PICICA: "A transcendência é o risco derradeiro da
filosofia. Há religião, e não filosofia, cada vez que se decide
construir um Império celeste no plano, permitindo que o pensamento opere
por figuras, que nada mais fazem do que projetar sombras por sobre o
solo. “A parte da imanência, ou a parte do fogo, é por ela que se
reconhece o filósofo”. Vem daí a admiração a Espinosa, nas palavras de
Deleuze: “o príncipe dos filósofos”, “o tornar-se filósofo infinito”."
Deleuze: o que é Filosofia?
Não
há pergunta mais exigente para uma filosofia da diferença do que esta:
“que sou eu?”. Em 1991, Gilles Deleuze escreveu, em conjunto com Félix
Guattari, seu último livro. Um livro de velhice, um livro
despojado de estilo, preocupado em falar concretamente. “Mas o que é
isso que eu fiz toda a minha vida?”, pergunta ele. O que é a Filosofia
é o livro em que Deleuze pretende, tal qual máquina, combinar todas as
suas peças “para enviar ao porvir um traço que atravesse as eras…”. Dada
a grandeza da questão, não pretendo senão esboçar uma interpretação da
resposta de Deleuze, uma leitura sustentada por quatro pilares:
singularidade, multiplicidade, alteridade e mobilidade.
O que é um filósofo? É um conceito em potência, diz Deleuze. E a filosofia? É a disciplina que consiste em criar conceitos. O filósofo é o artesão a quem compete a criação dos conceitos e a filosofia é a sua profissão, seu métier.
Esta é, em suma, a resposta deleuziana: “a questão da filosofia é o
ponto singular onde o conceito e a criação se remetem um ao outro”. Esta
conclusão não é nada mais que um princípio, uma faísca que faz acender
uma série de outras questões. Que é um conceito? O que ele supõe? De que
tipo de criação falamos aqui? Qual é o seu lugar?
O conceito é questão de articulação; é um
complexo de componentes representados por um nome. Todo conceito remete
a um problema e só se criam conceitos em função de problemas. Saber
colocar-se problemas, eis um sinal de maturidade. Ser filósofo é também
trabalho de papel, cola e tesoura: é preciso saber cortar, ligar,
desconectar ideias nos conceitos para fazê-los responder aos problemas.
Conceituar é “conectar compononentes interiores até a saturação ou o
fechamento”, de tal modo que mudar suas conexões, mudaria sua natureza.
Toda criação é singular e o conceito, como criação propriamente filosófica, é sempre uma singularidade. O primeiro princípio da filosofia é que os Universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados” p.13
A oposição entre singularidade e
universalidade é então a primeira característica da noção deleuziana de
filosofia. Onde há apenas contemplação, reflexão e comunicação, não há
filosofia, pois essas faculdades são máquinas de construir Universais. O
fato de ter de ser criado impede ao conceito a universalidade. “Os
conceitos não nos esperam inteiramente feitos. Não há céu para os
conceitos”. Resta saber: que unidade resta à filosofia? Pouca ou
nenhuma.
O conceito tem singularidade, não
unidade. Ele é único apenas na medida em que é singular e esta
singularidade, que lhe é própria, o faz ser conceito apenas no que
concerne sua aplicação particular, na sua relação com um problema. Mas
onde fica então a Verdade? “O conceito tem sempre a verdade que lhe
advém em função da sua criação”. Ou seja, o conceito não possui nem diz
verdades a não ser num sentido muito específico em que se pode falar em
verdade. Há alguma veracidade quando o conceito se relaciona com nossa
história e, sobretudo com nossos devires. Todo filosofo tem a árdua
tarefa de criar conceitos para problemas que mudam necessariamente.
É por isso que não se deve discutir filosofia, não há ganho nenhum.
Estudar a história da filosofia é, antes, mergulhar nos conceitos,
trazer suas pertinências à tona num novo contexto.
Se não discutimos filosofia, como medir a
grandeza de uma filosofia? Não é a precisão do conceito, uma espécie de
adequação do pensamento ao verdadeiro, que o faz ser grande, mas sua
pertinência, seu interesse. É pela natureza dos acontecimentos aos quais um conceito nos convoca que medimos seu interesse, sua grandeza.
Destacar sempre um acontecimento das coisas e dos seres é a tarefa da filosofia quando cria conceitos, entidades. Erigir o novo evento das coisas e dos seres, dar-lhes sempre um novo acontecimento: o espaço, o tempo, a matéria, o pensamento, o possível como acontecimentos…” p.42
O acontecimento é como o sorriso sem gato de Lewis Carrol em Alice, é aquilo que há de novo na repetição, no evento. O conceito é a constelação de um acontecimento por vir,
é o que permite conhecer o novo se fazendo. Essa dinâmica do conceito
exige por sua vez um horizonte de eventos, um solo múltiplo, um plano de imanência. A filosofia é ao mesmo tempo criação de conceitos e instauração de plano.
Aqui nos deparamos com a multiplicidade
irredutível à qual o pensamento se depara quando se estende sobre o
caos. O caos é precisamente isso: um perpétuo movimento de determinações
se fazendo e se desfazendo. O pensamento pede só um pouco de ordem para
suportar o caos. “Arte, ciência e filosofia querem que rasguemos o
firmamento e mergulhemos no caos, só o venceremos a este preço”. Como o
filósofo enfrenta o caos? Traçando um plano.
