PICICA: "Como já sabia Glauber, existe um fetichismo da resistência,
indispensável para enfrentar o capitalismo em seu próprio terreno
maquinocêntrico, o campo da automação, da publicidade, da tecnopolítica,
do hiperconsumo. Mas o problema que Marx coloca não tem solução
simplória, porque o capitalismo também funciona no maquínico. Precisamos
operar no maquínico, sem nostalgias, moralismos, antropocentrismos
impotentes. Para isso, se impõe a tarefa de superar os limites
humanistas e todos os hegelianismos do marxismo, da esquerda, das forças
humanas e não-humanas em luta. Não adianta apenas proliferar e
criticar, ou reeditar dicotomias entre humanos e não-humanos tão tolas
quanto o filme Avatar. Sem agência com as muitas forças
demoníacas, sem tendências de autonomização dos processos maquínicos, o
mundo não poderá ser repovoado noutros termos."
Humanos x não-humanos em Marx
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No Fragmento das máquinas [1], Marx descreve o momento em que elementos humanos e não-humanos passam a funcionar de maneira inseparável, como força produtiva. O arranjo dinâmico entre humanos e não-humanos é chamado por Marx de “máquina” ou “sistema de automação do maquinário”. Em Marx, a máquina nunca tem natureza meramente técnica, ao que os operários viriam completar enquanto peças humanas. A máquina é sempre a própria maquinação do trabalho humano com forças não-humanas, isto é, um conjunto de petrechos mecânicos, orgânicos e intelectuais, processos conscientes e inconscientes, impulsos energéticos, cadeias significantes, instrumentos físicos e metafísicos, uma rede verdadeiramente heterogênea de elementos dispostos pra funcionar juntos. A máquina não funciona, simplesmente, repercutindo a vontade humana, que não passa de uma componente de mesma dignidade que as outras. Nas palavras de Marx, “tal autômato consiste em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais, de modo que os próprios trabalhadores são definidos somente como membros conscientes dele” e “a atividade do trabalhador, limitada a uma mera abstração da atividade, é determinada e regulada em todos os aspectos pelo movimento do maquinário, e não o inverso”. Integrada no maquinário, a porção humana responde por algumas conexões com consciência, porém numa concatenação processual que a ultrapassa, um grande autômato formado por redes heterogêneas de coisas, pessoas, saberes, mecanismos, organismos, fenômenos químicos, gradientes de energia, diferenças de potencial e muito mais coisas.
O Marx do Fragmento está falando da passagem do regime antropocêntrico de produção para o regime maquinocêntrico [2]. Este caracteriza o capitalismo, diversamente dos antigos regimes de sujeição social direta. No regime produtivo antropocêntrico, o humano era o único sujeito do trabalho. O trabalho humano era transmitido aos objetos, dando-lhes forma e sentido. Somente o trabalho humano gerava riqueza. O patrão explorava o trabalho humano, constrangendo-o a trabalhar para si, e pronto. Era direto. Já no capitalismo, o maquinário é imediatamente força produtiva e não o trabalho humano, que passa a ser somente uma componente. O humano perde a posição privilegiada como única mediação possível entre as coisas, por meio do trabalho, situando-se entre a matéria prima e os produtos finais. Máquinas também trabalham, multiplicando os sujeitos nos vários pontos de conexão e desconexão. O maquínico envolve, diz Marx, uma “metamorfose”, uma mutação antropológica da produção.
No regime maquínico chamado capitalismo, não é mais possível precisar a fonte do valor em algo humano ou não-humano, porque humanos e não-humanos existem daí por diante dobrados e redobrados n vezes, em n naturezas híbridas. O resultado dessa amálgama é uma grande produtividade difusa, tanto maior quanto mais conexões acontecerem entre as multiplicidades concatenadas. Dessa maneira, no capitalismo, o tempo de trabalho humano não serve para medir o valor e definir a riqueza dos povos, como queriam os primeiros economistas modernos, como David Ricardo ou Adam Smith. A métrica do valor, calculada na economia clássica em função do tempo de trabalho, perde inteiramente a correspondência, uma vez na matriz maquinocêntrica. Que começa com a fábrica, o coletivo maquínico de humanos e não-humanos analisado por Marx, até chegar na metrópole contemporânea, uma megamáquina, uma imensidade de processos, redes, fluxos e hibridações em intenso caldeamento de riqueza e vida [3].
