junho 30, 2014

"FOTOGRAFIA PARRÊSIA E POÉTICAPOLÍTICA DOS VAGALUMES (trecho)", por Barbara Szaniecki

PICICA: "Desde ano passado venho acompanhando o trabalho de Katja Schilirò cuja fotografia é orientada para situações de conflito e de genocídio. Também acompanho com admiração a produção de midialivristas autônomos que, sem laços com partidos ou empresas (sejam as tradicionais, sejam aquelas que adotaram a forma de rede), tem registrado desde 2013 os movimentos de protestos pelas ruas das cidades brasileiras. Registros que, pela hostilidade da polícia militarizada, exigem uma boa dose de CORAGEM. Registros que, por conta da parcialidade da mídia monopolizada, insistem em apresentar outros lados da VERDADE. É por essa persistência em enfrentar a polícia militar e desmentir a mídia monopolizada que venho acompanhando esse trabalho, sem cessar de pensar que há nele algo daquilo que Foucault chamava de "coragem da verdade" ou "dizer-verdadeiro" para então considerar essa prática fotográfica contemporânea, como um "registrar-verdadeiro", isto é, como uma fotografia parrêsia: muito longe de uma pretensa “objetividade” sobre os fatos tal como a grande mídia costuma nos apresentar seu discurso jornalístico e visual, a fotografia parrêsia está ancorada no corpo, simultaneamente numa experiência individual e num modo de vida coletivo. Ao mesmo tempo em que pensava nesse tipo de prática fotográfica parresiástica, totalmente inspirada no livro A Coragem da Verdade de Michel Foucault, as imagens produzidas por Katja me levaram ao livro Sobrevivência dos Vagalumes, de Georges Didi-Hubermann. Nele, recortei três temas que, embora distinguíveis, se entrelaçam continuamente: a noção de sobrevivência em seu sentido mais potente, a questão do tempo no método arqueológico, e a análise da imagem na sua poética política."


FOTOGRAFIA PARRÊSIA E POÉTICAPOLÍTICA DOS VAGALUMES (trecho). Para Katja Schilirò

Desde ano passado venho acompanhando o trabalho de Katja Schilirò cuja fotografia é orientada para situações de conflito e de genocídio. Também acompanho com admiração a produção de midialivristas autônomos que, sem laços com partidos ou empresas (sejam as tradicionais, sejam aquelas que adotaram a forma de rede), tem registrado desde 2013 os movimentos de protestos pelas ruas das cidades brasileiras. Registros que, pela hostilidade da polícia militarizada, exigem uma boa dose de CORAGEM. Registros que, por conta da parcialidade da mídia monopolizada, insistem em apresentar outros lados da VERDADE. É por essa persistência em enfrentar a polícia militar e desmentir a mídia monopolizada que venho acompanhando esse trabalho, sem cessar de pensar que há nele algo daquilo que Foucault chamava de "coragem da verdade" ou "dizer-verdadeiro" para então considerar essa prática fotográfica contemporânea, como um "registrar-verdadeiro", isto é, como uma fotografia parrêsia: muito longe de uma pretensa “objetividade” sobre os fatos tal como a grande mídia costuma nos apresentar seu discurso jornalístico e visual, a fotografia parrêsia está ancorada no corpo, simultaneamente numa experiência individual e num modo de vida coletivo. Ao mesmo tempo em que pensava nesse tipo de prática fotográfica parresiástica, totalmente inspirada no livro A Coragem da Verdade de Michel Foucault, as imagens produzidas por Katja me levaram ao livro Sobrevivência dos Vagalumes, de Georges Didi-Hubermann. Nele, recortei três temas que, embora distinguíveis, se entrelaçam continuamente: a noção de sobrevivência em seu sentido mais potente, a questão do tempo no método arqueológico, e a análise da imagem na sua poética política. Apresento aqui algumas imagens de Katja Schilirò. No meio de uma produção espetaculosa de imagens midiáticas – fotos de estádios de futebol tinindo de novos, de jogadores entre outros poderosos, de mulheres de plástica perfeita, de holofotes ofuscantes entre outras luminosidades que se apresentam como o único horizonte para a Nação –, surge uma poéticapolítica dos vagalumes...

