PICICA: "Enquanto
alguns correm para abraçar o valor de troca, a forma fetichizada e
desumana, prefiro beijar a face do valor de uso que renasce. É a
rebelião do valor de uso… preparem-se, pode não ser só no futebol."
A Copa como metáfora e a metáfora da Copa: pela rebelião do valor de uso
[Manifestantes organizam uma partida de futebol de rua em ato pela Tarifa Zero convocado pelo MPL em São Paulo no dia 19 de junho de 2014]
Por Mauro Iasi.
O capital se
apropria de tudo, não seria diferente no caso do futebol. O destino
daquilo que é mercantilizado é ver seu ser transformado em veículo de
valor de troca, forma de expressão do valor, que passa a ser primordial,
relativizando seu valor de uso original.
Como coisa
de valor, sua vida passa a fluir no sentido da realização do valor e no
caso da produção capitalista de mercadorias, de mais valor. Quando era
um valor de uso, a realização se dava na fruição, no consumo daquilo que
se buscava para realizar o desejo do corpo ou do espírito. No ato de se
apropriar das propriedades da coisa para saciar nossa fome ou sede, ao
ouvir a melodia que nos acalma a alma ou desperta o corpo. Como
mercadoria, a realização se dá no ato da troca, na transformação da
coisa em equivalente geral monetário, enquanto o valor de uso subsumido
fica ali, relativizado, quando não esquecido.
É por isso
que a propaganda seduz para o ato da compra, sem que necessariamente o
consumo corresponda ao desejo ou a necessidade. Um comercial de
refrigerante transpira gotinhas de coisas geladas, paisagens
refrescantes, gente feliz em dias quentes, mas a coisa em si, pode ser
um xarope adocicado que vai de dar mais sede e te levar a consumir outra
vez o produto… que vai te dar mais sede ainda.
No caso
particular do futebol, a mercantilização ocorre não apenas pela venda do
espetáculo esportivo em si mesmo, mas em várias dimensões: no “mercado
de jogadores”, na venda dos direitos de imagem, como veículo de
propaganda, como empreendimento milionário de empreiteiras, bancos e
tantos outros. A velha arte de esfolar várias vezes o mesmo boi.
O valor de
uso originário fica soterrado sob montanhas de formas mercantis que
sobre ele buscam seu quinhão da valorização, muitas vezes fictícia e
parasitária. É por isso que muitas vezes depois de realizada a farra do
valor de troca, nossos estômagos e espíritos futebolísticos permanecem
famintos e sedentos.
No entanto,
age sobre a forma mercadoria a maldição do valor de uso. Isto é, mesmo
relativizado e subsumido, o valor de uso é incontornável. Não é possível
que haja uma mercadoria sem valor de uso – ainda que sob a luz de uma
certa racionalidade esquecida ele seja uma “utilidade inútil”. Ninguém
vai à padaria comprar cigarro almejando um câncer de traquéia. Mas, só
quem já fumou sabe o valor de uso de uma boa baforada.
O valor de
uso subsumido (mas incontornável) resiste ali onde não devia, mesmo que
na subversiva sensação de ausência: na sede e fome não saciadas, na
pobreza persistente no país que dizia tê-la abolida no marketing
político, na desigualdade da sociedade da igualdade, na falta do sinal
na sociedade do acesso total à comunicação 4G… em noventa minutos de…
nada.
O futebol
mercadoria e seu evento maior – a Copa – é montado para a realização do
lucro das grandes corporações. Esta Copa já aconteceu e a FIFA S/A, a
maior das corporações, já abocanhou seus lucros, assim como as
empreiteiras, os bancos, as empresas publicitárias, os empresários que
escalam jogadores no lugar de técnicos, já contabilizam seus lucros. Se
vai ter jogo ou não é um detalhe.
Mas esta
montanha de valor de troca tem que encontrar um valor de uso sob o qual
se agarrar. Assim como a abstração do espírito precisa do corpo, o exu
precisa do cavalo. Onze pessoas de cada lado e um apito do árbitro,
desperta o esporte e os garotos propaganda se esquecem, ou deveriam
esquecer, de seus contratos, das bugigangas que vendem, e a adrenalina
comanda os corpos no busca da bola, evitar o adversários, encontrar o
caminho da meta.
Cérebro,
nervos, músculos… uma coisa chamada ser humano, que já foi um sonho, que
já foi sacrifício, que foi entrega e dor, que quer ser conquista,
emerge dali de onde foi soterrado pela mercadoria. Um ser composto, uma
equipe, um time, se funde com milhares de pessoas que se desviam da
bola, tencionam seu músculo antes do chute no exato instante que o
jogador vai chutar a bola e em uníssono gritam, abraçam estranhos,
choram…
Marx em sua
monumental obra se refere a uma ciência que se chamaria “merceologia”,
que teria a tarefa de listar todas as formas possíveis de mercadoria.
Não sei se existe essa que descrevemos, não sei que valor de uso é esse
que consiste o ser do futebol. Posso apenas falar como viciado desta
substância. Ela leva um menino de seis ou sete anos a colecionar botões
com times de futebol para imitar o jogo sobre uma mesa. Em estágios mais
sérios de contágio, o moço passa a organizar campeonatos e a
registrá-los em livros. Grita, sozinho ou com amigos, em certames
disputadíssimos. Chega até a guardar os times de botão – inclusive as
caixas de fósforos encapadas com fita isolante, que serviam de goleiros
–, e os registros de anos de campeonato para tentar infectar seus
filhos.
Quanto mais amo o futebol, mais odeio o capitalismo.
A Copa deles
já ocorreu. Foi contra nós e eles venceram. Alguns desavisados ou mal
intencionados festejam. Mas está em curso uma vingança, uma rebelião.
Talvez várias. Uma nas ruas, onde exercemos o sagrado direito de não
sermos tratados como imbecis (alguns, é verdade, se orgulham em ser
imbecis e não foram às ruas – é um direito deles). Ela continua e espero
que um dia possamos vencer. Mas existe outra rebelião. Neste tempo em
que muita coisa anda despertando, acredito que podemos estar vendo o
despertar de um velho e tão maltratado conhecido: o futebol.
Você pode até tentar produzir futebol em série, futebol fordista, ou como disse em seu maravilhoso texto,
nosso querido Pasolini, o “futebol prosa”. Mas o “futebol poesia”,
resiste, surpreende, desperta. Monarquias futebolísticas (e infelizmente
algumas reais) eliminadas e zebras pastando alegremente.
Enquanto
alguns correm para abraçar o valor de troca, a forma fetichizada e
desumana, prefiro beijar a face do valor de uso que renasce. É a
rebelião do valor de uso… preparem-se, pode não ser só no futebol.
***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: Blog da Boitempo
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