PICICA: "“Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Desviar o olhar: que seja minha única negação! Em suma, quero em algum momento por uma vez ser apenas aquele que diz-sim!”
Dos textos de Nietzsche, Assim falava Zaratustra é sem
dúvida o mais controvertido. O leitor sente-se de imediato atraído por
uma sucessão de parábolas que evidenciam o talento estilístico do autor;
deixa-se envolver numa teia de imagens oníricas que revelam episódios
de sua biografia; e acaba arrebatado por uma rede de discursos que põem a
nu seus experimentos filosóficos. Diversas são as leituras que o livro
suscita; de ordem variada os trabalhos a que ele se presta."
Nietzsche e a celebração da vida: A interpretação de Jörg Salaquarda – Scarlett Marton
Nietzsche e a celebração da vida: A interpretação de Jörg Salaquarda.
Scarlett Marton.*
Scarlett Marton.*
“Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Desviar o olhar: que seja minha única negação! Em suma, quero em algum momento por uma vez ser apenas aquele que diz-sim!”
Dos textos de Nietzsche, Assim falava Zaratustra é sem dúvida o mais controvertido. O leitor sente-se de imediato atraído por uma sucessão de parábolas que evidenciam o talento estilístico do autor; deixa-se envolver numa teia de imagens oníricas que revelam episódios de sua biografia; e acaba arrebatado por uma rede de discursos que põem a nu seus experimentos filosóficos. Diversas são as leituras que o livro suscita; de ordem variada os trabalhos a que ele se presta.
O estilo que Nietzsche então adota é duplamente específico; constitui uma exceção no contexto da escrita filosófica em geral e, outra, no conjunto de seus próprios escritos. No Nascimento da tragédia e na Genealogia da moral, ele opta pelo discurso contínuo; nas Considerações extemporâneas, escolhe o tom polêmico; no Ecce homo, assume a forma autobiográfica; nos Ditirambos de Dioniso, adota o recurso poético; em outros textos, apresenta máximas vigorosas e veementes; e na maior parte de sua obra talvez, privilegia o aforismo como modo de expressão.
À primeira vista, a nova linguagem que o filósofo inventa em Assim falava Zaratustra parece uma mistura de “verdade” e “poesia”. E assim teriam razão os que defendem a idéia de que ele não passa de literato ou poeta. Desta perspectiva, seria possível abordar o livro como um “romance de aventuras”, uma vez que conta as peripécias de uma personagem central, ou como um “romance psicológico”, já que enfatiza a sua vida interior, ou até mesmo, a exemplo do Werther de Goethe e da Educação sentimental de Flaubert, como um “romance de formação”. Mas, nele, Nietzsche agencia um conteúdo filosófico e uma forma literária, que se mostram indissociáveis. Recusando-se a opor forma e conteúdo, tenta recuperar a unidade original do conceito e da imagem. Contudo, em sua correspondência é de forma ambivalente que se refere à obra.
É dessas ambivalências que parte Salaquarda em seu artigo “A concepção básica de Zaratustra”. Começa por investigar as hesitações que o filósofo manifesta quanto à rubrica a que pertenceria Assim falava Zaratustra. E faz ver que o livro poderia ser uma “pregação moral”, uma “sinfonia”, uma “poesia”, um “escrito sagrado” – e, também, nada disso.
Por certo, Nietzsche recorre nessa obra a uma forma estilística, que apresenta múltiplas implicações. Salta aos olhos, desde logo, que ela é tributária do Novo Testamento e dos dramas musicais de Wagner. As parábolas da personagem central imitam os Evangelhos, mas não constituem apenas sua inversão num sentido paródico; elas anunciam uma nova anticristã. As situações que se desenrolam no texto aludem a momentos das óperas wagnerianas, mas não consistem simplesmente em sua negação; elas põem em cena um anti-herói.
Zaratustra fala em circunstâncias diversas e de diferentes maneiras. Discursa para o público reunido na praça, dirige-se aos discípulos e, por vezes, a apenas um em particular, dialoga com várias personagens que cruzam o seu caminho: o saltimbanco, o aleijado, o espírito de peso. Zaratustra fala, mas também canta; discursa e monologa; tem interlocutores e entretém-se com si mesmo; conversa com seus animais e troca segredos com a vida. E, na maior parte das vezes, o falar esconde mais que o calar; o silêncio revela mais que as palavras.