Junho de 2013 começou com uma série de grandes manifestações de insatisfação com a gestão da cidade e ganhou um grande impulso com alguns fatos que suscitaram forte comoção pública e resistiram ao ritmo de consumo midiático: o desaparecimento do pedreiro Amarildo, morador da Rocinha, e a chacina de treze jovens da Maré. Nesta ocasião, o Projetação, coletivo nascido ele mesmo do encontro de alguns jovens nas ruas, projetou em vários cantos da cidade a imagem mais catalisadora do que sintética Amar é a Maré Amarildo que teve forte impacto no imaginário das manifestações. Amarildo desapareceu em 14 de julho de 2013. Em 14 de agosto foi realizado um ato para cobrar das autoridades, no caso o Secretário Estadual de Segurança, responsável pelas UPPs, uma resposta. Da Rocinha a Ipanema, a favela desceu. Sempre presente no imaginário de classe média carioca como o que de pior poderia lhe ocorrer, o ato transcorreu da forma inimaginável, tão pacífica quanto potente. A faixa “Abaixo o genocídio dos trabalhadores negros e negras. Fim da PM. Desmilitarização de todas as polícias. Fim das UPPs” dá o tom. Não se trata somente do desaparecimento de Amarildo, já suficientemente cruel em si mesmo, mas do “genocídio de Amarildos”. Iniciada a travessia do túnel Zuzu Angel – a foto de Stuart Angel, sorrindo em sua fragilidade de vagalume antes de ser brutalmente torturado e assassinado, me vem em mente, sobrevivente –, a multidão grita “Cadê o Amarildo?” Provavelmente muitos ali presentes ouvem ressoar ao longe “Cadê Stuart Angel?”, “Cadê Zuzu Angel?” Nos registros do povo ali reunido “sobrevivem” as resistências de Canudos, de Palmares, das lutas sob a ditadura dos militares. Rapazes dão, com a ponta do dedo, nos muros sujos pela poluição e pela história, o seu recado. Uma vez em Ipanema, a manifestação se transforma numa performance artística. Katja se equilibra na tarefa de não expor os rostos daqueles que, num clima de repressão ou de estigmatização social, não querem ser identificados (são fotografados de costas ou ao longe ou na escuridão ou...) e de expor os rostos que vêem, nessa exposição, uma forma de proteção. Há também quem registre com um celular o rosto e a fala do militar. Rostos se mostram ou se escondem enquanto, na ausência do corpo de Amarildo, outros corpos se jogam performaticamente ao chão. Meses depois, são as imagens desses vagalumes atravessando o túnel, – livres em sua travessia do morro ao asfalto, não apenas por inserção no mercado de trabalho e de consumo como, sobretudo, pelas lutas que assumiram – que sobrevivem em minha memória.

Ao contrário de certas expectativas, as manifestações não cessaram. Desde junho 2013, vagalumes desaparecem para logo reaparecer em outro lugar. Por todo Brasil, militantes e midialivristas lutam sob os holofotes da cidade espetacularizada. Porque ela, como Debord ontem ou Agamben hoje descrevem, de fato existe! mas a ela muitos resistem..

Em 11 de março deste ano de 2014, Katja postou esta foto no seu mural de facebook junto com um texto curto mas suficientemente longo para falar desse lugar que são as “ruas”, dos encontros e dos afetos que nela têm acontecido, das mudanças de subjetividade que têm provocado e das transformações na cidade que hoje soam possíveis:

“Este velho cavalheiro, que fala palavrão, que gesticula suas belas mão, sempre trêmulas, que nas ruas, acho que vive, se encontrou e viveu as manifestações, fez bons amigos. Que gentilmente me beija e se alegra quando lhe dou um beijo carinhoso nas bochechas (este é nosso maior segredo), me faz pensar na riqueza que encontrei nestes 3 anos de Ruas. Estranhamente estou numa crise com isso, exatamente neste momento, nesta semana, mês. O que faz eu estar me sentindo em casa, quando estou nas ruas e profundamente deslocada e estranha quando me encontro na rua Visconde de Pirajá, andando, com vitrines lindas para olhar? Essa mudança. essa crise é solitária e muitas vezes te afasta da balada, dos velhos amigos, do que você era e não consegue mais ser. Estranhamente sou mais feliz, mas ainda é confuso, estranho, solitário, perturbador. Eu o conheço como Presidente.”