O plano de imanência é como um corte do
caos e age como um crivo. O caos caotiza, diz Deleuze. Isto significa
que ele desfaz no infinito toda a consistência. Se coloca então o
desafio supremo da filosofia: “dar consistência sem nada perder do infinito”.
O plano de imanência é o olhar do filósofo dirigido para um horizonte
aberto. No topo de uma montanha, ele observa atento o plano instaurado,
criando conceitos para traçar ordenadas intensivas, para inscrever a
velocidade infinita do múltiplo na singularidade finita do conceito. O
plano faz um apelo à criação de conceitos, ele é o solo deserto dos
acontecimentos, ele precisa dos conceitos para adquirir consistência,
para que suas questões e seus problemas sejam habitados.
A transcendência é o risco derradeiro da
filosofia. Há religião, e não filosofia, cada vez que se decide
construir um Império celeste no plano, permitindo que o pensamento opere
por figuras, que nada mais fazem do que projetar sombras por sobre o
solo. “A parte da imanência, ou a parte do fogo, é por ela que se
reconhece o filósofo”. Vem daí a admiração a Espinosa, nas palavras de
Deleuze: “o príncipe dos filósofos”, “o tornar-se filósofo infinito”.
Cada plano não pretende ser o único. Ao
assumir o caos que recorta, ao assumir que é um pequeno pedaço do quadro
infinito, ele se revela imanente. Assim, temos a escolha entre a
transcendência e o caos: refugiar-se no conforto da verticalidade
imperativa da universalidade ou assumir o risco caótico da singularidade
permeada pela multiplicidade. O gesto supremo da filosofia está
exatamente no encontro entre a singularidade do conceito e a
multiplicidade do plano de imanência, que se esforça sempre por mostrar o
não pensando, isto é, o alcance de seus territórios.
Criar um conceito é construir uma região no plano, juntar uma região às precedentes, explorar uma nova região, preencher a falta. O conceito é um composto, um consolidado de linhas, de curvas”
Os conceitos não se criam sozinhos, eles dependem do filósofo para vir ao mundo, mas este não os cria senão com alguma ajuda. Todo filósofo fala na terceira pessoa e, quando escreve, “faz com que algum outro fale”. É sempre um personagem conceitual
que percorre o plano. É um Zaratustra, como nômade no deserto; é um
Sócrates, como vagante na ágora; é o Proletário, como portador da
revolução, é um Esquizofrênico, como andarilho do ser; é a Razão, como
adequadação ou inadequação, mas é sempre outro, que não o filósofo. Inventar personagens representa a insistência do filosófo em recusar a identidade em favor da alteridade.
O personificação do pensamento em um
outro, este devir conceitual do sujeito, não se faz senão com muita
hesitação. O filósofo acompanha de longe seu personagem percorrer o
plano até encontrar uma terra fértil: o temor acompanha a decisão de
tentar territorializá-la: “os personagens conceituas têm este papel,
manifestar os territórios, desterritorializações e reterritorializações
absolutas do pensamento” (p.84). Aproximar-se de um território, enxergar
os movimentos infinitos que o percorrem, a relação de forças que ali se
encontram, perceber os acontecimentos do pensamento sobre o plano e ali
assentar um conceito, tão móvel e dinâmico quanto as condições de sua
criação.
Não há conquista, há ocupação. O conceito toma de assalto um território e o povoa de questões e, dessa forma, ele conhece.
Conhece o quê? Ora, a si mesmo. Não há o que conhecer senão a sua
própria relação singular com o problema, com o acontecimento, com o
território. O conhecimento em filosofia não passa disso, estabelecer
relações de vizinhança, continguidade, antagonia entre conceitos num
determinado horizonte de questões, num plano de imanência.
Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está fazendo – o novo, o notável, o interessante, que substituem a aparência de verdade e que são mais exigentes que ela. [...] A história não é experimentação, ela é somente o conjunto das condições quase negativas que tornam possível a experimentação de algo que escapa à história. Sem história, a experimentação permaneceria indeterminada, incondicionada, mas a experimentação não é histórica, ela é filosófica” p.133
Uma inversão permanece necessária à
filosofia de nosso tempo: trocar a história pela geografia, a genealogia
pela geologia, pensar uma geofilosofia. Enquanto pesquisadores, é
preciso que deixemos o tempo histórico de lado em nome de um tempo
estratigráfico, que se volte aos estratos, aos vários planos de
imanência instaurados uns sobre os outros: se os conceitos promovem
variações nos planos, precisamos nos ater ao relevo da filosofia.
Perceber que o devir não é história e que o movimento, a mobilidade é
própria ao conceito e nos impede de alcançar paradigmas, referentes tais
quais a Razão Comunicativa ou os Imperativos Categóricos. Arrancar a
filosofia de um culto das origens em favor de um meio, aí está
uma receita para tornar o filósofo um criador. Traçar um plano de
imanência, inventar personagens insistentes e criar conceitos
consistentes é, por fim, filosofar.
Fonte: A Razão Inadequada
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