É assim que fala Zaratustra, “o sem-Deus”, “o porta-voz da vida, o porta- voz do sofrimento, o porta-voz do círculo”, “o mestre do eterno retorno”, “o que não em vão disse a si mesmo: ‘torna-te quem tu és'”. É Zaratustra, aquele que vem desvincular a metafísica e a moral, quem assim fala. Ao contrário do profeta báctrio, que teria introduzido no mundo os princípios de bem e mal, submetendo a cosmologia à moral, ele vem refazer a obra do Zoroastro histórico. Alter ego de Nietzsche, quer recuperar a inocência do vir-a-ser. Contudo, são ambivalentes as facetas que revela ao longo do livro.
É dessas ambivalências que trata Salaquarda no momento seguinte de seu texto. Passa então a examinar as oscilações que Nietzsche deixa entrever quanto à maneira de caracterizar sua personagem. E mostra que Zaratustra é moralista, poeta, profeta, fundador de religião, sedutor – e, mais uma vez, nada disso.
Na primeira página da obra, na seção inicial do prólogo, o filósofo retoma ipsis litteris o último aforismo da quarta parte da Gaia ciência (FW/GC § 342). Se nele já põe em cena Zaratustra, no penúltimo, intitulado “O mais pesado dos pesos” (FW/GC § 341), expressa pela primeira vez em seus escritos sua idéia do eterno retorno do mesmo. Publicados imediatamente antes da redação de Assim falava Zaratustra, os dois aforismos antecipam o que virá a constituir a personagem central e a concepção básica deste texto.
Aliás, é Nietzsche mesmo quem fornece ao leitor essa chave de leitura. Em sua autobiografia, ele faz questão de registrar que a Gaia ciência “contém mil indícios da proximidade de algo incomparável; afinal, ela mesma já dá o começo do Zaratustra e, no penúltimo trecho do quarto livro, dá a concepção básica do Zaratustra” (EH/EH, Zaratustra, § 1). Portanto, eterno retorno e Zaratustra constituem os elementos nucleares de seu livro mais controvertido.
Ora, a estratégia a que Salaquarda recorre é tal que ele analisa as hesitações de Nietzsche quanto à rubrica a que pertenceria Assim falava Zaratustra e suas oscilações quanto à maneira de caracterizar a sua personagem, para ressaltar, com maior vigor, a idéia de que a concepção básica da obra não se deixa apreender facilmente e ainda menos através de um único conceito. Procurando trabalhar com o mosaico que as indicações dadas pelo filósofo compõem, ele acaba por refazer a trama conceitual presente no livro. Com isso, lança nova luz sobre temas centrais da filosofia nietzschiana da maturidade: a idéia de auto-superação, a noção de além-do-homem, a exigência de tornar-se si-mesmo. E chega, assim, à concepção básica do livro: a “doutrina” do eterno retorno.
É bem verdade que existe estreita ligação entre os dois últimos aforismos da quarta parte da Gaia ciência. Mas também é fato que ambos se acham intimamente relacionados com o primeiro dessa mesma parte. Não é por acaso que Nietzsche começa por exprimir um voto: não quer mais ser iconoclasta e destruidor, não quer mais desmascarar e demolir; doravante, quer apenas afirmar. E termina por apresentar um pensamento e um protagonista. O pensamento de que tudo retorna sem cessar requer que abandonemos o além e nos voltemos para este mundo em que nos achamos; exige que entendamos que eterna é esta vida tal como a vivemos aqui e agora. O protagonista Zaratustra, saturado de sua própria sabedoria, tem de deixar a solidão de sua caverna no alto de sua montanha; é para presentear e partilhar que precisa ir ter com os homens.
À quarta parte da Gaia ciência o filósofo dá o nome de “Sanctus Januarius”, em homenagem ao ano de 1882 que se inicia(1). Tanto o primeiro aforismo quanto os dois últimos são sintomáticos da atitude que ele pretende abraçar. Se nestes introduz o eterno retorno e Zaratustra, naquele traz a idéia de amor fati. Tudo se passa como se quisesse desprender-se da crítica dos valores, desligar-se da vertente corrosiva de seu pensamento, numa palavra, libertar-se do não. Tudo se passa como se agora pudesse aceitar o sofrimento enquanto parte integrante da existência, afirmar tudo o que há de mais terrível e doloroso mas também de mais alegre e exuberante, numa palavra, construir sua filosofia positiva.