Exatamente um mês depois, em 11 de abril, acontecia o violento despejo de famílias que estavam ocupando um terreno vazio há dois anos. O despejo ocorreu às 5 horas da manhã, com truculências (destruição dos pertences e uso de cassetete, spray de pimenta, bomba de gás lacrimogêneo e balas de borracha contra os moradores) e irregularidades (presença de aparato militar sem a presença de oficiais de justiça no local, e com detenções de crianças e adolescentes) que foram em seguida denunciadas à Relatora de Direito à Moradia Adequada da ONU. Para pressionar por uma solução, algumas famílias se dirigiram à Prefeitura do Rio de Janeiro no centro da cidade e deram início a um acampamento na passarela coberta da estação de metrô Cidade Nova. Mais uma vez expulsas pela policia, as famílias se instalaram ao relento no gramado. Dias depois, perseguidos pela chuva, se refugiaram sob a marquise de um prédio. Após ver fotos e uns posts no facebook decidi ir ao acampamento com amigos. Lá observei uma emocionante rede de solidariedade composta por militantes e midialivristas que havia organizado, com determinação e dedicação, a coleta e distribuição de itens de necessidade básica para a agora denominada Ocupa Oi-Telerj. E lá estava Katja. Me falou do seu cuidado em registrar esses momentos tão delicados de homens, mulheres e crianças e que não havia outra maneira senão experimentado essa fragilidade no compartilhamento de um pouco de sopa e de sono-insônia, entre doações e intimidações, dos dias e das noites cariocas. É dessa fotografia parrêsia que me parece nascer, sob as luzes de uma cidade que cedeu à ordem globalizada, uma poéticapolítica de vagalumes: fragmentos de rostos, detalhes de corpos, rastros de movimentos. Nos passos de Aby Warburg, tento compor um pequeno Atlas Mnemosyne com fotos de refugiados que a própria Katja selecionou em seu facebook ou com as imagens de refugiados realizadas por Laura Waddington no seu filme Border e que Georges Didi-Huberman mencionou em seu livro. Na madrugada de quinta-feira 17 de abril, os ocupantes da Oi-Telerj foram novamente acordados e expulsos pela policia. Depois de longa caminhada na madrugada, encontraram refúgio no estacionamento da Catedral Metropolitana no centro da cidade onde puderem ficar por 17 dias (até sábado 3 de maio) até serem removidos para um abrigo na Paróquia Nossa Senhora do Loreto na Ilha do Governador. Lá permanecem até hoje longe dos holofotes da mídia e provavelmente permanecerão até o apagar das luzes da Copa.

No Rio de Janeiro, a Semana Santa foi mesmo carregada. O horizonte fechado dos Apocalípticos parecia, de fato, ter se concretizado. Pouco dias depois da Via Crucis dos refugiados da Oi-Telerj, na terça-feira 22 de abril, o jovem dançarino Douglas Rafael Pereira conhecido como DG foi encontrado morto com marcas de tiro na comunidade do Pavão-Pavãozinho, Zona Sul do Rio de Janeiro. Revoltada, a comunidade desceu para protestar. Edílson da Silva dos Santos conhecido como Matheus, de 27 anos e portador de deficiência mental, também acabou sendo atingido e morto por um tiro no rosto. A comunidade, com o dedo em riste, acusou a UPP na comunidade e a PM no asfalto. A comunidade, de cabeça erguida, organizou o enterro de seus jovens como uma manifestação. Lá estão mais uma vez, as faixas: “Policia assassina. DG e Edilson: vítimas do Estado”. Lá está, mais uma vez a travessia, de um outro túnel desta vez, o que liga Copacabana a Botafogo. E lá estão, novamente, os vagalumes: tão frágeis de tão fortes, tão massacrados de tão sobreviventes. Amarildos, Douglas, Cláudias, DGs, Edilsons... E lá, enfim, está Katja para criar sua políticapoética: “Estas fotos estão propositalmente escuras, para resguardar os parentes e manifestantes”, avisa no seu facebook.

Partindo de Foucault, do “dizer-verdadeiro” que descreve em A coragem da verdade, levantei a hipótese de um “registrar-verdadeiro” por parte de fotógrafos e midialivristas que tem enfrentado forças policiais e interesses poderosos, visíveis e ocultos, para nos mostrar outras versões dos fatos. Muito além da suposta objetividade da grande mídia, o que me chamou a atenção no trabalho de Katja, em seus post e fotos expostas no facebook, foi sua adesão a um modo de vida para que pudesse fotografá-lo. Ao fazer da “rua” seu lugar e sua comunidade, fez da fotografia uma parrêsia. Uma vez apreendida sua prática, como qualificar a sua poética? Uma vez apreendido seu operar, como qualificar seu olhar? Tal como Marika (é uma referência do Didi-Hubermann que depois explico) desenhava borboletas, Katja fotografa vagalumes. Esses persistem como que atraídos pela luz no fim do túnel ainda que cientes que correm, literalmente, o risco de se queimar. Pois no Brasil, não há “estado de exceção” e sim “regra do genocídio”. Há, contudo, esses “momentos de exceção em que os seres humanos se tornam vagalumes – seres luminescentes, dançantes, erráticos, inapreensíveis e resistentes enquanto tais […]” (Didi Hubermann). Ignoram então o horizonte anunciados pelos apocalípticos – aqueles que, cegados por Cronos, não vêem Aion e Kairos, os acontecimentos e as oportunidades, e anunciam o tempo dos mortos, qual seja, o das eleições – e insistem na travessia, do morro ao asfalto, do túnel de São Conrado a Ipanema, de Copacabana a Botafogo. Seguem em frente, sobreviventes.

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