PICICA: "No
topo dos seus oitenta, quase oitenta um, anos, o pensador italiano
Antonio Negri é uma figura adorável. A uma primeira vista, aquele
senhor alto, de jeito sereno e olhar bondoso chama a atenção pela
simpatia, mas assim que se pronuncia, ele impressiona ao desfilar um
repertório intelectual potente e polêmico: e, enfim, não há como
ficar neutro diante do pensamento de Toni Negri, dos mais
iconoclastas, criativos e coerentes pensadores do nosso tempo.
Coerência que, aliás, lhe custou caro quando confrontou a farsa democrática italiana
do pós-guerra e, por isso, foi parar no cárcere em 1979, acusado de ser
"mandante moral" do assassinato do premiê Aldo Moro ocorrido um ano
antes -- acusação movida pela natureza revolucionária da sua obra -- e
também sob alegação de ser cattivo maestro -- isto é, mau mestre,
corruptor de jovens como Sócrates. A "farsa democrática" em questão se
fundava no grande acordo da direita democrata-cristã, com seus
parceiros socialistas, e a esquerda “comunista” em torno de
um indeterminado "progresso": a direita fazia concessões pelos direitos
sociais, mas, em troca, a esquerda deveria condicionar seus sindicatos a
impedir greves e reivindicações da sua base trabalhadora -- e também
vetar, ou levar em banho-maria, certas demandas insurgentes ligadas aos
direitos de minorias, que emergiam com singular potência desde os anos
1960."
[...]
"Há,
é verdade, um longo caminho que separa a Itália do fim dos anos
1970 do Brasil de 2014, mas há coincidências importantes: tanto a
"direita” quanto a "esquerda” partidárias se confundem cada vez mais --
enquanto, no mesmo processo, a(s) esquerda(s) se descola(m) da realidade
social e política do
país; o cálculo político passa, então, a girar em torno do consenso em
um “progresso” que justifica quase tudo, inclusive a repressão
militar e judicial de movimentos sociais, minorias e afins. Como na
Itália, houve um processo anterior de empoderamento econômico, e
autonomização subjetiva, mas o sistema político e econômico chegou no
limite do que poderia tolerar. Lá, no entanto, a esquerda parlamentar
aparecia como parte do sistema, mas não em um primeiro momento como
cabeça dele, coisa que cabia à conservadora democracia cristã. Aqui, as
mudanças foram deflagradas por uma ampla coalizão política e um forte
movimentação social, a princípio, protagonizada pela esquerda."
O Rolezinho de Negri (e do Negrianismo) por São Paulo
Cocco e Negri no Cacs-PUC |
No
topo dos seus oitenta, quase oitenta um, anos, o pensador italiano
Antonio Negri é uma figura adorável. A uma primeira vista, aquele
senhor alto, de jeito sereno e olhar bondoso chama a atenção pela
simpatia, mas assim que se pronuncia, ele impressiona ao desfilar um
repertório intelectual potente e polêmico: e, enfim, não há como
ficar neutro diante do pensamento de Toni Negri, dos mais
iconoclastas, criativos e coerentes pensadores do nosso tempo.
Coerência que, aliás, lhe custou caro quando confrontou a farsa democrática italiana
do pós-guerra e, por isso, foi parar no cárcere em 1979, acusado de ser
"mandante moral" do assassinato do premiê Aldo Moro ocorrido um ano
antes -- acusação movida pela natureza revolucionária da sua obra -- e
também sob alegação de ser cattivo maestro -- isto é, mau mestre,
corruptor de jovens como Sócrates. A "farsa democrática" em questão se
fundava no grande acordo da direita democrata-cristã, com seus
parceiros socialistas, e a esquerda “comunista” em torno de
um indeterminado "progresso": a direita fazia concessões pelos direitos
sociais, mas, em troca, a esquerda deveria condicionar seus sindicatos a
impedir greves e reivindicações da sua base trabalhadora -- e também
vetar, ou levar em banho-maria, certas demandas insurgentes ligadas aos
direitos de minorias, que emergiam com singular potência desde os anos
1960.