Ora, é justamente esse vínculo profundo entre o pensamento de que tudo retorna sem cessar, o protagonista Zaratustra e a idéia de amor fati que Salaquarda quer pôr em relevo em seu artigo. E nisto reside o caráter inovador de sua interpretação. Se ele se limitasse a apontar a ligação, estreita por certo, entre Zaratustra e eterno retorno nada teria acrescentado ao que Nietzsche mesmo já afirmara. Mas, perscrutando ao longo do livro os silêncios da personagem diante de seu pensamento abissal, dirige sua análise para o momento decisivo em que, por fim, ela o aceita enquanto a máxima afirmação da existência.
É por eleger este fio condutor que Salaquarda tem de considerar Assim falava Zaratustra um livro constituído tão-somente de suas três primeiras partes. “Ora”, diz ele, “Nietzsche poderia ter iniciado uma continuação ou uma nova obra-Zaratustra, em que o protagonista anunciasse de outro modo o seu pensamento do retorno tão dificilmente conquistado. Se assim considerou, não chegou a realizar”. E conclui: “Fez apenas uma espécie de sátira, em que representa a compaixão com os ‘homens superiores’ de seu tempo como uma ‘tentação de Zaratustra'” (Salaquarda 4, p. 33).
É fato que a relação que Nietzsche estabelece com seu texto mais controvertido se transforma à medida em que ele escreve e publica as diversas partes. Em janeiro de 1883, redige a primeira parte de Assim falava Zaratustra; em julho do mesmo ano, a segunda. Em janeiro de 1884, escreve a terceira; em janeiro do ano seguinte, a quarta. Ao todo, dois anos. Para publicar o livro, tem de enfrentar vários obstáculos. A primeira parte leva meses para aparecer. Schmeitzner, seu editor, dá prioridade à impressão de cânticos religiosos e brochuras anti-semitas; cumpre, sem pressa, o contrato com um autor mal- sucedido. Aceita ainda editar a segunda parte e a terceira, mas recusa, categórico, a quarta. Depois de tentativas humilhantes e estéreis, o filósofo custeia uma tiragem de quarenta exemplares; é mais do que suficiente: não chega a dez o número de pessoas a quem pensa enviá-los em caráter confidencial. Em 1886, E. W. Fritzsch, o editor de Wagner, negocia com Schmeitzner a compra dos exemplares de suas obras anteriores. Reedita, então, as três primeiras partes de Assim falava Zaratustra num único volume(2). A quarta, porém, é mantida em segredo até 1891, quando Peter Gast se dispõe a torná-la pública(3).
Contudo, vale notar que, em abril de 1883, quando faz aparecer a primeira, Nietzsche não inclui no título “Erster Theil“. Em abril de 1884, quando prepara com Peter Gast a edição da terceira, considera-a a última. Em abril do ano seguinte, quando traz a público a quarta, faz questão intitulá-la “Vierter und letzter Theil“. Algum tempo depois, porém, renega as três primeiras partes e pensa elaborar um novo Zaratustra a partir da quarta. Planeja, ainda, compor a quinta e sexta, mas não chega a fazê-lo. E até o outono de 1888 mantém a intenção de concluir o livro.
Em Assim falava Zaratustra, aqueles a quem a personagem central se opõe já aparecem nas primeiras linhas; o cristianismo e o platonismo serão seus principais adversários. Depois de abrasar a terra, o sol tem de pôr-se no horizonte; depois de saturar-se de sabedoria, Zaratustra tem de voltar ao convívio com os homens. Aos quarenta anos, ele tem de descer da montanha para o vale, dos cumes para as profundezas, do mundo para o submundo; por excesso, ele tem de declinar(4). À diferença dos Evangelhos(5), é aos quarenta e não aos trinta anos que começa seu ministério e, ao contrário da República(6), é na caverna e não fora dela que se faz sábio. O deslocamento espaço-temporal não é gratuito; indica distância e recuo em relação a referenciais milenares de nossa cultura. Não é por constatar a miséria do ser humano, querer resgatá-lo e salvá-lo que Zaratustra vai ter com os homens – mas por estar farto da própria sabedoria. Não é por perfazer a ascese dialética, abandonando a diversidade sensível e contemplando a verdade inteligível que ele desce da montanha para o vale – mas por compreender que não existe tal dicotomia. O que o move não é a penúria alheia mas a própria abundância; o que o impulsiona não são as carências do homem mas o transbordamento do mundo. Presente já na primeira página, ainda que de forma alusiva, a crítica ao dualismo metafísico e à religião cristã, aliada aos ataques à moral do ressentimento que deles decorre, será uma constante no livro.
