PICICA:“A crise consiste precisamente no
fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse
interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem” Antonio Gramsci
A crise do antagonismo bloqueado
Por Silvio Pedrosa, no baderna.cc—
“A crise consiste precisamente no
fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse
interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”
Antonio Gramsci
I. A onda conservadora como reação pemedebista.
O resultado das eleições parlamentares
que se descortinou na noite do domingo, dia 6 de outubro, caiu como uma
bomba entre as esquerdas brasileiras – e talvez se possa dizer que ela é
mesmo o resultado de diversas outras bombas jogadas sobre nossas
cabeças ao longo dos últimos meses. Após a abertura das urnas ficou
claro o refluxo conservador (chamado ‘onda conservadora’ em alguns
diagnósticos) que emergia como resultado, implicando não apenas a
ressureição do candidato preferencial do núcleo duro da direita
brasileira, Aécio Neves (PSDB), mas ainda um congresso nitidamente
refratário às demandas populares, com bancadas de orientações
conservadoras em ascensão, a elevação do número de milionários (que
dificilmente podem ser divisados como representantes da maioria do povo
brasileiro) e o declínio de bancadas associadas aos trabalhadores, como a
sindical, para ficarmos com alguns exemplos.
As ‘análises’ pela esquerda foram
rápidas (e quando isso acontece é prudente se perguntar se não se trata
antes de mistificações pré-produzidas) em encontrar a raiz de todo o
mal: as ‘jornadas de junho’, as manifestações multitudinárias que
sacudiram o país em 2013, haviam aberto a ‘jarra de pandora’ e liberado
todos os males do mundo. Mesmo analistas da esquerda de movimento, como
Guilherme Boulos, coordenador do MTST, não tiveram qualquer dúvida em
associar o crescimento da direita e do conservadorismo às manifestações.
É possível (e, creio mesmo, necessário),
entretanto, ler o fenômeno que foram as revoltas de junho de 2013 de
uma perspectiva muito mais ampla e, sobretudo, cuidadosa. Pois, em
primeiro lugar, ‘junho’ foram muitos e apenas um perspectivismo
calibrado pelas diversas “tonalidades particulares” da “iluminação
geral” desencadeada pelo evento pode evitar certas armadilhas
proporcionadas pelas leituras que codificam junho sob o signo da
catástrofe fascista.
‘A direita estava nas ruas em junho!’,
nos admoestam alguns. Sim, é preciso concordar que, com variações
regionais, a direita saiu às ruas em junho, mas o alerta sempre soa
menos como um pedido de atenção diante do desafio do que o toque de um
alarme, tal como o vivemos na era da vigilância e do controle, a chamada
para que retornemos para nossas casas até tudo se normalize (junho como
atentado terrorista). E isso, simplesmente, pois a direita está (e
estará) sempre nas ruas quando se trata de disputar as
mobilizações sociais, de protagonizar os momentos de luta aberta (foi
assim em 1848, 1871, 1917, 1964…). A direita quer nos derrotar, por
certo, mas esta constatação deve servir apenas para uma outra, que é o
fato de que estamos lutando (e incomodando).
Nesse sentido, e com as ressalvas já feitas, junho de 2013 foi também (e originalmente) uma explosão contra
o conservadorismo. Contra a operação ideológica de reduzir as
manifestações a uma espécie de marco zero de um processo de ascensão da
direita brasileira (e que se oporia a algo como uma ‘idade de ouro’
quando a direita estava na defensiva) é preciso ser rigoroso e
demonstrar que se trata de uma falsificação. O que, aliás, não é
difícil, pois a reconstrução dos acontecimentos políticos dos últimos
anos é inequívoca em demonstrar os prelúdios de junho – como o levante
anti-Feliciano em 2013 ou manifestações contra as comemorações do golpe
de 1964, por exemplo – como mobilizações essencialmente democráticas.
Antes das ruas, a direita já ocupava o governo de centro-esquerda do
Partido dos Trabalhadores. Antes das ruas, a direita já ocupava o estado
(de onde nunca saiu).
