PICICA: "Quando o desenvolvimentismo buscou
retomar o
futebol e, também, trazer a Copa do Mundo como forma de coroar a
hegemonia de
seu projeto, ele fracassou porque o espetáculo em si não é acessível o
suficiente
para ser uma "festa nacional": também porque os efeitos simbólicos
são menores pela maneira que o futebol é incomum para as pessoas hoje,
ou é
comum apenas do modo que um serviço pelo qual pagamos o é. Aí, a Copa se
torna um entrave. Uma frustração. Ainda mais quando a
"economia" parece esfriar, não correspondendo às nossas expectativas,
quando o sistema político parece não funcionar; diante do inexplicável,
do inquietante, surge um mantra que começa a se espalhar: a culpa é da
Copa.
É um sentimento de ausência que
explodiu em
condições específicas; a falta de boas escolas, bons hospitais ou os
altos
preços da moradia, do transporte e outros serviços não se devem a algo
que não
custou sequer 1% do PIB brasileiro de um ano; a exploração cotidiana do
capital, nem se
fala, certamente pesa mais do que isso. Mas a Copa se torna um elemento
subjetivamente magnetizador de angústias determinadas e indeterminadas,
muito
além do problema que ela representa objetivamente -- mas também pelo que
ela representa objetivamente. Some-se isso à maneira como
a militarização da segurança repercute junto ao imaginário das
vanguardas
políticas do país, traumatizadas com a ditadura, e temos uma tragédia.
Nem o
peso da camisa canarinho do outro lado, por si só, dá conta.
O que esperar da Copa que se inicia
amanhã? Podemos
dizer que já não teve Copa, pela fragilidade da mobilização em torno
dela,
podemos dizer que haverá Copa, pois o otimismo das pessoas cresce à
medida que
o torneio se aproxima, podemos dizer que houve Copa, embora tudo isso,
mas nada
disso importa: entre um niilismo conservador anti-Copa, aquele fundado
no argumento de que não seríamos
dignos de realizar o torneio ou porque teremos estádios no interior do
país, e
o ufanismo militar que garantirá a Copa nem que seja à bala, existe uma
coincidência no grau zero de intensidade. Há potência no #NãoVaiTerCopa
nas ocasiões em que ele é colocado como um chamado ao impossível --
antagonizando determinados desmandos."
(Não) Vai Ter Copa?
Maracanaço -- Final da Copa de 50 |
Ou Notas sobre a Economia Política da Copa
A
Copa do Mundo, normalmente, traz uma única grande
novidade a cada quatro anos: faz de todos os brasileiros torcedores de
futebol, unindo quem o é de verdade a quem resolve sê-lo apenas
quadrienalmente. Para os que desconhecem as sutilezas da regra do
impedimento, pelo menos o "dever patriótico" compensava o estranhamento
com festa. Desta
vez, no entanto, as coisas foram diferentes: a Copa deixou de ser
assunto esportivo -- e indiretamente
político -- para se tornar uma questão propriamente política, uma vez
que o
Brasil sediará a Copa 64 anos depois de ter abrigado o primeiro mundial
pós-guerra. E tome polêmica. O que era um largo apoio difuso em um
primeiro
momento, foi
se tornando pouco a pouco motivo de celeuma nacional. A Copa perdeu apoio, logo, quem fundava seus argumentos pró-Copa no fato de que a maioria desejava, perdeu o rumo. À direita e à esquerda,
ser contra o mundial se tornou bandeira, pelas mais variadas questões. Qual o enigma desse processo?
As Jornadas de Junho acabaram, no
calor da repressão, dando vazão ao #NãoVaiTerCopa. As opiniões, por fim,
se dividiram: num primeiro momento, 4 entre cada cinco brasileiros eram
favoráveis à Copa, depois eram dois terços, agora não se sabe mais. Um
misto de obras atrasadas, não terminadas ou simplesmente não
iniciadas, o catastrófico modelo de "segurança" do torneio -- regado
à militarização, drones, repressão contra manifestações etc -- e declarações
infelizes de figuras notórias do futebol nacional escolhidas se sucederam --
incluindo nomes como Pelé, Ronaldo ou mesmo a neta do ex-dirigente JoãoHavelange.
A Copa se tornou, pois, o que nunca
ninguém poderia
esperar: um problema. E um problema que transcende ao governo federal
que aí
está, mas perpassa inclusive todos o sistema político vigente: não só
porque
inclui a responsabilidade de prefeitos e governadores dos mais diversos
partidos, nem apenas em virtude da confusão político-partidária, mas,
sobretudo, em razão da contestação à Copa ter atingido a função política
e econômica do futebol no nosso país e, possivelmente, no mundo todo --
e a própria FIFA, antes intocável, entrou na mira. A esse
respeito, cabem algumas considerações.
