outubro 17, 2014

"Foucault – o que é Filosofia?", by Rafael Lauro

PICICA: "Eis uma preocupação propriamente foucaultiana: saber ao certo se os questionamentos arrancam os sujeitos de si mesmos, se eles funcionam como uma empresa de dessubjetivação."

Foucault – o que é Filosofia?

 
A filosofia de Michel Foucault movimentou algumas das ideias mais originais do século XX: sua matéria-prima sempre foi a surpresa. Antes de tudo, é preciso surpreender-se com as próprias ideias, aí está um critério fundamental. Ir além dos limites, uma necessidade; Correr riscos, uma condição. Quando um entrevistador* o pergunta se ainda temos necessidade “das questões sem resposta e dos silêncios” da filosofia, Foucault responde:
“O que é a filosofia senão uma maneira de refletir, não exatamente sobre o verdadeiro e sobre o falso, mas sobre nossa relação com a verdade?”
Não à toa, esta entrevista foi realizada sob a condição de que fosse publicada sem assinatura, isto é, anonimamente. Ele queria ver ainda o alcance de suas provocações para além do burburinho que, nos anos 80, o nome Foucault causava por si só. Eis uma preocupação propriamente foucaultiana: saber ao certo se os questionamentos arrancam os sujeitos de si mesmos, se eles funcionam como uma empresa de dessubjetivação.

Foucault

Em outra ocasião** posterior, Foucault repete: “meu problema nunca deixou de ser a verdade“. Assim como no prefácio ao segundo volume da História da Sexualidade, ele expressa a intenção sempre presente em sua obra de realizar uma História da verdade. Essas afirmações, tomadas assim à primeira vista, são bastante impressionantes e, para dizer o mínimo, desconfortantes. Como assim? Foucault estava preocupado com a verdade? Ele ainda creditava à filosofia a capacidade de descobrir  tais quimeras, desvendar tais mistérios? Antes de tudo, é preciso entender o que é a verdade para ele:
“A verdade, espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutada, sem dúvida porque a longa cocção da história a tornou inalterável” Foucault em Nietzsche, a Genealogia, a História, 1971
Para bem entender o projeto de Foucault para sua filosofia e, em seguida, esboçarmos alguma ideia do que é a filosofia para ele, precisamos enxergar em Nietzsche a raiz de uma questão: precisamente, o projeto genealógico como a história de um erro com nome de verdade. O filósofo olha para a história não em busca de origens e essências, mas à procura das condições de criação daquilo que se toma como verdade. Segundo Foucault, sua pesquisa se dá sobre o dizer verdadeiro e as formas de reflexibilidade.
O corpo é a superfície de inscrição dos acontecimentos. Sobre ele, pulverizam-se as verdades perpetuamente. O que está em jogo não são as verdades enquanto essências, mas a atuação delas enquanto discursos sobre os corpos, suas ações enquanto dissolução do Uno em seres chamados homens e práticas de vida. É neste sentido que Foucault fala em realizar uma história da verdade. Ele quer entrar por dentro dos jogos entre verdadeiro e falso na história, a fim de dizer o que é a atualidade. Olhar para as disputas do passado, sublevar as relações de força, fazer ouvir as vozes silenciadas, para então voltar-se mais vivo e ativo para o atual.
Entramos então na questão central. Filosofar é trabalhar criticamente com o pensamento sobre o pensamento. Para quê? Para descobrir até onde é possível pensar diferentemente! Modificar o horizonte daquilo que se conhece em vez de legitimar aquilo que já se sabe, eis o objetivo.
“Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar e a refletir” Foucault em História da Sexualidade II
A obra-prima do filósofo é a constatação de sua própria surpresa, não apenas enquanto ignorante, mas fundamentalmente enquanto ser dotado de pensar diferentemente. Essa potência de se diferenciar é o maior investimento do filósofo, que realiza uma hermenêutica de si, exercita-se em pensamento buscando sempre separar-se de si mesmo. E que tarefa está reservada à filosofia? Realizar uma história do pensamento, definir as condições nas quais o ser humano ‘problematiza’ o que ele é, e o mundo no qual ele vive.

Durante toda a sua vida, Foucault operou com um conceito de razão múltipla. A racionalidade é um campo complexo de linhas de pensamento irredutíveis. De nada servem as estruturações da Razão instituída enquanto tal, outras formas de racionalidade se criam sem cessar. Daí a necessidade de voltar-se para as ditas verdades, questioná-las, avaliar quais são seus interesses. A inserção daquilo que se assume como verdadeiro na história nos permite liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente e permitir-lhe pensar diferentemente. Uma pergunta se mostra essencial: “a que preço o sujeito pode dizer a verdade sobre si mesmo, a que preço o sujeito pode dizer a verdade sobre ele mesmo enquanto louco?”.

Em razão de uma relação de forças que não os privilegiavam e de mais um movimento no tabuleiro do jogo das verdades, o louco, o preso, o doente, o pervertido, o confesso, todos eles pagaram um preço teórico, econômico e, principalmente, institucional por terem suas vozes caladas e seus pensamentos silenciados. A filosofia é então uma ferramenta que nos permite enxergar em que medida nossa relação com a verdade encarcera, pune, vigia, coage, controla. E o filósofo? Segundo Foucault, é  apenas um tipo diferente de curioso, que tem no pensamento sua matéria de consumo corrente.

Zah_Foucault_aberto_c_FINAL

*Entrevista: O filósofo mascarado, C. Delacampagne, Le monde, 6 de abril de 1980

**Entrevista: Estruturalismo e Pós-estruturalismo, G. Raulet, Telos, 1983

"O sexto turno", por Mauro Iasi

PICICA: "Uma vez mais o jogo previsível encontra seu desfecho esperado. Circunscrita pelo poder econômico e midiático, as candidaturas da ordem se encontrarão, mais uma vez, em um segundo turno. Um dos elementos de garantia da ordem pode ser encontrado nos mecanismos de segurança que limita as alternativas e depois as apresenta como liberdade de escolha.

No campo político isso foi descrito por Gramsci como “americanismo” e se expressa classicamente na alternância entre um Partido Democrático e outro Republicano nos EUA, num jogo de imagens no qual nem um é democrático, nem o outro é de fato republicano. Ao sul do equador tal fenômeno pode ser visto historicamente na suposta alternância entre liberais e conservadores, na maldição já descrita na expressão “nada mais conservador que um liberal no poder”, ou na famosa ironia de que no ato de posse o programa conservador é transferido para o partido de oposição, que entrega o programa liberal para quem sai do governo.

Carlos Nelson Coutinho costuma chamar a versão brasileira desta “democracia” de americanalhamento. A expressão parece pertinente."

O sexto turno

14.10.15_Mauro Iasi_O sexto turno 

Por Mauro Iasi. 
“Os presidentes são eleitos pela televisão, como sabonetes, e os poetas cumprem função decorativa. Não há maior magia que a magia do mercado, nem heróis maiores que os banqueiros. A democracia é um luxo do Norte. Ao Sul é permitido o espetáculo”.
Eduardo Galeano, O livro dos abraços

Uma vez mais o jogo previsível encontra seu desfecho esperado. Circunscrita pelo poder econômico e midiático, as candidaturas da ordem se encontrarão, mais uma vez, em um segundo turno. Um dos elementos de garantia da ordem pode ser encontrado nos mecanismos de segurança que limita as alternativas e depois as apresenta como liberdade de escolha.

No campo político isso foi descrito por Gramsci como “americanismo” e se expressa classicamente na alternância entre um Partido Democrático e outro Republicano nos EUA, num jogo de imagens no qual nem um é democrático, nem o outro é de fato republicano. Ao sul do equador tal fenômeno pode ser visto historicamente na suposta alternância entre liberais e conservadores, na maldição já descrita na expressão “nada mais conservador que um liberal no poder”, ou na famosa ironia de que no ato de posse o programa conservador é transferido para o partido de oposição, que entrega o programa liberal para quem sai do governo.

Carlos Nelson Coutinho costuma chamar a versão brasileira desta “democracia” de americanalhamento. A expressão parece pertinente.

A instituição do segundo turno no Brasil tem servido a este propósito. No sistema norte americano todo mundo pode ser candidato, mas os filtros vão se dando nas eleições dos convencionais (que de fato elegem o presidente numa eleição indireta e absurdamente antidemocrática), até que só chegam à disputa de fato os dois partidos oficiais citados. No Brasil não é necessário tal engenharia política. Os filtros de segurança começam pelas clausulas de barreira que impedem a organização partidária, depois a legislação eleitoral absolutamente desigual e inconstitucional (mas isso nunca foi problema em nosso país segundo o TSE), passa pelo financiamento privado de campanha e chega na cobertura desigual da imprensa monopólica.

Não podemos esquecer o mecanismo que decide o voto antes da eleição pelo controle dos cofres públicos, dos governos estaduais, prefeituras e cabos eleitorais numa verdadeira chantagem de verbas, financiamentos e facilidades que controlam regiões inteiras sem a necessidade de uma único debate de programas ou ideias.

Como diz Galeano no texto que nos serve de epígrafe, a democracia é um luxo reservado ao Norte, ao Sul cabe o espetáculo que não é negado a ninguém, afinal, diz o autor uruguaio, “ninguém se incomoda muito, que a política seja democrática, desde que a economia não o seja”. Quando as urnas se fecham, prevalece a lei do mais forte, a lei do dinheiro.

Mas, é essencial ao espetáculo que você sinta a sensação de estar decidindo. É neste campo que se inscreve o chamado voto útil.

A máquina eleitoral burguesa não pode impedir movimentos de opinião, que se expressam no primeiro turno e, mesmo, no segundo. É perfeitamente compreensível que muitas pessoas pensem na lógica do mal menor, numa análise comparativa entre as alternativas que restaram. Como sempre há diferenças entre elas, convencionou-se que a esquerda deve votar no mais progressista e evitar o risco da direita.

Analisemos mais detidamente as alternativas que o poder econômico, a legislação restritiva e os meios de comunicação monopolizados selecionaram.

De um lado Aécio Neves do PSDB, legenda conhecida pelos mandatos de FHC e do próprio político mineiro em seu estado, assim como a longa dinastia paulista. Neste caso não há dúvida sobre seu programa conservador, seu compromisso com o mercado e os grandes grupos monopolistas, sua lógica privatista e sua subserviência ao imperialismo. Trata-se de uma legenda que nada tem de social democrata e tornou-se o centro aglutinador da direita representada na aliança com o DEM, o PPS e outras que compuseram sua base de governabilidade quando no governo, como o sempre presente PMDB, PTB e outros.

De outro, o PT, partido que tem sua origem nos movimentos sociais e sindicais dos anos 1970 e 1980, e que chegou à presidência em 2002 com a eleição de Lula para aderir ao pacto e ao presidencialismo de coalizão tornando-se o centro de um bloco do qual participam o PCdoB e o PSB, garantindo sua governabilidade com o PMDB, o PTB, PP, PSC, e outras siglas no mercado do fisiologismo político próprio do americanalhamento citado. Difere do PSDB na medida em que defende uma maior presença do Estado para garantir a economia de mercado, sustentando seu pacto de classes através de medidas de cooptação e apassivamento, tais como a garantia do nível de emprego e políticas sociais focalizadas e compensatórias de combate aos efeitos mais agudos da miséria absoluta.

A mera comparação justifica a tendência do voto em Dilma de grande parte dos que temem um governo do PSDB como expressão mais clara da política conservadora.

Coloquemos, entretanto, as coisas numa perspectiva histórica. Este não é um mero segundo turno, é o sexto turno. É a terceira vez que tal situação se apresenta. Nas duas primeiras, em 2006 e 2010, o PCB, por exemplo, indicou o voto crítico no candidato do PT, ou priorizou o combate à direita no momento eleitoral, ainda que sempre se mantendo na oposição. Não seria o caso agora?

Lembremos quais os discursos que acompanharam este processo. Quando da passagem para o segundo mandato do Lula o discurso é que o primeiro mandato havia sido para acertar a casa, mas agora viria uma guinada em favor das demandas populares, o governo Lula estaria em disputa. Quando da passagem para o mandato de Dilma o discurso é que, agora viria a guinada na forma de uma opção pelo mítico “neodesenvolvimentismo”.

No entanto, o que vimos nas duas oportunidades não foi uma reversão do rumo do pacto social e das medidas conservadoras, pelo contrário. O fato é que cada governo subsequente foi sendo mais à direita que o anterior. Os governos eleitos para “evitar a volta da direita”, a perda de direitos para os trabalhadores, o aprofundamento das privatizações, a criminalização dos movimentos sociais, o abandono da reforma agrária, acabaram por impor um crescimento das privatizações, uma precarização do trabalho, o ataque aos direitos dos trabalhadores (eufemisticamente chamado de “flexibilização”) e o aprofundamento da criminalização dos movimentos sociais. Reforma da previdência, privatização do campo de Libra, imposição da EBSERH, rendição do Plano Nacional de Educação à lógica dos empresários e do sistema S, prioridade para o agronegócio, a farra da Copa, as remoções, o aumento da violência urbana e a política genocida das polícias militares contra a população jovem, pobre e negra, a não demarcação das terras indígenas, as concessões ao fundamentalismo religioso que impede a legalização do aborto, a criminalização da homofobia…

Talvez a área mais emblemática seja a luta pela terra. Não apenas reduz-se a cada mandato o número de famílias assentadas, como cada vez mais assentamentos são abandonados à sua própria sorte, e os pequenos produtores considerados “economicamente irrelevantes” (nas palavras de um representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário em resposta às demandas do MPA). Ao mesmo tempo dirige-se toda a política agrária para a prioridade ao agronegócio, tornando aliado central na governabilidade e na direção da política econômica, como mostram os apoios, ainda no primeiro turno, de Kátia Abreu e Eraí Maggi (o rei da soja).

Algo estranho ocorre por aqui. Primeiro, trata-se de fazer reformas possíveis no lugar da revolução necessária. Para tanto, um pacto social que leva o governo, que deveria ser reformista de esquerda, para um perfil de centro-esquerda – ou nos termos de André Singer, de um reformismo de alta intensidade apoiado na classe trabalhadora para um reformismo de baixa intensidade apoiado nas camadas mais pobres. Em seguida trata-se de tomar medidas de um governo de centro-direita para enfrentar a crise do capital com massivas doses de apoio ao capital por parte do Estado para garantir a manutenção de um crescimento com emprego e geração de renda. E agora uma clara composição de direita apoiada nos grandes bancos, nos setores monopolistas, nas empreiteiras, no agronegócio, numa situação parlamentar ainda mais conservadora que empurrará qualquer governo eleito para posição ainda mais conservadoras para realizar os “ajustes necessários” para enfrentar a crise que já se apresenta no horizonte.

O que é forçoso constatar é que a política do acumulo de forças não acumulou forças. Pelo contrario, desarmou a classe trabalhadora e abriu espaço para o crescimento da direita. O que era uma estratégia para evitar a direita pode ter se tornado o caminho pelo qual pôde se garantir sua “volta”. De fato, ela nunca teve seus interesses ameaçados – porque nos referimos a interesses de classe e não das legendas políticas que representam seguimentos e facções das classes dominantes. A classe dominante apoia as duas alternativas, fato que fica evidente na distribuição dos financiamentos de campanha.

O tão falado crescimento da direita, ou a “onda conservadora”, não se dá por acidente, mas é o resultado previsível dos governos de pacto social e da profunda despolitização que resulta de doze anos de governos petistas. Como disse Ruy Braga em artigo recente, que a burguesia e a classe média sejam conservadoras é perfeitamente compreensível, mas o que precisa ser explicado é porque o conservadorismo tomou a consciência de setores da classe trabalhadora. A candidata do PT perdeu no ABC paulista, somando os votos de Aécio e Marina, perdeu em São Paulo, Rio, Minas e Rio Grande do Sul.

Parte da classe trabalhadora, equivocadamente, aposta em candidaturas conservadoras que são contra seus interesses de classe. Veja, ao invés de infantilmente culpar a esquerda, os governistas deviam se perguntar por que isso ocorreu. Parte da classe quer o fim do ciclo do PT e não há discurso da esquerda que possa convencer este segmento que o governo atual é que lhe representa, pelo simples fato que a sequência de medidas que descrevemos indicam claramente outra coisa.

O que está acontecendo é que os meios de apassivamento e cooptação são insuficientes para continuar mantendo o governo do PT com a aparência de esquerda enquanto opera uma política de direita. Mantêm-se o nível de emprego, mas os precariza, garante acesso ao crédito para manter o consumo, mas gera endividamento das famílias, garante acesso precário às universidades privadas ou através de uma expansão que não garante a permanência e a qualidade necessária no setor público, tira-se as pessoas da miséria absoluta para colocá-las na miséria.