A virada maquínica de Marx se contrapõe, em primeiro lugar, a Hegel. Nas Lições sobre a filosofia da história, Hegel explica como a história tem uma racionalidade própria. A História, com maiúsculas, uma só e universal, é a narrativa da afirmação progressiva da Razão, o único Sujeito-narrador, que se realiza ao longo do tempo atravessando conflagrações sucessivas, guerras, embates terríveis. Pouco importa. A Razão está destinada a ultimar-se como Absoluto, a realização definitiva, o fim da história. Tudo o que acontece participa necessariamente de um plano racional, de uma teleologia similar à Providência cristã. O que for mais forte numa época, aquilo que consiga afirmar-se sobre o restante e dominar o seu tempo, só pode ser o mais racional, e assim impulsionará o processo de realização em direção ao Absoluto. Não admira Hegel tenha visto em Napoleão a própria “Razão a cavalo”. E as formas minoritárias, os povos vencidos, outras racionalidades esmagadas? Para o filósofo, não passam de “florzinhas” que tiveram o azar de postar-se na frente da Razão, amassadas pelas botas do progresso. Essa é uma teodiceia, pois justifica os males do mundo como momentos necessários para o bem derradeiro. Não apenas explica as vítimas: justifica-as, aceitando os custos do progresso com a maior naturalidade.
Mas o marxismo que importa não pode ser hegeliano. Talvez não precise ser — e não é mesmo! Marx não era.
A filosofia da história de Hegel narra (e justifica) a dominação progressiva do Sujeito humano sobre os não-humanos. Em bom português, dos impérios colonizadores contra todo o restante do mundo, humano ou não-humano, a partir do que é escrito aquilo que aprendemos nos livros como “a história geral”. Em Hegel, a vitória da Razão sobre a desrazão é a vitória da modernidade ocidental sobre os “primitivos”, sua subjugação, seu ingresso “benevolente” no mundo da história racional dos estados europeus. [4]
Hegel sancionou filosoficamente o conceito de fetichismo, arraigado no século 18 europeu, pra descrever, de maneira geral e irrestrita, o “sistema de crenças” dos primitivos, ou seja, dos não-ocidentais, do Outro. Mais apartados da Razão universal do que nós, afinal mal ou bem estamos numa linha progressiva, os primitivos ainda seriam incapazes de pensamento abstrato, ignorantes da ciência, aprisionados aos impulsos, apetites e sensações, ao imediato dos sentidos. Por isso, mistificariam o real atribuindo poderes imaginários às coisas (totens, talismãs, amuletos, oferendas…) e aos animais, conferindo um poder de sujeito que os não-humanos, segundo a Razão, não poderiam carregar.
Contra o antropocentrismo absolutista de Hegel, Marx vai aplicar o mesmo conceito para explicar a mercadoria, mostrando que não são apenas os primitivos que incorrem em fetichismo. Marx mostra que os ocidentais europeus vivem num mundo fetichizado. O mundo do dinheiro, do equivalente geral de todas as coisas. Porque nós, esclarecidos pela razão ocidental, também atribuímos às coisas e animais um poder, algo que lhes é extrínseco. Na metafísica ocidental, os não-humanos têm valor, eles participam de uma forma social em que podem ser trocados, comercializados livremente no mercado. Quer dizer, atribuímos uma qualidade comum aos não-humanos, uma qualidade abstraída de sua existência concreta, que passa a pairar sobre nossas cabeças. Um prato de comida não vale só um prato de comida, mas vale também R$ 12,00 no restaurante da esquina. Os mesmos R$ 12,00 que pago pra entrar no cinema.
Que coisa misteriosa é essa que permite comensurar um prato de comida e a assistência de um filme? Marx vai usar palavras como “magia”, “misticismo” e “fantasmagoria” [5], para descrever a estranha manobra com que o processo produtivo de uma coisa ou serviço é apagado da memória, tornado invisível e irrelevante, diante da capacidade de ser medido e trocado. Em vez de enxergar a procissão de atos produtivos que levaram o prato de comida à minha mesa (ou o filme à tela), limito-me a identificar o produto final e seu preço. Em vez das inúmeras operações qualitativas, e das inúmeras relações implicadas nessas operações; avalio a coisa pela quantidade de dinheiro que lhe dá acesso. O fetiche ocidental, por excelência, consiste em converter a qualidade em quantidade, e a partir daí organizar a sociedade da produção à distribuição ao consumo.