Por outro lado, em junho também sopraram ventos que iluminam a nova composição do trabalho metropolitano1,
fruto das inovações democráticas agenciadas pelos governos Lula e das
transformações do capitalismo global, a passagem de uma fase de
subsunção formal, quando o trabalho era explorado através de mediações
que demarcavam limites entre capital e vida, para a atualidade da
subsunção real, quando o capital investe toda a vida, as subjetividades,
tornando a metrópole o próprio “chão de fábrica” pós-moderno. E, nesse
sentido, não foi tão surpreendente ver que as mobilizações que se
seguiram vieram, justamente, de diversos movimentos grevistas (como a
greve dos trabalhadores da educação municipal e estadual, dos garis no
Rio de Janeiro, dos rodoviários em diversas cidades do país, bem como a
greve dos metroviários em São Paulo) e tiveram um forte caráter
autonomista, ora tensionando a relação entre as bases e as cúpulas
dirigentes, ora subvertendo completamente a estrutura corporativa do
sindicalismo brasileiro, com greves contra as próprias cúpulas.
Para encontrar, então, respostas para a
ascensão conservadora evidente nos resultados eleitorais do primeiro
turno de 2014, é preciso procurar em outros lugares e noutros processos.
A aposta interpretativa que faço aqui é muito simples: outubro de 2014
não foi uma implicação de junho de 2013. Pelo contrário, foi justamente o
resultado de uma reação (movida a uma violência policial inaudita
contra manifestações políticas – principalmente levando-se em
consideração que a repressão não se dirigiu ao seu lócus normalizado e
potencializado de expressão: as favelas e periferias onde o biopoder
escravocrata e assassino faz a gestão da pobreza – desde a ditadura
militar e a uma operação midiática de enquadramento negativo dos eventos
sem precedentes) muito bem-sucedida àqueles acontecimentos. Pois, se
uma das melhores – se não a melhor – avaliações de junho de 2013 é
aquela (do cientista político Marcos Nobre) que ressalta seu caráter
antipemedebista, implicando aqueles eventos, portanto, na crise global
da representação política, talvez seja preciso que nos perguntemos se a
reação não foi conduzida no sentido de justamente garantir aquilo que
Slavoj Zizek chama de “excesso constitutivo da representação”, ou seja,
ao invés de perguntarmos “que classe o estado representa” seria preciso
lembrar que o estado representa também a si mesmo2 e sua capacidade de continuar gerindo a ordem social.
II. O PT, os movimentos e o antagonismo bloqueado da sociedade brasileira.
É nesse ponto que a pergunta sobre o
papel do Partido dos Trabalhadores em todos os acontecimentos que vimos
abordando deve ser feita, sobretudo, diante das mobilizações que, no
segundo turno, levaram a candidata Dilma Rousseff a uma vitória que já
parecia lhe escapar e que foi conquistada por uma margem mínima
histórica. Após junho de 2013 e seus desdobramentos não estava dado que
setores consideráveis das esquerdas e, principalmente, dos movimentos
sociais pudessem se mobilizar pela candidatura petista e, entretanto, no
último momento, diante da ameaça de vitória completa da direita com a
eleição de Aécio Neves, esquerdas e movimentos se levantaram, se não em
apoio a Dilma e ao PT, pelo menos em veto a Aécio Neves e o PSDB.
Diante desse cenário é preciso que nos
perguntemos: por que as mobilizações em torno da candidatura Dilma
Rousseff no segundo turno aconteceram, uma vez que seu mandato pouco ou
nada foi capaz de produzir em termos de agenciamentos com as lutas dos
muitos, quando não operou como coordenação (através do ministério da
justiça) das repressões deflagradas pelas secretarias de segurança
pública de estados como Rio de Janeiro e São Paulo?