O esporte coletivo é a grande
novidade da
modernidade. Ele supre uma certa função que a guerra pré-industrial
tinha: servir igualmente como diversão dos homens adultos. Com a guerra
se tornando
um processo de aniquilação total, ela, obviamente, perdeu sua utilidade
lúdica.
Isso abriu espaço para um novo espaço cultural, uma guerra representada
dentro
de regras mais ou menos pacíficas: o esporte coletivo, ao contrário do
individual, pressupõe um tipo de disputa territorial fundado na
integração de
vários corpos -- não no desempenho de um corpo individual em relação a
outrem --, algo
entre a representação, a realidade e a disputa real. Estar num campo ou
numa quadra
é menos real do que uma guerra, mas é mais real do que uma encenação
teatral.
Nesse contexto, o futebol prosperou pelo mundo.
Sobretudo porque sua dinâmica é aberta para vários biotipos diferentes. Altos,
baixos, asiáticos, africanos ou europeus, todos podem disputar uma partida de
futebol de alto rendimento. Num país de mestiços como o Brasil, o futebol só poderia
se expandir e se enraizar. Mas não vivemos mais o ápice do esporte bretão no
nosso país. Uma das causas é a transformação brutal das cidades, o
desaparecimento dos campos de várzea, ou mesmo profissionais, por conta da
superlotação e sobrevalorização das cidades -- e também das terras --, a
dinâmica de vida e trabalho de um brasileiro do século 21º não lhe permite mais
se dedicar ao futebol, a profissionalização do futebol e seu impacto sobre o mundo do futebol
amador etc etc. O futebol já não é algo tão presente na nossa vida como era, por
exemplo, em 1950: ele é agora espetáculo altamente profissional, restrito,
exclusivo e excludente.
O futebol, enquanto fenômeno de massas, deixa de
ser uma generalidade e passa a ser uma especificidade social e cultural do
brasileira. Uma especificidade importante, mas especificidade: aqueles para
quem o futebol é atividade comum são cada vez mais um número menor, mas
possivelmente sabem e consomem mais do que um brasileiro da era de ouro do nosso
futebol -- mas sabem mais informativamente, menos performativamente, pois é
cada vez mais incomum praticar o futebol e vivenciar o mundo do futebol. O
Brasil dos campos de várzea está para o Brasil que sedia a Copa-espetáculo como
a Europa da propriedade comum estava para a Europa industrial e pós-industrial.
O cercamento, meus caros, foi feito.
A partir daí, o futebol perde o aspecto comum que,
por outro lado, permitia que o Estado se utilizasse dele em tempos remotos. Em
1970, o futebol não era mercadoria, mas justamente isso, ser expressão cultural
e não elemento econômico-mercantil, é o que permitia o regime militar usa-lo
simbolicamente para legitimar-se e, por outro lado, organizar o trabalho: sim,
trabalhadores, precisam de válvulas de escape sociais para suportar sua vida --
então o futebol da era industrial era espetáculo e experiência que servia como
elemento político a serviço da manutenção do sistema econômico.
Com o neoliberalismo, a arte de governo própria do
capitalismo pós-industrial, o futebol se torna atividade propriamente
econômica -- tudo bem, nutrir a expectativa de ter dinheiro para
pagar o pay-per-view ainda
anima trabalhadores a trabalhar, mas o futebol agora serve à economia como
elemento econômico, ele faz parte do circuito.
Quando o desenvolvimentismo buscou
retomar o
futebol e, também, trazer a Copa do Mundo como forma de coroar a
hegemonia de
seu projeto, ele fracassou porque o espetáculo em si não é acessível o
suficiente
para ser uma "festa nacional": também porque os efeitos simbólicos
são menores pela maneira que o futebol é incomum para as pessoas hoje,
ou é
comum apenas do modo que um serviço pelo qual pagamos o é. Aí, a Copa se
torna um entrave. Uma frustração. Ainda mais quando a
"economia" parece esfriar, não correspondendo às nossas expectativas,
quando o sistema político parece não funcionar; diante do inexplicável,
do inquietante, surge um mantra que começa a se espalhar: a culpa é da
Copa.
É um sentimento de ausência que
explodiu em
condições específicas; a falta de boas escolas, bons hospitais ou os
altos
preços da moradia, do transporte e outros serviços não se devem a algo
que não
custou sequer 1% do PIB brasileiro de um ano; a exploração cotidiana do
capital, nem se
fala, certamente pesa mais do que isso. Mas a Copa se torna um elemento
subjetivamente magnetizador de angústias determinadas e indeterminadas,
muito
além do problema que ela representa objetivamente -- mas também pelo que
ela representa objetivamente. Some-se isso à maneira como
a militarização da segurança repercute junto ao imaginário das
vanguardas
políticas do país, traumatizadas com a ditadura, e temos uma tragédia.
