PICICA: "O artigo trata da digitalização das comunicações no Brasil e das
distintas concepções de democratização dos meios de comunicação que
vigoram no país. Busca descrever um breve histórico de desenvolvimento
do Sistema de TV Digital, preocupando-se com o atual debate sobre rádio
digital, e apresenta uma inovadora forma de gestão do espectro
radioelétrico: o espectro livre."
Espectro Livre: o Direito do Povo à Comunicação
O artigo trata da digitalização das comunicações no Brasil e das distintas concepções de democratização dos meios de comunicação que vigoram no país. Busca descrever um breve histórico de desenvolvimento do Sistema de TV Digital, preocupando-se com o atual debate sobre rádio digital, e apresenta uma inovadora forma de gestão do espectro radioelétrico: o espectro livre.
Palavras-chave: digitalização, democratização dos meios de comunicação, espectro livre.
Introdução: a Televisão Digital e Rádio Digital no Brasil
O Brasil, assim como boa parte do mundo industrializado, atravessa um momento único de revolução tecnológica, onde novos aparelhos vêm sendo disponibilizados para comunicação entre as pessoas, como telefones celulares que fotografam, filmam, recebem rádio fm, promovem acesso à Internet, etc., ao mesmo tempo em que são desenvolvidas as tecnologias de transmissão digital de televisão e de rádio. Ao falar em revolução, faz-se necessário algum cuidado, pois trata-se de tentar caracterizar uma mudança sem precedentes nas relações de comunicação social de um país onde tanto a televisão quanto o rádio desempenharam historicamente um papel fundamental de integração de fronteiras nacionais e criação de um mercado interno consumidor. De outro lado, parece difícil negar que há um novo regime de interação comunicacional que não parte de um centro emissor para uma massa passiva de receptores, o que torna os fluxos de dados mais horizontais e alimenta a chegada de uma era que alguns entendem como “pós-midiática”. Mas afinal, que transformação social o digital está de fato causando, e que potencialidades ainda permanecem inexploradas, ou evitadas, em um contexto onde se combinam novas e velhas formas de controle sobre os meios de comunicação?
Este artigo, como sugere seu título, interessa-se em apresentar o direito à comunicação à luz das possibilidades trazidas com a digitalização dos meios de comunicação. Se os telefones celulares certamente pertencem a este cenário, não serão tomados aqui como objeto de reflexão mais detida, resumindo-se uma possível contribuição no seguinte comentário: mesmo enfrentando uma situação mercadológica que favorece a fabricação em grande escala para adesão de mercados maiores, hoje é factível a construção de redes autônomas de telefonia celular de baixo custo. Porém, antes de acrescentarmos as novas tecnologias portáteis e convergentes de comunicação à realidade social contemporânea, voltemo-nos aos veículos tradicionais de entretenimento das massas, que marcaram o lugar dos meios de comunicação na vida da sociedade do trabalho do século XX.
A chegada da televisão digital, como se poderia esperar, não esteve imune ao histórico de controle de poucas famílias sobre os meios de comunicação no Brasil. Mesmo tendo sido objeto de um decreto presidencial que instituiu o Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), que culminou na maior mobilização de pesquisa da academia brasileira desde o projeto Genoma, os resultados de tamanho investimento estão apenas parcamente implementados. Passados sete anos desde o começo das transmissões digitais de televisão nas principais capitais, a população não apenas não comprou os equipamentos digitais no ritmo desejado pelas emissoras, como tampouco sinaliza qualquer interesse em aderir ao novo sistema, fazendo com que as empresas de comunicação pressionem o governo a estimular a migração com medidas apelidadas de “bolsa novela”1. Um tal fracasso poderia ser surpreendente não tivesse sido previsto e publicado nos relatórios do CPqD, a empresa responsável por coordenar as pesquisas sobre televisão digital, que alertavam sobre os distintos modelos que valorizavam a transmissão em alta-definição, que ocupa todo o espaço atualmente disponível para cada canal de TV e exige troca de televisor para ser plenamente aproveitado, e outro, onde, otimizando o uso do espectro, mais canais se tornam disponíveis e funcionam com um decodificador acessível economicamente à população. Neste outro modelo, com mais canais, mais programação, novos serviços, pode-se inclusive explorar o espaço aberto no espectro para se realizar a chamada interatividade intra-banda, utilizando-se de uma pequena faixa como canal de retorno, ou seja, viabilizando a comunicação em duas vias entre emissores e receptores.
A escolha por um modelo que não otimiza o uso do espectro, ainda que tomado como princípio no decreto que criou o SBTVD, pode ser mais bem compreendida nos seguintes termos: a alta-definição provê “melhoria da qualidade de imagem”, ou seja, tem a capacidade de transmitir mais dados de uma vez, exigindo a compra não apenas do aparelho conversor digital, o set-top-box, mas também de novos televisores que suportem a quantidade de linhas e pixels transmitidos. A passagem para a alta-definição não é, contudo, automática, e foi resultado de uma escolha – nomeada aqui de sócio-técnica – que definiu como sistema digital um tipo de evolução técnica análoga ao que foi a mudança do preto e branco para o colorido. Mantidos os mesmos conteúdos e emissores, que demanda social de democratização dos meios poderia ser feita? E para aqueles que não podem comprar televisores mais caros, e usufruir do novo sistema, o atual Ministro da Comunicações, Paulo Bernardo, do Partido dos Trabalhadores, assim resume a função da TV digital: “Vamos acabar com a era do bombril na antena. A TV vai pegar melhor”.
Porém, a televisão digital não é necessariamente a evolução do colorido para o super-colorido, já que se trata mesmo de uma nova plataforma de comunicação com potencialidades inviáveis no regime analógico: a multiprogramação, oferecendo mais conteúdos em um mesmo canal; mais canais, pois o digital ocupa menos espaço no espectro radioelétrico e não necessita de banda de segurança, ou seja, dos espaços antes necessários entre os canais para evitar possíveis interferências; novos serviços, valendo-se de pequenos espaços no espectro para circulação de dados, como informações complementares, áudios, vídeos em baixa-resolução, pesquisas…; e interatividade, permitindo a comunicação em duas vias não apenas entre grandes emissores e a massa de receptores, mas também entre as pontas, ou seja, sendo possível aos decodificadores do sinal digital transmitirem para seus pares, algo similar à lógica de compartilhamento das chamadas redes “mesh”.
Estranhamente, mesmo considerando o fracasso na implementação da televisão digital no país e a inexistência da otimização do uso do espectro, da multiprogramação, de novos serviços, de interatividade, etc., a digitalização da televisão e do rádio não tem sido objeto de ação política mais contundente de praticamente nenhum grupo empenhado na democratização das comunicações no país. As televisões comunitárias continuam sendo assistidas via cabo, não há novos canais disponíveis com a disponibilização de espaço, e a cadeia produtiva da televisão digital definitivamente não incorporou novos atores inerentes às novas funções possíveis de equipamentos necessários, que geraram um mercado de novos receptores. Tudo se passa como se o mais importante fosse a emissão centralizada – e portanto mais fácil de controlar – que por sua vez deve parecer feita com a melhor “qualidade” possível, forjando um sistema de radiodifusão dependente de equipamentos de alto-custo. Entretanto, é difícil ignorar que a produção independente e experimental vem ganhando terreno e reconhecimento internacional, além de se apresentar como uma produção adequada ao cumprimento de princípios constitucionais de valorização da produção regional, com função educativa, artística, cultural… Tal como existe até hoje, a televisão digital se configura como um sistema oligopolizado, de caráter estritamente comercial, produzido e transmitido nacionalmente desde os dois pólos econômicos mais importantes, que nada mais fez que atualizar a versão colorida da televisão analógica, passando a super-colorida.
A pesquisa sobre televisão digital, e a decisão sobre as tecnologias disponíveis, que levaram ao atual desenho do SBTVD, ocorreram antes do debate sobre os padrões digitais de rádio. Levando em consideração o baixíssimo interesse da população em aderir à TV digital, e o sistemático desrespeito aos princípios que balizariam o desenvolvimento de nosso sistema, parece-nos evidente que o caminho a ser tomado para escolha do padrão de rádio deveria ser outro, diferente do percorrido pela TV. Se, de fato, há grupos organizados em torno da defesa da democratização dos meios de comunicação, por que não há debate público sobre um tema tão diretamente ligado a esta luta? Não seria a digitalização do rádio e da televisão, com a consequente otimização do uso espectro, com abertura para multiprogramação e novos serviços, com acesso a equipamentos de baixa potência, que envolveriam custos menores e amplo acesso cidadão à produção e distribuição de conteúdo, o caminho para uma real democratização dos meios de comunicação? Que razões, afinal, poderiam ser aventadas para especular sobre este quase silêncio em torno de uma decisão de interesse público, que deveria mobilizar os mais variados setores da sociedade civil a pressionarem por um sistema que partisse e atendesse à vontade popular?