A explosão do ano passado foi didaticamente um alerta, mas as forças políticas, governistas ou de oposição no campo da ordem, literalmente ignoraram as demandas que ali surgiram. Nenhuma demanda foi considerada, desde a questão do transporte urbano, os gastos do Estado priorizando as empreiteiras e bancos e não educação e saúde, a violência policial e os limites da democracia de representação. Silencio total.

A esquerda – aquela que resistiu a este caminho suicida, foi estigmatizada, atacada, criminalizada e excluída do centro do jogo político – no seu conjunto não chegou aos 2% dos votos, e mesmo o voto nulo e a abstenção ficaram nos níveis históricos das últimas eleições. Não pode, portanto ser culpabilizada por uma eventual derrota do PT. A insatisfação de 2013 se apresenta nas eleições como caldo de cultura da necessidade de uma mudança e é atraída pelo canto da sereia da direita que numa eventual vitória governará com a mesma base de sustentação do governo atual.

Alguns afirmam que o que há de diverso agora é que o PT terá que vencer o PSDB enfrentando-o pela esquerda. Não é o que parece, nem o que o cenário político anuncia com a composição do novo Congresso Nacional. Ao que parece, Dilma investe em se apresentar como ainda mais confiável ao grande capital e seus atuais aliados prioritários, ignorando solenemente as demandas populares para recompor seu governo à esquerda. Respondam rapidamente: quantas vezes, nos últimos debates, a presidente tocou no tema da Reforma Agrária?

Mais uma vez, compreendo e respeito aqueles que votarão em Dilma para evitar o governo do PSDB. Apenas preocupa-me que pouco se analisa do que consiste o conteúdo desta suposta alternativa. Talvez algumas perguntas, na linha da nota do PCB, ajudem na reflexão:
  1. O eventual segundo mandato de Dilma reverterá a prioridade do agronegócio e avançará na linha de uma reforma agrária popular tal como proposta pelo MST e uma política agrícola que considere os interesses dos pequenos camponeses como preconiza o documento do MPA?
  2. Romperá com a política de superávits primários, de responsabilidade fiscal e de reforma do Estado que tem imposto a prioridade ao pagamento da dívida que consome cerca de 42% do orçamento?
  3. Demarcará as terras indígenas se chocando com os interesses do agronegócio e dos madeireiros?
  4. Romperá com a dependência em relação à bancada evangélica avançando nas questões relativas ao aborto, ao combate à homofobia e a política retrograda de combate às drogas?
  5. Alterará o rumo da política de segurança fincada no tripé: endurecimento penal, repressão e encarceramento?
  6. Vai administrar a crise do capital revertendo a tendência à precarização das condições de trabalho e ataque aos direitos dos trabalhadores?
  7. Vai mudar a lógica de criminalização dos movimentos sociais na linha da Portaria Normativa do Ministério da Defesa que iguala manifestante a membro de quadrilha e traficante, ou estenderá o fundamento desta política de garantia da Lei e da Ordem na forma de uma Lei de Segurança Nacional que torna permanente a presença das Forças Armadas como instrumento de garantia da ordem?
  8. Vai alterar a linha geral do Plano Nacional de Educação que institucionaliza a transferência do recurso público para educação privada, se entrega à concepção empresarial de ONGs e outras instituições empresariais e adia por vinte anos a meta dos 10% para educação?
  9. Vai fazer uma reforma política nos termos indicados pelo plebiscito que reuniu 7 milhões de assinaturas, ou aplicará o acordo com o PMDB que produziu um texto conservador e ainda mais concentrador de poder nas atuais siglas do Congresso Nacional tornando mais eficiente o presidencialismo de coalizão?
Nós que podemos interferir pouco no resultado eleitoral só podemos alertar que quem votar em Dilma não estará apenas evitando a vitória de uma opção mais conservadora – objetivo louvável – mas, também, referendando os atos que vierem a ser aplicados. O próximo governo Dilma, se ganhar, não responderá positivamente, na perspectiva da classe trabalhadora, a nenhuma destas nove questões. Por isso o PCB não pode empenhar seu apoio, mais uma vez, nem que seja crítico, pois os governos petistas já responderam a estas questões com doze anos de governo.

E se perder? Neste cenário, que não depende de nós e nem pode ser atribuído à esquerda, que não é desejável, mas possível, o PT teria que voltar à oposição. Neste caso temos a dizer que aqui a situação está muito difícil. A criminalização se intensifica, a polícia militar e as UPPs matam pobre todo dia. O Estado Burguês se armou, graças aos últimos governos, de todo um arcabouço jurídico e repressivo para nos combater, os assentamentos da reforma agrária estão abandonados, os serviços públicos foram direta ou indiretamente precarizados através de parcerias públicos privadas, as Universidades estão sendo mercantilizadas e sucateadas, o governo prefere negociar com sindicatos domesticados do que com as organizações de classe, os meios de comunicação reinam incontestes e impõem um real que nos torna invisíveis, reina o preconceito, a violência, a homofobia e a transfobia, parte da classe trabalhadora vivencia uma inflexão conservadora na sua consciência de classe e ataca o marxismo e o pensamento de esquerda como seu inimigo, imperando a ofensiva irracional da pós-modernidade que se revela cada vez mais fascista nos levando para a barbárie.

Bom, mas isso vocês sabem, não é? Talvez só não saibam de onde veio este retrocesso. Bom, procurem nos seis turnos, naquilo que foi anunciado e no que foi posto em prática… é uma boa pista.

***


***

Eleições630p

Especial Eleições: Artigos, entrevistas, indicações de leitura e vídeos para aprofundar as questões levantadas em torno do debate eleitoral de 2014, no Blog da Boitempo. Colaborações de Slavoj Žižek, Mauro Iasi, Emir Sader, Carlos Eduardo Martins, Renato Janine Ribeiro, Edson Teles, Urariano Mota e Edson Teles, entre outros. Confira aqui.