Negri, há pouco, esteve no
Brasil, onde deu um giro pelo Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São
Paulo. Cá, participou de conferências, deu entrevistas, circulou entre
movimentos sociais, participou de lançamento de livros, conversou com estudantes
etc. Essa foi uma de suas muitas visitas ao país, sendo a primeira no
fim do ultimo período em que esteve no preso -- entre a primeira prisão
de Negri e a última, houve o exílio na França, onde se tornou professor
da prestigiosa Universidade de Paris; o retorno voluntário para Itália,
nos anos 1990, que culminaria em novo período no cárcere, foi uma
tentativa de dar visibilidade à causa dos refugiados italianos dos anos
de chumbo. De lá para cá, o Brasil de Lula e as experiências
latino-americanas foram importantes objetos de reflexão-ação de Negri.
Há,
é verdade, um longo caminho que separa a Itália do fim dos anos
1970 do Brasil de 2014, mas há coincidências importantes: tanto a
"direita” quanto a "esquerda” partidárias se confundem cada vez mais --
enquanto, no mesmo processo, a(s) esquerda(s) se descola(m) da realidade
social e política do
país; o cálculo político passa, então, a girar em torno do consenso em
um “progresso” que justifica quase tudo, inclusive a repressão
militar e judicial de movimentos sociais, minorias e afins. Como na
Itália, houve um processo anterior de empoderamento econômico, e
autonomização subjetiva, mas o sistema político e econômico chegou no
limite do que poderia tolerar. Lá, no entanto, a esquerda parlamentar
aparecia como parte do sistema, mas não em um primeiro momento como
cabeça dele, coisa que cabia à conservadora democracia cristã. Aqui, as
mudanças foram deflagradas por uma ampla coalizão política e um forte
movimentação social, a princípio, protagonizada pela esquerda.
Negri
foi, e é, dos maiores apoiadores internacionais das transformações
sociais pelas quais o Brasil passou nos últimos anos, sendo dos
primeiros entusiastas internacionais do governo Lula -- enquanto os
pensadores de esquerda estavam ora encantados com uma Terceira Via, ao
estilo de Tony
Blair, do nosso FHC e dos profetas do Fim da História; ora
tributários de uma velha esquerda saudosa de modelos burocráticos
como o da velha União Soviética ou da velha social-democracia,
ambas formas mais ou menos referentes à falecida sociedade
industrial. Lula, apesar das ambiguidades, trouxe uma lógica de governo
virtuosa e aberta, voltada aos afetos e à subjetividade, mas agora se
vive outro momento; o Lulismo parece, voluntariamente, ter se resolvido
em desenvolvimentismo científico, no qual o gerencialismo e a técnica
tomaram o lugar da política.
Ironicamente, se era até normal que conservadores como Demétrio Magnolli ou Merval Pereira atacassem Negri, de repente, um nome de esquerda como Marilena Chauí
(em virtude da inspiração de parte dos manifestantes de Junho) foi ao
ataque; depois, quando Negri, sem desmerecer os avanços do período Lula,
fez críticas ao estado de coisas do impasse atual, ele passou a ser renegado pelo governismo oficial -- os mesmos que, até então, mantinham suas opiniões
sobre o pensamento negriano guardadas para si ou faziam uma leitura
domesticadora dele, como se il vecchio Toni fosse apenas um
reformista de retórica radical. Antes, talvez, Mas a causa do desentendimento atual
é claro, os motivos que levaram, e levam, Negri a defender certo
legado de Lula são uns, o deles, por certo, são outros -- o que
não se resolve numa disputa sobre a qual pertence a melhor análise,
mas sim para onde cada um pretende direcionar o que aí está.
O
mais recente desses ataques veio de Mino Carta,
editor da mais
relevante publicação pró-governo: ele chamou Negri de “profeta
do apocalipse”, teceu elogios ao Compromisso Histórico que unia
comunistas a democratas-cristãos na Itália dos anos 1970 e fez uma
defesa do desenvolvimentismo implacável: nada de “cultura da
favela”, o papel do governo é civilizar e educar os favelados e
diferentes. Após Negri fazer críticas aos megaeventos, Carta finalmente
teve a oportunidade para abrir sua caixa de ferramentas, afinal, tudo
pode ser dito contra quem ousou falar mal da Copa e
quetais. E muito do que permanecia guardado vem à tona, seja a velha
rixa sobre a política italiana ou a defesa do desenvolvimentismo, dois
fatos historicamente diversos e conceitualmente parecidos.
