novembro 03, 2014

"Éder Sader: do nacional-popular às práticas da autonomia", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "Muitas vezes a necessidade de ação, a urgência das demandas impede uma ideia geral sobre seu significado, e é aí que a teoria desdobrada com método materialista pode balizar as perguntas. Saber e ousar procurar noutro lugar e prolongar as linhas de confluência de movimentos de novo tipo continua sendo o desafio de quem aposta na renovação radical das instituições pela via das lutas e suas estratégias."

Éder Sader: do nacional-popular às práticas da autonomia
Morro dos Prazeres/RJ 
Morro dos Prazeres – Foto: Ratão Diniz


Éder Sader (1941-1988) foi o primeiro autonomista marxista brasileiro que deixou uma obra sistemática de método. O primeiro a assumir e valorizar, como objeto de estudo e proposta política estratégica, as práticas de autonomia diretamente implicadas nos movimentos sociais. Um método de especial relevância nos dias de hoje, quando se tem não apenas a crise da representatividade de partidos, movimentos e instituições, mas talvez o seu esgotamento final diante das transformações sociais e a emergência de novas lutas, de uma positividade cujas linhas organizativas e matrizes discursivas ainda são incertas, porém determinadas em se exprimir. É aliás uma tendência mundial que se afirma de um jeito ou de outro.

No período em que a ditadura fez terra arrasada da esquerda marxista, Éder foi o primeiro a identificar a luta de classe noutro lugar. Ao contrário do pessimismo e da sensação de revolução abortada, o sociólogo enxergou uma década de 70 povoada de movimentos de novo tipo. De novo tipo porque não se organizavam nem se mobilizavam nos termos orgânicos da esquerda brasileira nos anos 50 ou 60. Tais lutas viriam a ser fundamentais, na virada para os anos 80, para levar a crise da transição da ditadura até a dimensão constituinte, para uma ordem institucional menos autoritária.

O nacional-popular dos anos 60

Para compreender o grau de renovação proposto na teoria e prática por Éder, é preciso recuar alguns anos para o período do golpe e imediatamente a seguir. Generalizando um pouco, e correndo o risco de acomodar polêmicas cruzadas, a esquerda daquela período em regra era nacional-popular. Adotava a linha anti-imperialista, isto é, que a emancipação dependia da conjugação de valores nacionais com conscientização popular. Inspirada pela douta tradição de formação nacional, compartilhava o diagnóstico de que era preciso concluir o percurso formativo do povo brasileiro, abortado tantas vezes pela reação das elites, o atraso congênito da colonização e as restrições impostas pelas economias centrais. Só assim seria possível estruturar os pilares de uma cultura nacional e popular para sustentar o projeto de estado-nação, deixando a periferia da economia global.

No plano econômico, bem representado teoricamente por Celso Furtado e os cepalinos, isto significava aliar modernização produtiva com democratização social. Por um lado, construir uma economia nacional com base na industrialização e substituição das importações. Por outro lado, democratizar o mundo do trabalho atrelando o desenvolvimento à inclusão social. No plano ideológico, significa adotar um progressismo nacionalista, que atribuía às esquerdas mais intelectualizadas a missão de combater os arcaísmos da sociedade brasileira. O que desemboca num esforço de múltiplas frentes. Por exemplo, na pedagogia do oprimido (Paulo Freire) e alfabetização popular, em ânimo reformista e cristão, que via na promoção e educação do homem pobre uma maneira de intervir na equação perversa da dominação de classe. Mas também nos centros populares de cultura (CPC) e no teatro de arena, que iam encenar clássicos nacionalizados às portas da fábrica, bairros operários, universidade, escolas e sindicatos.

Tudo isso sedimentou num “nacionalismo de esquerda”, numa palavra: “progressismo”, que no limiar dos anos 60 conduziu à estratégia da aliança entre a esquerda e a burguesia nacional, que deveriam ocupar o estado amigados pelo estandarte anti-imperialista e tendencialmente convergentes num reformismo nacional-popular-desenvolvimentista. Desse período, vêm instintos até hoje presentes na esquerda, como o amor à burocracia estatal e ao “setor produtivo”; a valorização do capitalista industrial nacional em relação ao capitalista financeiro globalizado, à cultura nacional como foco de resistência contra a hegemonia cultural americana, a um conceito de povo romantizado e sentimentalizável, a apologia da massa alegre, festeira e autêntica que sabe das coisas, o “povão”, uma noção sumamente ambígua e facilmente instrumentalizável pelos projetos políticos.