***

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

Fonte: Blog da Boitempo

"Os cinco candidatos a serem derrotados nas eleições". Por Passa Palavra

PICICA: "Não é de se estranhar que precisamente no período eleitoral ocorra o maior esvaziamento da massa crítica à esquerda, com a consequente adesão a alarmismos e polarizações do campo político partidário"

Os cinco candidatos a serem derrotados nas eleições

16 de outubro de 2014  

Não é de se estranhar que precisamente no período eleitoral ocorra o maior esvaziamento da massa crítica à esquerda, com a consequente adesão a alarmismos e polarizações do campo político partidário. Por Passa Palavra

O grande problema para as lutas sociais durante os períodos eleitorais é, sem dúvida alguma, o seu esvaziamento. Nesses períodos, os movimentos sociais saem de cena e o espaço das disputas políticas é preenchido por outras organizações e interesses.

ali12 

Pode-se considerar cinco motivos principais para esse esvaziamento: 1) a necessidade dos militantes envolvidos em campanhas político-partidárias levarem adiante seus projetos de disputa/conquista do Estado, o que, diante da impossibilidade de estarem em todos os espaços ao mesmo tempo, leva-os a optar pelos espaços que consideram mais importantes naquele momento; 2) boa parte dos envolvidos nas lutas sociais se vê numa situação em que sua perspectiva fica secundarizada em função dos interesses envolvidos no pleito, ou então se vê numa situação onde corre o risco de ter sua luta instrumentalizada, à direita ou à esquerda, por partidos políticos; 3) o esvaziamento operado por aqueles que, por não concordarem com a existência do processo eleitoral, deixam os espaços dos movimentos sociais para organizar campanhas abstencionistas ou de voto nulo; 4) no período eleitoral, a burocracia governamental e os políticos ficam impedidos de negociarem com os movimentos sociais, seja por motivos legais, seja pela possibilidade de não se perpetuarem nos cargos, paralisando aqueles que têm por estratégia principal obter ganhos através do jogo institucional; e 5) o trabalho em campanhas eleitorais aparece como uma possibilidade de ganhos materiais imediatos para militantes de uma base social precarizada, mesmo para aqueles que não assumem compromissos ideológicos com os candidatos que os contratam.

Também seria possível considerar o esvaziamento do ponto de vista dos posicionamentos políticos em jogo. A adesão à lógica de um sistema político que anula a iniciativa direta dos movimentos em benefício de um corpo dirigente tem efeitos diretos sobre a moral e a consciência dos próprios movimentos sociais. Os movimentos tem por base uma negação prática do sistema representativo, pois atuam na organização e mobilização direta de determinados setores da sociedade em torno de pautas concretas e tangíveis. Mas essa é outra discussão, que extrapola o âmbito deste artigo. Vamos privilegiar, aqui, a discussão em torno das condições materiais de luta, deixando a análise da mediação entre a consciência dos lutadores e as posições ideológicas em jogo para outra ocasião.

I. A disputa ideológica dos militantes envolvidos em campanhas político-partidárias

Os mais lúcidos e bem intencionados enquadrados nesse ponto argumentam que o mais importante seria a disputa ideológica viabilizada pela disputa eleitoral. Ela possibilitaria que um maior número de pessoas tivesse contato com perspectivas mais à esquerda e refletisse sobre as desvantagens de viver numa organização social capitalista, algo estrategicamente interessante para a esquerda como um todo. No entanto, essa argumentação parece desconsiderar qualquer aporte materialista para a abordagem da questão.

Ao considerar o período eleitoral como o momento privilegiado para a prática da disputa ideológica em detrimento dos espaços em que se desenvolvem as lutas sociais, este grupo de militantes se esquece do domínio ideológico exercido pelas classes dominantes sobre os mais variados espaços sociais onde é gestada a opinião pública. Tais espaços são concebidos e oferecidos como forma de dar vazão a opiniões e posicionamentos políticos dissidentes. Mas são as classes dominantes quem têm os meios necessários para contratar contra-argumentadores e depois propagá-los o quanto for necessário para abafar as vozes dos opositores.

Se isso já não fosse grave o bastante, esses militantes creem implicitamente no princípio de que a disputa meramente ideológica seria capaz de mudar a opinião de um público mais amplo. Ora, deveria fazer parte do bê-a-bá de toda a militância de esquerda a noção de que as opiniões mudam apenas quando há meios sociais que permitam que opiniões divergentes se desenvolvam. Atualmente isso é viabilizado pelos movimentos que conseguem de alguma forma organizar as fissuras ideológicas que se verificam na consciência do público em geral, provocadas pelo descontentamento ou desilusão com determinados aspectos das condições de vida.

II. A pressão sobre os candidatos

ali02 

O segundo ponto é um problema grave, além de ocorrer recorrentemente. Ao pretender utilizar o momento eleitoral para fazer pressão sobre os futuros gestores da máquina estatal, o risco de ser associado a uma legenda ou de ser acusado de estar fazendo o jogo dos opositores de determinado candidato é enorme. No entanto, é inegável que esse é um momento em que a maioria dos políticos não deseja passar a imagem de intransigente com os dissidentes nem quer ser associado a burburinhos que fogem ao foco que pretende dar às suas campanhas. O período de disputa entre futuros gestores do Estado evidencia uma situação de fragilidade desses políticos. Como o movimento social pode sair desse impasse?