Enfim, é a mesma fúria que Carta investiu contra uma outra figura envolvida na oposição ao Compromisso Histórico italiano, o ativista Cesare Battisti: após ser condenado em um
esdrúxulo processo político nos anos 1980, acabou refugiado em uma
série de países, vindo parar no Brasil, onde foi preso e alvo de um
processo de extradição digno de um Dreyfus. Na ocasião, Carta
chegou a investir mais tempo e virulência em prol da extradição de Battisti para o
sedento Estado italiano do que a própria direita brasileira, mas
seus esforços foram em vão, sobretudo pela intervenção da ala
esquerda do governo Lula -- representada naquele momento pelo então
ministro da justiça Tarso Genro.
Carta,
por certo, há de atribuir a Battisti, e muito mais a Negri, a
responsabilidade pelo desastre político italiano, o que é uma hipótese que
chega a ser mais louca do que inverossímil: A verdade é que não
foi a esquerda revolucionária que jogou a Itália em um caos
político simbolizada pelos longos e tragicômicos governos de Silvio
Berlusconi, e agora pela política europeia de austeridade aplicada com as bençãos de um presidente ex-comunista e um gabinete
de centro-esquerda, mas o próprio Compromisso Histórico que
implodiu por suas próprias pernas, depois da derrota de pirro que
impôs aos movimentos sociais italianos.
Sublinhe-se
que pouco depois da morte de Aldo Moro, o gabinete do premiê Bettino
Craxi – do pequeno partido socialista local, sócio minoritário
desde sempre dos democratas-cristãos e do grande consenso –
implodiu em escândalos incontroláveis de corrupção. Isso foi
seguido da própria implosão do Partido Democrata-Cristão, anos
mais tarde, incapaz que era de se sustentar diante de mínimas
investigações contra a máfia. Fim não muito diferente teve o partido comunista
local, que se autoextinguiu com o fim da União Soviética, de quem
ele alegava ter “críticas” e “manter distância”.
A
“esquerda extraparlamentar” italiana, na verdade, expôs a
fabulosa fraude política na qual a esquerda de Estado escolheu
se enfiar. Esse é o motivo do ódio de Carta e tantos outros, que
com sua narrativa fantástica imputam, até hoje, a responsabilidade
do desastre aos denunciantes, como se Noé fosse o culpado pelo
Dilúvio. E algo semelhante se opera no Brasil, onde a reiteração
da tragédia italiana ressurge na ironia triste da repetição das
posições de Carta e Negri, já anciãos, sobre fatos tão atuais e
brasileiros, mas que poderiam muito bem se referir à Itália dos
anos 1970.
Talvez nem tudo esteja
perdido, ainda, no Brasil, mas enquanto o neoliberalismo espreita para
retornar, o governo liderado pelo partido dos trabalhadores ainda vacila
quando não é plenamente ambíguo: ou tristemente inequívoco, quando
insiste na militarização da segurança da Copa ou trata a violência de
Estado como um problema menor das manifestações. Manifestações que,
aliás, deveriam ser ouvidas antes de serem julgadas e condenadas de
pronto e por inteiro.
Fica a proposta de
desentender menos o enigma político brasileiro a partir, vejamos só, da
análise da composição de classe: pensar as transformações do PT, e a
inflexão reacionária da classe média brasileira à luz das transformações
do capitalismo industrial para o rentista -- como ele mesmo suscitou em
roda de conversa no Centro Acadêmico de Ciências Sociais da PUC de São
Paulo. Ou de pensar e atuar cada vez mais nos movimentos em forma de
enxame, os quais são mais e mais comuns na atual onda grevista
brasileira. Também resta o exemplo da trajetória de luta de Negri. E da sua, aí sim, autêntica generosidade com os outros -- com a qual nos brindou ao longo dos últimos dias em São Paulo.
P.S.: Foi a terceira vez que acompanhei uma visita de Negri ao Brasil, mas de todas elas, está me foi a mais marcante: engraçado e impressionante vê-lo em meio ao centro acadêmico que adotei e onde já debati tanto sobre a obra dele -- perto dos seus próprios livros e ao lado de gente tão querida.
Fonte: O Descurvo
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