O golpe e a derrota

Com o golpe de 64, a efervescência ideológica e cultural se depara com uma sustação abrupta e brutal. A aliança com a burguesia nacional é traída no momento em que se esboçavam políticas de reforma agrária e socialização dos meios de produção, quando aquela prefere financistas e generais às promessas socialistas. O trabalho com as forças populares não garantiu mobilização à altura. O momento é de perplexidade entre os meios de esquerda, que passam a debater alternativas e autocríticas, no teatro, no jornalismo, nas artes plásticas, no cinema.

Em 1967, o filme Terra em transe, de Glauber Rocha, foi talvez o ponto máximo de exasperação do trauma. Implacável provocação à estratégia da esquerda nacional-popular, Glauber constrói uma dolorosa alegoria da derrota sem qualquer pretensão de oferecer saída. No triste e tropical Eldorado, metáfora do Brasil da época, o povo não emerge consciente e organizado, e aparece como massa de manobra entre as negociatas das elites e os ideais de emancipação da esquerda intelectualizada. É uma crítica feroz ao modelo de militância de uma geração e à estratégia da esquerda, pelo que Glauber jamais seria perdoado.

Como se sabe, na entrada dos anos 1970 a esquerda que optou pela luta armada foi dizimada em todos os frontes, sob pano de fundo do progressismo autoritário do milagre econômico. Torturada e morta com trilha sonora do futebol, da telenovela e do Brasil pra frente. As tentativas de alternativa, como nas artes políticas a Tropicália, acabaram igualmente sufocadas, relegadas aos veios mais ou menos isolados da contracultura.

A renovação de Éder Sader


É nesse cenário que Éder Sader contorna a negatividade dos críticos e pesquisou uma alternativa real. Em vez de modelos totalizantes, que determinavam a luta de classe como subproduto da grande narrativa contra o imperialismo, Éder estudou a classe como luta. A classe não luta porque existe, ela existe porque luta: a luta é primeira, onde há luta há classe. Éder desloca os pressupostos condescendentes das pedagogias do oprimido, não mais pressupondo o povão onde existem e podem ser encontradas, na verdade, formas próprias e qualificadas de organização e ação política. Daí que, recusando o modelo de militância voltado à emancipação do popular, prefere se implicar em movimentos em estado nascente, onde o popular já emerge entretecido com os fios de sua organização e autoelaboração de experiências.

A autonomia invocada pelo método ederiano é autonomia em relação ao poder constituído, enquanto instituição autoritária subjugada pela ditadura; como também autonomia em relação à própria esquerda. Isto não significa, no entanto, que novos movimentos rompam com a possibilidade de construir uma esquerda, mas sim que transformam a própria noção do que significa ser esquerda — como de fato essa realidade se transformou no Brasil a partir dos anos 80.

Em Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80), Éder condensou as orientações principais de seu método, elaboradas em consonância com o trabalho de pesquisa implicada, sua militância e sua capacidade de interlocução com diversos protagonistas das lutas sociais de seu tempo. Nele, o sociólogo apresenta três eixos de sucessiva organização de lutas sociais em São Paulo: a formação dos clubes das mães da periferia sul, o novo sindicalismo da oposição metalúrgica em São Bernardo, e o movimento da saúde da zona leste da cidade.

Linhas de método


Em linhas gerais, e dando margem à esquematização, o autonomismo marxista de Éder se baseia em:

1) O reconhecimento da capacidade de elaboração da experiência de exploração, discriminação e sofrimento pelos próprios explorados, assumidos como sujeitos de suas narrativas coletivas de vida e resistência. Sua singularidade é primeira em relação a modelos totalizantes, tais como, por exemplo, o paradigma de formação do povo brasileiro, regionalismos românticos ou a integração pela luta anti-imperialista. Nesse sentido, é um método perspectivista.

2)  A articulação sucessiva dessa experiência leva ao fortalecimento de instâncias de auto-organização, que tentam manter autonomia em relação ao poder constituído (a prefeitura, o sindicato, as empresas), num jogo de vaivéns e deslocamentos táticos para evitar a neutralização pela cooptação ou pela repressão.