O mais adequado parece ser o caminho de não poupar nenhum dos candidatos das pressões, procurando evidenciar que sua preocupação é com a pauta do movimento e não com a disputa eleitoral. Evidentemente, alguns candidatos se sairão melhor do que outros, por conta de suas afinidades com esta ou aquela causa. Porém, esse é um problema que não deveria dizer respeito ao movimento. Se, por fim, a vitória seja de um candidato mais permeável às pressões do movimento, ótimo, mais conveniente. Caso contrário, o importante é não perder de vista o fato de que é na mobilização do seu corpo social que reside a força reivindicativa dos movimentos, chave de mudanças sociais. Os movimentos são, em sua estrutura, parte das forças produtivas da sociedade que em determinado momento resolve lutar ativamente pela mudança da situação social em que estão inseridos, deixando de ser simples peça útil na lógica de exploração.

Por outro lado, o período de eleições faz crescer — e com toda razão! — a desconfiança geral da população em relação a qualquer atividade política. Porém, mesmo os movimentos sociais autônomos encontram aí um entrave para desenvolver suas ações. Qualquer protesto que se faz nessa época, por exemplo, é logo tachado de ter “pretexto eleitoral”. As iniciativas de organização de luta nas periferias são desacreditadas, e se acredita que os movimentos tem ligação com candidatos. Propostas de mobilização são confundidas, assim, com promessas eleitorais.

III. O esvaziamento dos espaços dos movimentos sociais

O terceiro aspecto diz respeito a algumas modalidades de campanha pelo voto nulo que vêm ganhando relativo espaço na militância de extrema-esquerda nos últimos tempos. Parte desses grupos entende que o momento eleitoral é de fragilidade dos gestores e aspirantes a gestores do Estado e passa à ofensiva contra o próprio sistema eleitoral, denunciando-o como farsa. Farsa porque mesmo os partidos políticos de esquerda estariam alinhados àqueles que pretendem gerir a máquina estatal, que, por definição, organiza as relações capitalistas de produção, seja viabilizando a exploração, seja contendo os excessos autodestrutivos da dinâmica da mais-valia.

No entanto, alguns desses grupos acabam por aderir à própria lógica que criticam e, ao invés de aproveitarem o momento para o avanço das pautas concretas que fortalecem o corpo social dos movimentos sociais, acabam por esvaziar os espaços de luta, em prol da disputa ideológica em torno do significado do processo eleitoral. Não é que o ponto de partida crítico esteja completamente equivocado, tampouco que todos os que optam pelo voto nulo como estratégia cometam esse erro, mas muitas organizações acabam por reproduzir a mesma lógica de apassivamento das lutas sociais ao abandonarem os espaços de luta, isolando esses espaços do restante do campo político.

IV. Preparação para o momento pós-eleitoral

ali10 

O quarto motivo afeta com maior força os movimentos em estágio mais avançado de burocratização, geralmente aqueles que já não têm mais base social e se resumem a um capital simbólico acumulado por lutas passadas, porém em franca depreciação. Sem outras estratégias de pressão contra os gestores e geralmente já totalmente inseridos no jogo partidário, o período eleitoral se resume a apostas em futuros vencedores e renegociações preparando o momento pós-eleitoral. Diferentemente dos três primeiros motivos, não há verniz ideológico em jogo, somente fisiologismo. Entretanto é o momento do tudo ou nada, pois, pertencentes a movimentos em decadência, os seus dirigentes têm nessa janela de oportunidade a chance de se embricarem de vez na burocracia estatal. Suas habilidades gestoriais desenvolvidas no período de ascensão das lutas são postas no currículo e, se não for agora, nada garante que em momentos futuros haja alguém interessado em usar da sigla novamente.

V. Eleições e a exploração da mais-valia

Por fim, não podemos deixar de considerar que boa parte das lutas sociais são organizadas e disseminadas por um setor mais precarizado dos trabalhadores. Um setor que se caracteriza pela instabilidade e incerteza das fontes de renda, mesmo em períodos de baixa taxa de desemprego, como atualmente. O processo eleitoral, por outro lado, exige a cada ano um volume maior de recursos para garantir a eleição ou reeleição dos candidatos da ordem. Esses candidatos atuam em várias frentes para angariar os votos necessários, sendo que a maior parte dos eleitores se encontra — e não poderia ser diferente — nos extratos sociais dos militantes do circuito da mais-valia absoluta. Esses militantes, por dominarem as tecnologias de mobilização nos seus bairros e locais de trabalho, por terem desenvolvido o poder da argumentação e da disputa política, por conhecerem o território onde se localizam e por terem uma vasta rede de contatos, se convertem em trabalhadores cobiçados pelos comitês políticos. Assim, deixam de ser trabalhadores sub-qualificados e, somente neste período e somente para esta atividade laboral, passam para o circuito da mais-valia relativa. O período eleitoral dura entre 2 e 3 meses, exigindo uma carga de trabalho intensa e extensa, que em geral impede que esses militantes — agora atuando como trabalhadores da política partidária — sigam com seus compromissos de luta. Contudo, não só os militantes mais qualificados são contratados. Há trabalho para as mais diversas tarefas: panfletar, distribuir cavaletes, segurar faixas, deflagrar bandeiras, trabalhos de motoristas e outros tantos. Assim o trabalho eleitoral acaba por também empregar outro tipo de pessoas ligadas às lutas sociais.

Aqui não estamos falando das lideranças comunitárias já cooptadas. Essas lideranças estão o tempo todo, seja eleições ou não, negociando sua capacidade de mobilização. Alguns políticos chegam a tabelar o valor para lideranças desse tipo e aqueles que oferecem mais acabam levando o apoio. Independentemente de estes fazerem lutas ou não em períodos não eleitorais, eles já mercantilizaram por completo sua atuação política e transformam em dinheiro os votos que conseguem somar. Precisam monopolizar o território ou oligopolizá-lo, através de hierarquias relativamente estáveis criadas com outras lideranças do mesmo tipo. É nesse aspecto que mais se diferenciam daqueles que animam as lutas sociais. Apesar do limite tênue que separa esse tipo de liderança do militante comprometido com as lutas, e da passagem para o outro lado ser frequente, o militante comprometido é, de fato, um trabalhador submetido a uma relação de trabalho que não lhe permite controle sobre o processo produtivo, tornando-se descartável assim que é entregue a mercadoria. Enquanto a eleição o desmobiliza, retirando-o de seu trabalho de base cotidiano, para a liderança cooptada a eleição é o clímax da sua atividade.