Mas certo marxismo hegeliano, lamentavelmente, critica o fetichismo errando o alvo. Deveríamos, segundo o marxismo-hegeliano, superar também o fetichismo próprio do capitalismo ocidental. Os ocidentais, assim como os primitivos, também estão iludidos, num “sistema de crenças” próprio. O trabalho político consistirá em conscientizar, ensinar e esclarecer sobre o caráter artificial do valor, desmistificando a mercadoria, salvando-nos das alienações e seduções capitalistas. Uma tarefa que também é prática, já que a classe dominante usaria esse “sistema de crenças” para perpetuar sua dominação. Depor o fetichismo da mercadoria é vencer o capital. Daí o slogan: “(preencha como quiser) não é mercadoria”. Ainda presos ao regime antropocêntrico da produção, o caso seria libertar o trabalho humano da alienação provocada pela produção e circulação das mercadorias. Quer dizer, o caso seria emancipar a essência humana do processo de objetivação do capitalismo, reconvertendo a abstração em concretude, a ilusão em satisfação de necessidades. Nada mais hegeliano de esquerda, já que se trataria mais uma vez de re-empoderar o Sujeito racional contra o Objeto alienador. Libertar as forças produtivas como plena realização da natureza humana, tão bloqueada que vem sendo por relações de produção alienantes e coisificadoras. O capital aparece, nessa lógica, como o poder do não-humano, o mesmo que, segundo o raciocínio, estaríamos corretos em criticar nos mágicos e mistificados “primitivos”. [6]
Mas o que sobra depois que o fetichismo da mercadoria for vencido? Sobra o valor de uso, um arbitrário uso racional de cada coisa, de cada animal e de cada trabalho humano. Muitos socialistas, nostálgicos de um tempo jamais vivido, defendem o valor de uso como o cerne da formulação de uma economia pós-capitalista. Como se sabe, a instrumentalização disso deve passar pela instituição de uma economia estatizada e planificada, com o esclarecimento pedagógico e moral ou, como sói acontecer, brutalmente coativo, a respeito das reais necessidades humanas, do povo, do estado.
A opção marxista, aqui, habita o avesso disso. Marx não critica o fetiche do capital porque é fetichista, mas porque é capitalista. O fetiche não é nenhuma ilusão. Tampouco um sistema de crenças. No Capital, Marx se assombra com as “sutilezas metafísicas e manhas teológicas” da mercadoria. O segredo da mercadoria colocado no Capital é revelado no Fragmento das máquinas. O enigma do fetichismo é o enigma da máquina. Quando humanos e não-humanos estão concatenados no processo produtivo, não é mais possível separar o poder do humano e o poder do não-humano. O poder maior nasce, exatamente, da maquinação dinâmica e produtiva de uns e outros. É o “mais-valor maquínico”, de que falam Felix Guattari e Gilles Deleuze [7]. O capitalismo se baseia na expropriação sistemática dessa produtividade do maquinário, desde o princípio fetichizada, pois re-empodera os não-humanos. E porque a fetichização é o movimento próprio da ativação de uma potência. Uma potência de compor com o heterogêneo, entretecer redes entre processos biológicos, econômicos, astrológicos, estéticos, científicos, sociais. Quando Hegel e os ocidentais falam de uma relação não-fetichizada com as coisas, estão falando de um tipo particular de relação. Uma relação de subjugação Sujeito-Objeto: como a coisa ou o animal não têm alma, como não são Sujeito da história, então posso dominá-los, posso arrancá-los de sua inatividade ontológica para o mundo racional, cultural, para o mundo do ocidente. O humano (homem branco ocidental patrão) seria assim a mediação para a ativação da potência, segundo a relação não-fetichizada. Daí é um passo para colocar no saco dos ainda-não-humanos os primitivos que quero colonizar, escravizar, matar, ou os migrantes despossuídos que quero integrar como força-trabalho.
No entanto, nos povos primitivos relegados às letras miúdas da história, o fetichismo consiste numa mágica, que eles aplicam às coisas que tocam e amam. Ao fetichizar o não-humano, encantam-no como relação entre sujeitos, no plural e em minúsculas. E assim empoderam a coisa, o animal, o Outro, como centro de expressividade, como potência de relação e hibridação. Para nós, amar as coisas é constrangedor, no máximo temos o despudor de amar o valor a elas atribuído em termos de dinheiro. Mas os primitivos não só podem amá-las, os rios, as conchas, as nuvens, este livro, aquele pássaro, como relacionarem-se com elas como vida plena. O mundo infla, monstruoso, causando estranheza a quem está acostumado à mutilada metafísica do humano x não-humano. Enquanto o ocidental subjuga o outro e grita sua independência em relação às coisas, o primitivo lhes doa vida, no ato mesmo em que por elas é preenchido. Eu habito o outro e ele me habita, me veste, me dá um corpo… É um outro tipo de relação. Nesse sentido, muitos dos povos primitivos já vivem ou viviam no maquínico, enquanto o ocidente patinava no regime antropocêntrico de produção. [8]
Nós também experimentamos transes xamânicos. Eu poderia invocar a arte, drogas, Hendrix, Deus e o diabo, sexualidade, surrealismo, mas não é preciso ir longe. Para dar um exemplo prosaico, ao dirigir um carro, que pode ser tão agenciamento maquínico quanto um índio sioux cavalgando. Carro e cavalo, um e outro são objetos alienígenas, vindos de fora, mas nem por isso não podemos nos relacionar, com o carro ou com o cavalo, de uma maneira mais amorosa e produtiva, do que na relação de subjugação ou domesticação. Em ambos os casos, tem-se um coletivo maquínico humano e não-humano, que só pode funcionar bem se eu, ocidental-carro ou índio sioux-cavalo, aprender cuidadosamente determinada sintonia existencial, determinado estado de “devaneio diurno”, tão propício ao processo.