Nem o
peso da camisa canarinho do outro lado, por si só, dá conta.
O que esperar da Copa que se inicia
amanhã? Podemos
dizer que já não teve Copa, pela fragilidade da mobilização em torno
dela,
podemos dizer que haverá Copa, pois o otimismo das pessoas cresce à
medida que
o torneio se aproxima, podemos dizer que houve Copa, embora tudo isso,
mas nada
disso importa: entre um niilismo conservador anti-Copa, aquele fundado
no argumento de que não seríamos
dignos de realizar o torneio ou porque teremos estádios no interior do
país, e
o ufanismo militar que garantirá a Copa nem que seja à bala, existe uma
coincidência no grau zero de intensidade. Há potência no #NãoVaiTerCopa
nas ocasiões em que ele é colocado como um chamado ao impossível --
antagonizando determinados desmandos.
Existe, é verdade, o esgotamento da captura
política do futebol como elemento de adestramento dos trabalhadores e das
pessoas em geral, seja pela força dos movimentos ligados à crítica da Copa ou
pela luta social travada apesar da realização do torneio -- e reprimida, ou
atendida, porque poderia resvalar no torneio. Há dois fatores preponderantes
aí: (1) a força da luta,
dentro do futebol -- como o Bom Senso F.C. e outras iniciativas --, fora dele -- ou nas novas formas de luta que
assumem movimentos tradicionais, e os novos movimentos, que não se intimidam com os acordos de Estado e os consensos; (2) O
esgotamento
do futebol à medida que ele foi capturado e, agora, se torna mais e
mais parte do próprio processo econômico capitalista, isto é, passa da
subsunção relativa à
subsunção total; se ele servia como elemento social-político-cultural
voltado à organização do trabalho,
o que lhe sustentará, uma vez que, em seu interior, existe agora uma
fricção entre capital e trabalho? E como o futebol cumprirá seu papel
cultural na organização do trabalho em geral?
Vejam bem, a segunda questão
corresponde a uma das rachaduras do neoliberalismo, isto é, o problema
que aparece com a transformação de elementos não-econômicos de
sustentação do sistema econômico em, também, peças do xadrez do mercado:
a escola, o
hospital, o esporte e assim por diante deixam de ser atividades meios,
atividades de sustentação para se tornarem fins. Uma vez que eles
deixam de ser
motores auxiliares da organização do mercado para serem organismos de
mercado,
passa, pois, a haver o problema da organização do trabalho no interior
do que
servia para organizar o trabalho em geral. Mesmo quando a escola e o
hospital
ainda estejam sob regime público, eles passam a se submeter à lógica
empresarial, o que impõe uma simetria da relação em seu interior e de si
com a
sociedade, semelhante às indústrias e comércios. O professor, mesmo da
escola
pública, devém proletário e o estudante e suas famílias, mero
consumidor, o que desencadeia um efeito dominó na medida em que o
capital profana províncias que não eram sequer econômicas.
Mas a luta radical que se levanta nesse estado de
emergência, por seu turno, é inimiga tanto desse neoliberalismo quanto, também,
de tentativas de retornar tudo às práticas do velho capitalismo -- inclusive no
que diz respeito à sua melhor forma de gestão, isto é, uma espécie de keynesianismo pós-industrial,
um
novo social-desenvolvimentismo. Ironicamente, é possível que o grande
legado da
Copa seja o arrefecimento da importância do futebol, em específico, como
elemento de conciliação de classes e domesticação do trabalho -- o que
poderá
projetar, por vias tortas, um futebol melhor na medida em que
expectativas
políticas (de Estado) e econômicas diminuem sobre ele. O mesmo vale para
os
espetáculos globais e quetais, o que implica numa crise num setor
importante da
cultura de massa global -- quantas cidades não estão, neste momento,
recusando sediar os Jogos Olímpicos e a própria Copa? O futebol (e o
esporte) mercadoria entra em crise e o futebol instrumento político do
sistema idem.
Crises em sistemas econômicos, ou pelo menos nas formas políticas que os sustentam, em geral se explicam pela maneira como eles não conseguem mais arregimentar o trabalho: isto é, tornar contingentes não-proletários em trabalhadores empregados (isto é, condicionados a criar sob sujeição relativa), mantê-los dessa forma, convencê-los de que vale a pena viver assim. Sem trabalho, pois, não há capital. A libertação do trabalho é a própria liberação da condição do trabalhador, do mesmo modo que é com a escravidão e os escravos -- o trabalhismo é tão absurdo quanto uma política de melhor tratamento dos escravos, caiando a senzala em vez de destruí-la. A queda da nossa própria ditadura se explica pelo exaurimento da capacidade daquele regime em mobilizar trabalhadores (cf. Cava, 2014).
