junho 08, 2014

"As três acusações a Espinosa" (Razão Inadequada)

PICICA: "Espinosa fez bem de não publicar seus livros em vida, as pessoas ainda não estavam preparadas para aquilo que tinha a dizer. Prova disso são as três principais acusações que fizeram a ele depois que suas ideias foram publicadas postumamente. Espinosismo era uma acusação séria, muitos tinham que tomar cuidado para não deixarem seus pensamentos confundirem-se com o do filósofo holandês.

Materialismo, imoralismo e ateísmo, são estas as três acusações ao nosso filósofo tão mal compreendido e tão pouco lido. Não que sejam inteiramente mentiras, mas a forma como são expressas retiram toda a beleza da vida e da obra deste grande pensador. Façamos justiça com a memória de Espinosa, expliquemos melhor por que seus detratores assim o acusaram..."


As três acusações a Espinosa


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Espinosa fez bem de não publicar seus livros em vida, as pessoas ainda não estavam preparadas para aquilo que tinha a dizer. Prova disso são as três principais acusações que fizeram a ele depois que suas ideias foram publicadas postumamente. Espinosismo era uma acusação séria, muitos tinham que tomar cuidado para não deixarem seus pensamentos confundirem-se com o do filósofo holandês.

Materialismo, imoralismo e ateísmo, são estas as três acusações ao nosso filósofo tão mal compreendido e tão pouco lido. Não que sejam inteiramente mentiras, mas a forma como são expressas retiram toda a beleza da vida e da obra deste grande pensador. Façamos justiça com a memória de Espinosa, expliquemos melhor por que seus detratores assim o acusaram:

Materialismo: Espinosa nada contra a corrente de tudo que estava sendo dito em seu tempo. Enquanto todos falavam de espírito, mente, razão, glândula pineal, ele nos diz: “mas nós nem sabemos ainda o que pode o corpo!” (ver aqui). Quanta ignorância, não sabemos nem ao menos o que fazer com este objeto tão caluniado que carregamos de um lado para o outro e fingimos não ser nós. O corpo é a base de tudo, o corpo é o chão de onde brotam os pensamentos. Não há mais um modelo filosófico onde a alma deve dominar os instintos e comandar as pulsões; agora o corpo pensa, reflete, julga. A consciência torna-se efeito, quebra-se a hierarquia mente-corpo (ver aqui). Quebrar com este domínio é deixar de lado o primeiro objeto metafísico que nos aprisiona. A mente é efeito, é ideia do corpo. Seria então materialista uma acusação, ou um elogio?

Imoralista: esta acusação é muito séria, e difícil de se entender. Seria Espinosa um hedonista vulgar, amante das bebedeiras, frequentador de prostíbulos? Seria o filósofo um cruel facínora, um perigoso delinquente? Espinosa não acusa… talvez por isso o tenham chamado de imoral; ele quer compreender para poder agir, não para julgar e condenar. A Ética desarticula todos os sistemas morais ao fazer uma matemática dos afetos. Como eles funcionam? Como fazê-los funcionar de modo que gerem muito mais felicidades e bons encontros ao invés de tristezas e maus-encontros? Espinosa não escreve para instituir a Lei: não há linha que não possa ser cruzada. Há apenas o bom-jeito e o mau-jeito. “Se você fizer isso é provável que aconteça isso“, tudo está resumido no modo como você se relaciona. O ignorante julga, culpabiliza, acusa, sofre as consequências; o sábio entende, decifra, mede, e age. Se exite uma Lei, esta é a de Deus, não dos homens, mas Deus confunde-se com a natureza (veja aqui), então não há como desobedecê-lo, tudo que fazemos é sua vontade, só temos que aprender o melhor jeito de fazê-lo então.

Ateu: Espinosa não era ateu, ou era, isso depende do ponto de vista. Em toda sua obra, Deus confunde-se com a natureza: não é um velho barbudo sentado em um trono. Deus age por sua mais absoluta vontade, extrema firmeza, sem a mínima hesitação, mas ele é a própria natureza se manifestando, inclusive em nós! Espinosa traz deus para o plano real, para a horizontalidade das relações. “Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, /Como quem abre os olhos e vê, /E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, /E amo-o sem pensar nele, /E penso-o vendo e ouvindo, /E ando com ele a toda a hora” (Alberto Caeiro). Espinosa se afasta de todos aqueles que tiram Deus deste mundo, pois só assim é possível julgar esta realidade que se manifesta completamente. Sua ética é um refletir sobre a felicidade, como alcançar a satisfação? Como viver bem? Certamente não é refletindo no pecado e no sacrifício na cruz.

Espinosa é um grande filósofo que nos quer ver agir, compreender para agir. Sua filosofia nos joga no mundo, mas ao mesmo tempo nos prepara para vivê-lo em toda sua plenitude, em toda sua potência; nos faz afirmar o aqui e agora, como apenas um verdadeiro filósofo faria. Existem muito padres que fingem ser filósofos, e é muito fácil de achá-los, basta perguntar-lhes o que acham de Espinosa.

Van Gogh
Van Gogh

PS: texto baseado no capítulo II de “Espinosa – Filosofia Prática” de Gilles Deleuze

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