Durante muito tempo na Europa, a resistência aos patrões era simplesmente classificada como bruxaria, com o que também se desqualificavam os pagãos, os hereges e os inconformados. As tentativas de assumir o fetichismo, de convocar forças não-humanas, eram perseguidas por uma santa aliança entre donos de terras, burgueses e igreja. O próprio corpo feminino teve de insurgir-se, modulando energias naturais e animais, para dessubjetivar-se da brutal sujeição patriarcal. Por suas ligações demoníacas, muitas arderam nas piras de um humanismo assassino. Se todo antropomorfismo cheira a cristianismo, o maquinismo cheira a enxofre. Não à toa, o diabo apareça nas horas de resistência e sabotagem, nas fábricas ocupadas e nas revoltas populares, como uma aparição salutar. A última vez em que foi visto, ouvi de três testemunhas, foi no assalto às escadarias da assembleia legislativa do Rio de Janeiro, naquela noite de 17 de junho do ano passado.
Como já sabia Glauber, existe um fetichismo da resistência, indispensável para enfrentar o capitalismo em seu próprio terreno maquinocêntrico, o campo da automação, da publicidade, da tecnopolítica, do hiperconsumo. Mas o problema que Marx coloca não tem solução simplória, porque o capitalismo também funciona no maquínico. Precisamos operar no maquínico, sem nostalgias, moralismos, antropocentrismos impotentes. Para isso, se impõe a tarefa de superar os limites humanistas e todos os hegelianismos do marxismo, da esquerda, das forças humanas e não-humanas em luta. Não adianta apenas proliferar e criticar, ou reeditar dicotomias entre humanos e não-humanos tão tolas quanto o filme Avatar. Sem agência com as muitas forças demoníacas, sem tendências de autonomização dos processos maquínicos, o mundo não poderá ser repovoado noutros termos.
Kant colocou as coisas pra girar ao redor do sujeito. Meio século depois, Marx não fez apenas um retorno às coisas. Pegou as coisas e tirou delas os caprichos mais fantásticos. Pôs as coisas pra dançar: “há um outro mundo operando dentro de nós, um reino mitológico, um desconhecido mundo cheio de seres arquétipos, demônios e toda uma horda de entidades estranhas”.
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NOTAS
[1] – Karl Marx, Grundrisse. Citações no parágrafo nas páginas 580 e 581 (ed. Boitempo).
[2] - Maurizio Lazzarato, Signos, máquinas, subjetividades.
[3] - Antonio Negri, Marx além de Marx. Também Da fábrica à metrópole.
[4] – Dipesh Chakrabarty, Provincializar a Europa.
[5] – Karl Marx, O Capital. Todas as citações sobre mercadoria tiradas do Livro 1, Cap. 1, Seção 4.
[6] – A crítica à teleologia progressista embutida no Grande Divisor está em Bruno Latour (bem como o esquema humanos x não-humanos), em Jamais fomos modernos, mas também na Investigação nos modos de existência. Essa crítica também está na dimensão política do trabalho de Eduardo Viveiros de Castro. Uma crítica geral ao socialismo como racionalização do trabalho a partir do valor de uso está em todo o autonomismo italiano e, no Brasil, em Giuseppe Cocco (MundoBraz).
[7] - Gilles Deleuze e Felix Guattari, Anti-Édipo. E Mil Platôs, embora haja uma deriva em direção ao agenciamento, o caráter produtivo do desejo não desaparece do volume 2 do Capitalismo & esquizofrenia, uma vez que assim como o primeiro, também é um livro marxista no sentido forte do termo.
[8] – Peter Stallybrass, O casaco de Marx.
VER TAMBÉM:
O valor das coisas, no QdL, 27/9/2012
Fonte: Quadrado dos Loucos
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