Sem descartar ou sequer perder de vista
que os apoios e mobilizações vieram quando a operação governista
conseguiu restaurar uma polarização que parecia perdida diante da
possibilidade de Marina Silva (candidata pelo PSB na esteira da morte de
Eduardo Campos, muito menos suscetível às mobilizações catastrofistas)
ser a adversária no segundo turno presidencial – sobretudo por que tal
operação nos parece fundamental para o entendimento da situação -, é
preciso que haja um esforço para entender como, para além do marketing
eleitoral e da figura absolutamente mafiosa e oligárquica de Aécio
Neves, pôde haver uma considerável mobilização de energia política e
militante em torno de Dilma e sua candidatura.
E é nesse ponto que os caminhos, efetivamente, se cruzam, pois junho de 2013 nos parece ter assinalado uma profunda crise das esquerdas brasileiras (e entendendo-se o tempo de crise
– tal como Gramsci – como “o interregno” no qual “o velho está morrendo
e o novo não pode nascer”) e da sua capacidade de estar à altura dos
antagonismos verificados na sociedade brasileira, seja por sua
impotência (casos dos pequenos partidos de esquerda e dos movimentos
sociais autônomos ainda em formação) ou pela posição ocupada (caso do
Partido dos Trabalhadores). No segundo caso, aquele que nos interessa
aqui, nos parece que as mobilizações eleitorais recentes demonstram essa
mesma crise, situação na qual esquerdas e movimentos reconheceram que o
antagonismo aberto por junho de 2013 (a multidão contra o pemedebismo, enquanto figura do conservadorismo sócio-institucional brasileiro3)
se encontra bloqueado pela mesma estrutura amortecedora, que para o bem
e para o mal é a posição ocupada pelo PT enquanto cabeça do governo
federal. Diante da possibilidade de restauração total do poder das
elites, depositou-se, mais uma vez, no PT a esperança (quase desesperada
diante dos acontecimentos eleitorais) de que ele possa funcionar ainda
como amortecimento capaz de impedir que a ofensiva pemedebista arrase
por completo o campo das esquerdas e dos movimentos.
A situação é de impasse. Assim, enquanto o velho
(e como velho entendo o protagonismo das experiências institucionais
resultantes do processo de redemocratização) não morre e o novo
(as organizações que os ventos de junho exigem das gerações atuais das
esquerdas) não pode nascer, as diversas forças sociais que se opõem em
antagonismo veem-se mutuamente bloqueadas, o que chamarei aqui de crise do antagonismo bloqueado.
Enquanto partido de (certa) ordem (uma ordem materialmente mais fecunda
às mobilizações sociais por mais direitos e democracia), o PT se coloca
como garante de um pacto de normalização política que só pode ser a sua
própria ruína enquanto instituição transformadora. Os próximos quatro
anos serão de lutas intensas e o fiel da balança deve ser a capacidade
de imaginação política dos militantes das esquerdas e (concedendo-se
alguma credibilidade ao discurso de vitória de Dilma Rousseff que falou
em ‘grandes reformas’) a habilidade do governo petista em se abrir às
novas demandas, com o evidente esgotamento do lulismo enquanto modelo e
pacto social (apesar de ainda eleitoralmente sustentável do ponto de
vista da questão setentrional brasileira, a importância
relativa da hegemonia lulista/petista no norte e nordeste do Brasil)
como sinal de que uma próxima eleição deve ser a última deste ciclo
(caso não haja inflexões capazes de reorientar o quadro). Para tanto, o
PT terá de fazer um movimento que dificilmente parece exequível pelo
partido: terá que abrir-se diante da construção de alternativas
(movimentos e partidos ou até mesmo um partido-movimento) a si mesmo, as
únicas inovações capazes de talvez instaurar um novo equilíbrio de
forças que possa sustentar uma agenda de reformas da sociedade
brasileira mais acelerada e substancial. No caso (provável) de que não o
faça, caberá às forças dissidentes aproveitar o momento para consolidar
o bloqueio com a mão do escudo, enquanto produz e mobiliza novas armas
para enfrentá-lo com a mão da espada. 2016 está mais perto do que
parece.
Fonte: Universidade Nômade Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário