PICICA: "Em “Jogo de Decapitações”, Sérgio Bianchi retoma, sem complacência mas sem sutiliza, sua hipótese permanente: a do Brasil “cronicamente inviável”"
As cabeças cortadas de Sergio Bianchi
Em “Jogo de Decapitações”, Sérgio Bianchi retoma, sem complacência mas sem sutiliza, sua hipótese permanente: a do Brasil “cronicamente inviável”
Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
Quem conhece os filmes de Sergio Bianchi sabe
que a sutileza não é o seu forte. Sabe também, em compensação, que
neles não há lugar para a complacência e muito menos para a hipocrisia.
Implacável, inflexível, seu dedo costuma tocar direto nas feridas que
outros artistas preferem ignorar ou contornar. Não é diferente com seu
novo trabalho, Jogo das decapitações.
Desta vez, o protagonista é Leandro (Fernando
Alves Pinto), um estudante de pós-graduação que prepara mestrado sobre a
esquerda no período da ditadura militar. Sua mãe é uma ex-prisioneira
política (Clarisse Abujamra) que dirige uma ONG de direitos humanos
empenhada em conseguir indenizações para vítimas do regime. Seu pai
(Paulo César Pereio), artista libertário preso por atentado ao pudor na
juventude, virou prisioneiro comum décadas depois por ter matado uma
mulher. Numa rebelião num presídio, ele pode ser um dos mortos não
identificados, mas também pode ser um dos fugitivos.
É entre esses dois polos – a militância
convencional de esquerda encarnada pela mãe e a pulsão transgressora do
pai – que transita o atormentado rapaz.
Fosso de classe
Esse arcabouço dramático serve para Bianchi
expor sua visão ácida de alguns assuntos cruciais: o oportunismo
político de militantes encastelados em ONGs ou na política
institucional; a barbárie que caracteriza desde sempre nossa formação
social; a clivagem de classe que separa a elite intelectual de esquerda
dos pobres que ela julga defender; a falta de perspectivas visíveis no
horizonte.
Tudo conflui para a conclusão, expressa no
título de um filme do diretor, de que o Brasil é “cronicamente
inviável”. É pela boca do cético e sarcástico Rafael (Silvio Guindane),
colega de faculdade de Leandro, que Bianchi parece proferir suas
sentenças terríveis e definitivas.
A construção narrativa é ostensivamente
heterogênea, “suja”, composta de diferentes texturas: a exposição da
ação no presente se entrelaça a documentários de época, aos pesadelos do
protagonista e a trechos de Jogo das decapitações, filme realizado nos anos 1970 pelo pai porra-louca e resgatado por Leandro.
Jogo intertextual
As imagens desse filme dentro do filme, na verdade, foram extraídas do primeiro longa-metragem de Sergio Bianchi, Maldita coincidência,
de 1979. Alguns atores do filme antigo, como Sergio Mamberti e Maria
Alice Vergueiro, reaparecem no novo, em papéis bem diversos, produzindo
um curioso curto-circuito.
O que Jogo das decapitações tem
de mais interessante talvez seja esse arguto jogo intertextual, que
matiza e problematiza o tom sentencioso do discurso. Os pesadelos do
protagonista, embora marcados pela ênfase e pela redundância, têm alguns
momentos inspirados, como a exposição das cabeças cortadas de um
punhado de presos, numa espécie de altar que lembra em tudo a célebre
foto das cabeças de Lampião e seu bando. Troféus macabros ligados pelo
fio invisível da nossa crônica barbárie.
Outras cenas memoráveis – e igualmente
terríveis – são a do linchamento de um homem que atropelou uma pessoa e a
da “oficina de teatro” ministrada numa escola rural por um
ex-guerrilheiro (Elias Andreato). Nesta última, salvo engano o único
momento em que o filme se afasta do protagonista, o ex-guerrilheiro
entoa com vigor uma velha canção política, diante do olhar jocoso de
jovens indiferentes. Mundos em descompasso, ideias fora do lugar,
línguas distintas, cabeças cortadas.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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