PICICA: "A idéia geral ali presente: Nos mijam e dizem que chove"
Arte e ativismo: a rua, os espaços e a luta pela liberdade
25 de maio de 2014
A idéia geral ali presente: Nos mijam e dizem que chove. Por Rafael Morato Zanatto
Está ao alcance da mobilização social a
gestão da vida, e nosso passado recente demonstrou, apesar do
florescimento de idéias fora de moda, cheirando a naftalina, que em um
mundo livre ganhar no grito e na pancadaria não vai ser suficiente dessa
vez. Enquanto isso, a organização civil refloresce, trazendo pautas que
são para ontem, formuladas por coletivos autônomos, movidos para
transformar a sociedade. E aqui falaremos um pouco desse clima a partir
da arte.
São inúmeros os exemplos de
manifestações artísticas direcionadas contra o fascismo. Em outra
ocasião, escrevemos neste coletivo um trabalho mais detalhado sobre a
contracultura de Amsterdam, que tomou as ruas com os happenings de
Jasper Grootweld e do Provos no menino de Liverdje. A rua desta forma
substitui o teatro, incorporando o público em sua encenação. Foi o que
presenciamos na manifestação contra a Rede Globo e a favor de uma mídia
independente. Um coletivo de artistas independentes encenava ao longo do
percurso exatamente o que a televisão fez ao longo de sua história.
Com um grande pano quadrado, o logo da
empresa, tingido com as cores do Brasil, é aberto, sustentado pelas
extremidades por quatro pessoas, que esperavam outros atores caírem na
rede do entretenimento. Saltitando abaixo do pano, a diversão se
converte em dominação e entorpecimento da razão quando o pano é baixado
e, num movimento circular rápido, é fechado em espiral a partir da
mobilização dos corpos que o sustentam, pressionando-os todos juntos,
capturando-os como peixes em uma rede. Após a soltura o atordoamento é
visível e a mensagem é expressa: os meios de comunicação eclipsam a
verdade social em benefício da verdade privada, onde os espectadores são
uma fatia do mercado que consumirá seu produto. Interessante notar que a
intervenção num momento preciso atraiu um pequeno garoto, que observava
atento, e aderiu, sendo envolvido com os atores pelo lençol, agregando à
intervenção o acontecimento. Uma pixação no prédio da emissora completou a ilustração da idéia geral ali presente: Nos mijam e dizem que chove.
Da rua para o palco, o monólogo O Homem Cachorro,
encenado e escrito por Sérgio Pardal. A peça narra a história do
desempregado paulistano que, sem poder prover sua família, aceita o
emprego de cachorro do vigia. Animado, dedica-se com todo o empenho a
cumprir sua função, mas, aos poucos, ele mesmo se torna um cão, adquire
seus hábitos e suas pulgas, perde sua família, esquece o português e
passa a se comunicar apenas por gestos, bufos, rosnados e latidos. Seu
tempo tem a duração do sucumbir, um mergulho sem volta, que faz do
trabalhador um cão sarnento, que extirpa-lhe seus entes queridos e lhe
retira toda dignidade, até seus últimos fluidos. É uma clara
demonstração de que, ante o capitalismo, valemos apenas o que
produzimos, e olhe lá. Um homem já fatigado pela vida, sem força de
lutar, sem solo, sendo explorado até à última ponta. O figurino reforça a
transformação, que aos poucos deixa o terno aprumado para vestir apenas
farrapos, e por esse caminho também notamos que o homem cachorro,
inicialmente ereto, quase que em posição de sentido, vai pouco a pouco
se curvando, perdendo a rigidez na mesma velocidade que perde as
esperanças. Se curva, é esmagado, se põe de quatro, esquece como se
morde e passa apenas a lamber e mexer o rabo.
Na
linha dos monólogos, em recente visita à ocupação Casa Amarela, prédio
da rua Consolação que pertenceu a um antigo barão do jogo do bicho
naqueles anos 1920. Nú, em espaço aberto, o ator fez tal qual Antonin
Artaud ao encenar seu personagem, um suicidado pela sociedade. Os gritos
proferidos, os gestos rígidos e profundos como o emergir das entranhas
simulavam um torturado pela ditadura militar. Com suas mãos levantadas
ao ar, se debatia preservando o centro de gravidade a tal ponto que
facilmente víamos ali, entre as palmeiras e o roncar dos motores da rua,
um corpo pendurado como carne ao gancho do açougue ou um militante
político no pau de arara, tão famosa técnica de tortura, uma das
preferidas das autoridades brasileiras. As pessoas ao redor sentiam o
impacto daquele corpo franzino que relembrava a todos que a ditadura não
foi, como pretende essa corja, uma revolução. Pouco a pouco, a direita
tenta retirar a humanidade dos comunistas ou, no seu linguajar, “esses
vermelhos nojentos”, para justificar todos os tipos de crimes. Até aqui,
nada de novo em seumodus operandi. Tal qual o capitalismo retira a humanidade do trabalhador, transformando-o no homem cachorro, de Sérgio Pardal.
