com muita intensidade. Fui
vereador em São Paulo, fui deputado estadual por duas legislaturas,
exerci funções no Poder Executivo, na gestão da prefeita Luiza Erundina.
Sou muito realizado com relação a isso. Encerrada essa atividade da
Comissão Nacional da Verdade, volto à Universidade de São Paulo, onde
sou professor do Instituto de Relações Internacionais e diretor, e à
minha atividade de advogado.
>> A seguir, os vídeos da entrevista (rodam em smartphones e tablets, com opção de assistir em HD):
Fernando Rodrigues, do UOL
Fonte: Observatório da Imprensa
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