***

ali07 

Por todos esses motivos, não é de se estranhar que precisamente no período eleitoral ocorra o maior esvaziamento da massa crítica à esquerda, com a consequente adesão a alarmismos e polarizações do campo político partidário. E não é raro que, nessa tomada de posição na arena eleitoral, abandone-se qualquer tipo de coerência em relação ao período anterior, aderindo ao “jogo sujo” dos insultos e das críticas moralistas. Se fôssemos ser consequentes, esse seria o momento de botar todas as redes de solidariedade e capacidade material em prol do avanço das lutas sociais. No entanto, é o avesso disso que ocorre e aqueles que insistem em lutar nesse período são relegados a uma situação de maior vulnerabilidade, já que ficam abandonados à direita pelos companheiros e apoiadores. A consequência óbvia é que o processo eleitoral e sua fisiologia própria terminam ocupando todos os espaços sociais onde se faz política. Essa situação, porém, não é mera consequência da disposição da sociedade nos períodos eleitorais, mas algo alimentado e reforçado mesmo por aqueles que se pretendem seus críticos, uma situação que deveria forçar a reflexão de todos os que acreditam estar alinhados com as lutas sociais.

Por outro lado, se há um esvaziamento no período eleitoral, nesse vazio há uma oportunidade. Conforme as organizações burocráticas voltam seus esforços ao jogo eleitoral, deixam um possível terreno para a construção de lutas autônomas. Se forem habilidosos, os movimentos podem reverter o cenário de desmobilização a seu favor. Se a eleição aflora entre grande parte da população uma rejeição ao sistema político, está aí uma brecha para os movimentos de base não só desenvolverem suas lutas, como também aprofundarem seu debate. Criticando abertamente a lógica eleitoral e a democracia burguesa, podem envolver em lutas concretas trabalhadores desconfiados da política, passando do desânimo à ação. Aliás, não estaria aí — muito mais do que nos shows eleitorais — uma estratégia capaz de criar laços de solidariedade entre os trabalhadores mais precarizados e, assim, solapar a base material do tão alardeado conservadorismo?

ali03
Imagens do pugilista Muhammad Ali

Fonte: Passa Palavra

"Como é construída a política educacional: o triste exemplo paulista". Escrito por Otaviano Helene

PICICA: "Quanto à questão do baixo padrão de qualidade, vale lembrar que o Brasil está, já há muito tempo, entre os países da América do Sul com os piores indicadores educacionais. A desigualdade, por sua vez, pode ser percebida de várias formas diferentes e complementares. Por exemplo, a conclusão do ensino fundamental é rara exceção entre as crianças provenientes dos 20% mais pobres, enquanto a conclusão do ensino superior é a regra entre os 20% mais ricos. Evidentemente, essa disparidade quantitativa - que não considera complementos educacionais extraescolares, nem a qualidade da educação recebida - projeta para o futuro as desigualdades regionais e de renda que amargamos hoje. Outro exemplo da intensidade da desigualdade: o investimento educacional por estudante ao longo de todo um ano na média das escolas públicas é inferior ao investimento em um único mês na educação, escolar e extraescolar, de muitas crianças provenientes dos grupos mais ricos."


Como é construída a política educacional: o triste exemplo paulista Imprimir E-mail
Escrito por Otaviano Helene   
Quarta, 15 de Outubro de 2014



O efetivo projeto educacional não é aquele que está escrito nas leis ou nos planos educacionais, nem nos programas e discursos de eventuais candidatos a cargos públicos. Para saber qual é, verdadeiramente, a política educacional, o melhor é consultar a realidade. E as principais características do nossa política educacional são um padrão médio muito baixo, uma enorme desigualdade e uma evasão escolar altíssima, concentrada basicamente nos contingentes economicamente mais desfavorecidos, sendo essa política implementada por meio dos investimentos públicos no setor, ou melhor, pela falta deles.

Quanto à questão do baixo padrão de qualidade, vale lembrar que o Brasil está, já há muito tempo, entre os países da América do Sul com os piores indicadores educacionais. A desigualdade, por sua vez, pode ser percebida de várias formas diferentes e complementares. Por exemplo, a conclusão do ensino fundamental é rara exceção entre as crianças provenientes dos 20% mais pobres, enquanto a conclusão do ensino superior é a regra entre os 20% mais ricos. Evidentemente, essa disparidade quantitativa - que não considera complementos educacionais extraescolares, nem a qualidade da educação recebida - projeta para o futuro as desigualdades regionais e de renda que amargamos hoje. Outro exemplo da intensidade da desigualdade: o investimento educacional por estudante ao longo de todo um ano na média das escolas públicas é inferior ao investimento em um único mês na educação, escolar e extraescolar, de muitas crianças provenientes dos grupos mais ricos.

Quanto à evasão escolar, outra característica da política educacional brasileira, vale observar que ela atinge patamares assustadores: cerca de 25% das crianças abandonam o ensino fundamental antes de sua conclusão e perto da metade dos jovens já terá deixado a escola antes do final do ensino médio. Ainda que no Estado de São Paulo essa situação seja, aparentemente, menos ruim do que a média nacional - 5% de evasão ao longo do ensino fundamental e um terço até o final do ensino médio -, ela é comparativamente muito ruim para uma região onde quase a totalidade da população mora em áreas urbanas ou muito próximas a elas e a renda per capita é comparável à de países que já superaram esses problema há muito tempo.