Para Salaquarda, mais importante, porém, que apontar o tom crítico da obra é ressaltar a intenção de Nietzsche em abraçar o amor fati. E sua estratégia se torna cada vez mais instigante. Ao exame do desenvolvimento conceitual presente em diversas passagens de Assim falava Zaratustra, ele junta a análise do desenrolar dramático das cenas que se sucedem. Com especial atenção, focaliza dois discursos da terceira parte, “Da visão e enigma” e “O convalescente”, os únicos em que a idéia de eterno retorno aparece de forma expressa no livro. Lançando um contra o outro, de forma a iluminarem- se reciprocamente, faz ver que o adversário decisivo de Zaratustra é um inimigo interior.
Aceitar que tudo retorna sem cessar implica aceitar que o pequeno, o miúdo, o mesquinho também retorna. E, como o pulgão, este está em toda parte; assume as mais diversas máscaras, encarna os tipos mais variados. Encontra-se – diríamos – na figura do erudito que não quer sujar as mãos, do burocrata que arrota seu pequeno poder. Encontra-se na figura daqueles com quem Nietzsche tem de conviver em sua época; com quem ainda hoje temos de conviver na nossa. Diante de tal espetáculo, só resta o nojo.
Não! É preciso dar mais um passo, dar o passo decisivo. Para aceitar plenamente o eterno retorno do mesmo, Zaratustra tem de vencer “o grande fastio pelo homem”. Tem de “não querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo – todo idealismo é mendacidade diante do necessário –, mas amá-lo…” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 10) Nem conformismo, nem resignação, nem submissão passiva: amor; nem lei, nem causa, nem fim: fatum. Assentir sem restrições a todo acontecer, admitir sem reservas tudo o que ocorre, anuir a cada instante tal como ele é, é aceitar amorosamente o que advém; é afirmar, com alegria, o acaso e a necessidade ao mesmo tempo; é dizer-sim à vida. Converter o impedimento em meio, o obstáculo em estímulo, a adversidade em bênção, eis a “fórmula da grandeza no homem”.
Com “A concepção básica de Zaratustra”, o primeiro texto de Salaquarda que temos o privilégio de publicar no Brasil, é a face positiva da filosofia nietzschiana que vem à luz. Com Nietzsche, podemos enfim celebrar a vida.
Notas
1. E inclui esta epígrafe: “Tu que com a lança de tuas flamas Partes o gelo de minha alma, Que ferve agora e corre ao mar De sua esperança mais alta: Sempre mais clara e mais sadia, Livre em sua lei mais amorosa: – Assim louva ela teus milagres, Ó tu, mais belo dos janeiros!” (Gênova, janeiro de 1882).
2. Trata-se de Nietzsche
3. O editor Naumann encarrega-se desta reedição e, em 1893, publica, pela primeira vez, as quatro partes de Zaratustra num único volume.
4. Aplicado ao sol e também a Zaratustra, o termo untergehen inscreve-se em diferentes registros: alude ao ocaso do astro e à descida da personagem ao vale; comporta ainda a idéia de declinar, ir abaixo, sucumbir.
5. Cf. Lucas, 3, 23.
6. Cf. República, livro VII.
Referências Bibliográficas
1. NIETZSCHE. Werke. Kritische Gesamtausgabe. Edição de Colli e Mon- tinari. Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1967-78.
2. _______. Obras incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo, Abril Cultural, 1978, 2a edição.
3. _______. Also sprach Zarathustra. Ein Buch für Alle und Keinen. In: drei Theilen. Leipzig o. J., Verlag von E. W. Fritzsch.
4. SALAQUARDA, J. “A concepção básica de Zaratustra”. In: Cadernos Nietzsche, 2, 1997. São Paulo, Departamento de Filosofia/USP, p. 17-39.
*Originalmente publicado no território Grupo de Estudos Nietzsche – GEN: http://gen.fflch.usp.br/
Fonte: Territórios de Filosofia
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