3) A auto-organização conduz não só a reivindicações diante das autoridades, bem como ao surgimento de instituições próprias que conferem duração e organicidade à luta, num ciclo virtuoso de envolvimento e capacidade de agir e lutar.

4) A inseparabilidade entre luta social e luta política. O âmbito institucional da representação deixa de ter primazia sobre a expressão direta da vida social enquanto resiste às condições adversas e busca sua transformação.

5) A multiplicidade das expressões dos diferentes movimentos, que terminam por qualificar a luta de classe. Esta é perpassada de virtudes singulares e muda de composição: o tema do cuidado no caso do movimento da saúde, a luta das mulheres nos clubes de mães, a ampliação da noção de vida produtiva, abarcando questões como moradia, transporte e saúde, no caso da oposição operária metalúrgica.

6) A recusa do compromisso nacional-populista não se dava em termos vagos, o que poderia levar aos foquismos, rejeitados por Éder. Ou seja, organizações fechadas, descoladas da experiência cotidiana, cuja vanguarda prematura (vanguardismo) confere um valor desmedido a ações intempestivas, distendendo a confrontação ao máximo sem se preocupar com o “crescimento horizontal da luta de classe”.

7) As condições de luta apresentadas estão dadas pelas transformações das forças produtivas em circunstâncias históricas específicas. No caso, a formação dos grandes aglomerados urbanos e industrializados de São Paulo, o que dependeu do encontro de uma dupla desterritorialização: o fluxo de migrantes do campo e de outras regiões, em especial o Nordeste, e o fluxo de dinheiro “livre” advindo dos empréstimos e financiamentos, cuja garantia é o poder autoritário de sindicatos/ditadura. Ambos os processos estão marcados pela violência da forma capitalista, que se enraíza como experiência de exploração e sofrimento no corpo social. As resistências e lutas sociais daí irrompidas, então, são luta de classe. Em termos marxistas, a organização da luta acelera a crise entre forças produtivas (mobilização do trabalho) e relações de produção (dominação e discriminação).

8) O desejo de autonomia não deixa de implicar a aspiração por mutação institucional, a fim de retroalimentar as práticas de luta, possibilitando que elas avancem a novos problemas e patamares. O clube das mães reivindica e pressiona pela formulação de políticas para as periferias, as comissões de saúde tensionam pela melhoria e democratização dos serviços públicos, ao mesmo tempo que o novo sindicalismo busca transformar e revalorizar o papel do sindicato, uma vez liberto do poder patronal e da ditadura.

Conclusão

O método autonomista descrito por Éder, — cuja elaboração é indissociável das lutas que o qualificaram e deve ser sempre atualizado às condições existentes, — supera os dilemas e insuficiências de uma esquerda dispersada que se inclinava à melancolia e ao imobilismo. Em vez de sindicatos alheados das demandas e a desorganização das periferias, Éder identifica os eixos de movimentos de novo tipo, além do vanguardismo derrotado e do trauma do “progressismo nacionalista” abortado pelo golpe. Em condições extremamente desfavoráveis no começo dos anos 1970, o pesquisador consegue acompanhar a tendência de virada que determinou o desdobramento da crise da ditadura, uma crise simultaneamente política, social e econômica.

A tensão entre autonomia e instituição, no limiar dos anos 1980, se resolve pelo alargamento da representação política, com o reconhecimento da legitimidade das novas organizações e sujeitos, que confluem no momento fundacional do PT, a nova síntese para aquele tempo. Com efeito, dá-se a incorporação gradativa das formas e métodos na dinâmica institucional, o que por sua vez conduz a novos problemas e novas contradições. A pesquisa autonomista empreendida não só capta uma força real crescente, como dá sua contribuição prática, reidratando conhecimento segundo um acúmulo gradual.

Muitas vezes a necessidade de ação, a urgência das demandas impede uma ideia geral sobre seu significado, e é aí que a teoria desdobrada com método materialista pode balizar as perguntas. Saber e ousar procurar noutro lugar e prolongar as linhas de confluência de movimentos de novo tipo continua sendo o desafio de quem aposta na renovação radical das instituições pela via das lutas e suas estratégias. Éder Sader caminha conosco.


Fonte: Quadrado dos Loucos

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