Se há captura e uso político é, por outro lado, porque existe riqueza comum e real no futebol -- do mesmo modo que o nacionalismo se utiliza da expressão positiva das diferenças culturais para criar uma negatividade; portanto, mesmo na bandeira e no hino há uma dimensão positiva. Existe, pois, a necessidade de lutar dentro do futebol -- da mesma forma que Spinoza confrontava dentro da teologia -- pelo futebol, um futebol qualquer e livre de qualquer função utilitária -- eleitoral, política ou econômica: isto é, dissociar o futebol brasileiro da CBF, o Mundo do Futebol da FIFA, a democracia do Estado. Não é uma tarefa fácil. As esquerdas têm dificuldades históricas nisso, sempre colocando tudo no mesmo balaio, o que ora as faz abraçar tudo de forma ufanista, ora as leva a renegar o futebol como um todo por lhe julgar "alienante" (confundido a captura feita com a relação capturada).
É preciso defender o futebol, quem sabe defender o futebol brasileiro e lutar contra quem se aproveita dele. Haverá sim Copa, ela começa amanhã, mas o que não aconteceu, nem acontecerá, é a Copa nos termos que o poder desejava. Deu jogo. Se a FIFA, o Estado ou qualquer um outro poderoso ganhar ou perder, não será por W.O. -- nem sem ter levado gols.
P.S.: Por tradição, eu torço moderadamente pela Seleção. Não simpatizo muito com o time, embora reconheça que ele seja bom -- e, pelo fator campo, acaba se tornando um dos favoritos. Gosto de Holanda, Portugal, Argentina, Chile e Uruguai. Desgosto da Espanha e da Itália por motivos diversos. A Alemanha me é indiferente como a Inglaterra.
Crises em sistemas econômicos, ou pelo menos nas formas políticas que os sustentam, em geral se explicam pela maneira como eles não conseguem mais arregimentar o trabalho: isto é, tornar contingentes não-proletários em trabalhadores empregados (isto é, condicionados a criar sob sujeição relativa), mantê-los dessa forma, convencê-los de que vale a pena viver assim. Sem trabalho, pois, não há capital. A libertação do trabalho é a própria liberação da condição do trabalhador, do mesmo modo que é com a escravidão e os escravos -- o trabalhismo é tão absurdo quanto uma política de melhor tratamento dos escravos, caiando a senzala em vez de destruí-la. A queda da nossa própria ditadura se explica pelo exaurimento da capacidade daquele regime em mobilizar trabalhadores (cf. Cava, 2014).
Se há captura e uso político é, por outro lado, porque existe riqueza comum e real no futebol -- do mesmo modo que o nacionalismo se utiliza da expressão positiva das diferenças culturais para criar uma negatividade; portanto, mesmo na bandeira e no hino há uma dimensão positiva. Existe, pois, a necessidade de lutar dentro do futebol -- da mesma forma que Spinoza confrontava dentro da teologia -- pelo futebol, um futebol qualquer e livre de qualquer função utilitária -- eleitoral, política ou econômica: isto é, dissociar o futebol brasileiro da CBF, o Mundo do Futebol da FIFA, a democracia do Estado. Não é uma tarefa fácil. As esquerdas têm dificuldades históricas nisso, sempre colocando tudo no mesmo balaio, o que ora as faz abraçar tudo de forma ufanista, ora as leva a renegar o futebol como um todo por lhe julgar "alienante" (confundido a captura feita com a relação capturada).
É preciso defender o futebol, quem sabe defender o futebol brasileiro e lutar contra quem se aproveita dele. Haverá sim Copa, ela começa amanhã, mas o que não aconteceu, nem acontecerá, é a Copa nos termos que o poder desejava. Deu jogo. Se a FIFA, o Estado ou qualquer um outro poderoso ganhar ou perder, não será por W.O. -- nem sem ter levado gols.
P.S.: Por tradição, eu torço moderadamente pela Seleção. Não simpatizo muito com o time, embora reconheça que ele seja bom -- e, pelo fator campo, acaba se tornando um dos favoritos. Gosto de Holanda, Portugal, Argentina, Chile e Uruguai. Desgosto da Espanha e da Itália por motivos diversos. A Alemanha me é indiferente como a Inglaterra.
Fonte: O Descurvo
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