Os estados e municípios brasileiros – infelizmente, com raríssimas exceções – despendem com a remuneração de educadores valores muito abaixo do necessário para uma mudança de patamar. Evidentemente, destinar a um setor poucos recursos para remuneração de pessoas é a forma mais eficiente de se desvalorizar uma profissão e desestruturar uma atividade social, pois implica em baixos salários, falta de professores pelo desestímulo provocado pelas condições de trabalho, profissionais sobrecarregados e com pouquíssimo tempo para destinar aos alunos e classes superlotadas. Essas são condições mais do que suficientes para inviabilizar a construção de um sistema educacional aceitável.

Vejamos como um exemplo, o caso do Estado de São Paulo, um estado useiro e vezeiro em tratar mal os professores e estudantes. A figura 1 mostra colunas cujas alturas indicam as remunerações líquidas de alguns grupos de trabalhadores do governo paulista. A primeira coluna à esquerda corresponde aos professores da educação básica (Professores da Educação Básica I e II). As demais colunas correspondem a alguns setores, órgãos e profissões, nesta sequência: médias dos trabalhadores da área da saúde, enfermeiros, funcionários da Fundação Padre Anchieta, trabalhadores da área de segurança, funcionários da Fundação para o Desenvolvimento da Educação, médicos, engenheiros e procuradores. Os tons de cinza representam a dispersão em torno da média, a qual está em uma região intermediária entre a parte escura das colunas e a parte cinza claro. As diferenças são marcantes e comentários são totalmente desnecessários. Ainda que o governo estadual paulista propale que há uma carreira motivadora, com altos salários em seu topo, apenas cerca de 3% dos professores da educação básica receberam remunerações líquidas superiores a R$ 5.000 em agosto de 2014.

alt
Salário líquido de algumas categorias de servidores do estado de São Paulo. (Valores obtidos por amostragem no site de transparência do governo estadual paulista consultado em 7 de outubro de 2014.)

Seriam os baixos investimentos em salários devidos a dificuldades orçamentárias e arrecadatória do governo ou a dificuldades econômicas do estado? Vejamos. A rede de educação da secretaria de educação tem cerca de 210 mil professores da educação básica. Considerando a renda média de R$ 2.300, em um ano as despesas somam 6,5 bilhões de reais, incluindo o décimo-terceiro salário e a remuneração adicional nas férias. Isso é pouco mais do que 3% do orçamento do governo estadual. Dobrar as despesas salariais, aumentando a quantidade de professores (e, portanto, reduzindo o número de “aulas vagas”, aumentando o número de horas de permanência dos estudantes nas escolas e reduzindo a carga de trabalho de cada professor) e a remuneração de cada um custaria outros poucos pontos percentuais do orçamento, valor respeitável, mas totalmente viável.

Mas há outras comparações que mostram a total viabilidade de se financiar a duplicação dos investimentos salariais. Suponha que o governo estadual decidisse financiar essa duplicação com base em um aumento do ICMS. Isso implicaria em provocar um aumento nos produtos taxados por aquele imposto em cerca de 0,5%. Ou seja, uma compra de supermercado que custaria 50 reais, aumentaria em 25 centavos, próximo do troco que, por pressa, abrimos mão e menos do que uma gorjeta dada a um eventual empacotador; um aparelho eletrônico de mil reais passaria a custar R$ 1.005,00, uma diferença inferior às passagens de ônibus ou a despesas de estacionamento que temos quando vamos fazer uma compra; um veículo de 50 mil reais encareceria em 250 reais, valor desprezível quando comparado com o custo do produto. Não se está aqui defendendo um aumento das alíquotas do ICMS, muito menos para produtos de primeira necessidade, mesmo porque os recursos adicionais poderiam ser gerados por impostos diretos ou por alíquotas maiores para produtos supérfluos; o objetivo é apenas ilustrar quão pequeno é o volume de recursos necessários para duplicar as despesas com pagamento de professores.
Mais comparações. Uma estimativa da sonegação de todos os impostos no estado de São Paulo, com base no volume de sonegação em nível nacional divulgado pelos procuradores da Fazenda Nacional (quantocustaobrasil.com.br) e na participação paulista na economia do país, mostra que aqueles 6,5 bilhões corresponderiam a menos do que 5% da sonegação. Ou seja, uma pequeníssima redução da sonegação seria suficiente para gerar aqueles bilhões de reais.

Ainda mais duas comparações para ilustrar quão pouco são 6,5 bilhões de reais na economia paulista. Esse valor corresponde a menos do que meio por cento do PIB anual paulista, valor que aparece em um único mês gordo de crescimento econômico ou desaparece em um mês magro, de variação negativa do PIB, e é próximo aos cerca de 5 bilhões de reais da Nota Fiscal Paulista esquecidos, que as pessoas sequer perderam tempo em buscar.
Há, claro, outras despesas educacionais além da remuneração de professores. Entretanto, ela é a mais importante de todas as despesas e, como mostrado, aumentá-la de forma muito significativa é totalmente viável, tanto do ponto de vista orçamentário como do ponto de vista econômico.

Enfim, gastar mais com pagamento de professores, para aumentar os salários, atrair mais profissionais, reduzir o número de aulas vagas e a carga de trabalho de cada docente, evitar que alunos fiquem sem atendimento por falta de profissionais e reduzir a evasão escolar, é totalmente possível, tanto economicamente como em termos orçamentários. Não fazer isso é uma política explícita e a forma mais eficiente de impedir a construção de um sistema escolar democrático, igualitário, eficiente e que responda às necessidades da população e da nação.

Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP, ex-presidente da Adusp e do Inep, autor do livro “Um Diagnóstico da Educação Brasileira e de seu Financiamento”; mantem o blog blogolitica.blogspot.com
Fonte: Correio da Cidadania