Após a descrição minuciosa da tortura
sofrida no Dops, o ator se retirou, balizando entre o público que o
cercava, rompendo entre o aglomerado uma saída que representou as
dificuldades de continuar em frente quando estes sobreviveram. Um belo
desfecho, que prolongou o impacto de sua performance. Esvaiu-se pelas
escadas e se perdeu nas sombras, dando lugar ao grupo Shandala.
Misturando
teatro e música, o grupo entrou em cortejo, adubando o solo com pétalas
de rosas, incentivadas a proliferarem ao som das alfaias, flautas e
outros instrumentos. O conjunto lembrava, pelos trajes, camponeses, as
suas enxadas sobre as costas. Lembrei-me num estalo da peça Ópera dos Vivos,
da Companhia do Latão, ao encenar a fortuna das Ligas Camponesas. A
música de Shandala ressoava fundo, com o grave sempre muito destacado,
contrapondo-se a flauta doce. Muito plural, ora parecia estarmos
desfrutando do clima de uma feira medieval, entre jograis e menestréis,
cantigas e mal-dizeres, gente que sobreviveu aos maiores infortúnios,
assim como os atores que preservaram vivas as pantomimas e o costume de
zombar dos poderosos, como o bufão.
No estalar da rabeca, esse universo se
desfez, produzindo um salto para a cultura nordestina, e lá ficamos bom
tempo, delirando em meio à heterogeneidade de impulsos. A ciranda
ressoava aos ouvidos, a tal ponto que podíamos imaginar seus volteios e
as faces de suas peças. O filósofo Walter Benjamin lembra-nos o quão o
haxixe pode ser uma excelente ferramenta de observação sensorial. Isso
está presente nos seus passeios pelas feiras e subúrbios de Paris, vendo
com argúcia, entre os destroços, resquícios de um passado ainda não
completamente morto.
As ondas foram trepidando, e o que antes
foi feira, depois ciranda, fez com que o observador trepidasse ao
gorjear do tambor de Taiko. Posicionado ao centro do palco, o
instrumento irradiou energia e se conectou firmemente aos instrumentos.
Foi o que faltava, o relampejar das guerras feudais japonesas. Agora não
marcavam o paço das tropas em direção ao inimigo do senhor feudal.
Batia fundo, revolviam no âmago forças misteriosas, que se assemelham
àquelas que florescem nas barricadas e nos distúrbios de rua de nossos
dias. Todos esse impulsos mobilizados por uma banda que faz ressurgir
através de sons distintos, impulsos emancipatórios, nos conectando à
cultura popular que permanece viva nos espaços alternativos. Ao findar a
apresentação, o grupo se recolheu em cortejo, diluindo-se em meio ao
palacete ocupado por artesãos e artistas independentes.
Entre
a névoa e as sombras que reapareceram depois de muito dormitar, com o
deflagrar das movimentações de junho, os partidários da carnificina dos
vermelhos – já que não sabem examinar a especificidade que nos separa –
se debatem como poucos, ansiosos para formar suas próprias milícias para
agir nos distúrbios de rua esperados para a Copa do Mundo. A mídia se
enriquece, tal qual os atenienses na direção da Liga de Delos, ao
propagandear a ameaça persa. O governo compra tanques que disparam jatos
de água, gás de pimenta e gás lacrimogêneo – e prendem por vinagre. Os
movimentos sociais crescem e se põem em posição. Resta saber se os
atores sociais que se preparam para tomar as ruas de assalto terão o
vigor para suportar a investida das forças repressoras. O espetáculo
está montado e, diante da flagrante estetização da política que
observamos, é salutar lembrar que a receita de Benjamin ao observar os
filmes soviéticos ainda não venceu: a arte continua a se politizar.
A ilustração de destaque representa uma escultura de Maurizio Cattelan.
Fonte: Passa Palavra
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