A escolha do padrão de rádio digital já se arrasta há alguns anos. Oficialmente, teve início com uma portaria presidencial que, a exemplo da TV digital, repetiu os termos de inclusão social, otimização do espectro, respeito à diversidade, etc. Durante a promulgação da portaria, estava à frente do Ministério das Comunicações o sr. Hélio Costa, ex-funcionário da maior empresa de comunicação do Brasil, a Rede Globo. Em telegrama vazado pelo projeto WikiLeaks, Hélio Costa se comprometia a defender o padrão norte-americano de rádio digital como “prêmio de consolação” aos parceiros comerciais dos EUA, já que o sistema adotado para TV tinha como base a tecnologia japonesa. Entretanto, a tecnologia de rádio digital norte-americana é notadamente muito ruim, praticamente isolada em seu país de origem, indisponível para Ondas Curtas, funciona mal na faixa AM, sem capacidade de otimizar o espectro, já que está voltada para transmissões de alta-definição e possui um codec de áudio proprietário, ou seja, é um “segredo industrial”. A despeito de sua qualidade técnica inferior, o padrão HD Rádio, de propriedade de uma única empresa, a Ibiquity norte-americana, é o preferido das atuais empresas de radiodifusão para ser o padrão brasileiro de rádio digital. Vários outros padrões estão em funcionamento no mundo, em condições muito mais favoráveis ao desenvolvimento do sistema brasileiro de rádio digital, tendo sido escolhido para testes o padrão DRM, ou o Rádio Digital Mundial. Diferentemente de seu concorrente, de vocação comercial, o DRM foi criado a partir da iniciativa de rádios públicas e educativas de vários continentes, é desenvolvido desde um consórcio com dezenas de integrantes de vários países2, e se configura como um padrão aberto de rádio digital, ou seja, facilmente adaptável às distintas realidades dos países que o adotam. Índia e Rússia já escolheram o DRM como padrão, e rádios de várias partes estão investindo no desenvolvimento e compra de equipamentos que, de maneira bastante flexível, atendem a todas as faixas de frequência e alcance territorial: em Ondas Curtas, a Índia irá transmitir com alguns transmissores recém-comprados dados para um território intercontinental.
Há outras diferenças marcantes entre os dois padrões, como a relação entre consumo de energia e alcance de sinal, a possibilidade de desenvolvimento de novos serviços, e, especialmente no caso do DRM, a possibilidade de intereroperatividade com a TV Digital, dado que o codec de áudio do DRM é o AAC, o mesmo em funcionamento na TV Digital brasileira. Todas estas informações são públicas e não requerem mais que algum investimento de pesquisa em palavras-chave na Internet. Porém, se podemos compreender o interesse de empresários em evitar a perda de audiência que a multiplicação exponencial de emissores pode proporcionar com a escolha de um sistema de rádio digital de acesso popular, por que, entre os pretensos defensores da democratização da comunicação paira ainda um constrangedor silêncio a respeito desta decisão? O que, de fato, está faltando para um posicionamento claro sobre a decisão do padrão de rádio digital que vigorará nas próximas décadas: conhecimento ou vontade política (ou ambos)?
No momento em que este artigo foi escrito o padrão de rádio digital ainda não havia sido definido. Mesmo assumindo as enormes vantagens que o DRM apresenta sobre seu concorrente, o atual funcionamento da televisão digital no país deixa muitas dúvidas sobre em que termos se desenvolverá esta nova tecnologia, e sobre se as potencialidades, que lhe são inerentes, serão de fato implementadas. A julgar pela omissão dos grupos que se auto-denominam em defesa da democratização da comunicação, e o descompromisso do governo e legislativo em promover políticas públicas e leis que assegurem o cumprimento das funções sociais previstas para os novos sistemas digitais de comunicação, resta pouca esperança sobre as mudanças necessárias para uma democratização do rádio. E esta dificuldade reside, sobretudo, não apenas na inoperância deste ou daquele grupo, mas, mais profundamente, deve-se a um equívoco político, e também teórico, que permite confundir conceitos básicos dos regimes democráticos, que passo a tentar discernir: a diferença entre Liberdade de Imprensa e Liberdade de Expressão; a diferença entre Pluralidade e Diversidade; e a diferença entre Público-Estatal e Público Não-Estatal.
Liberdade de Expressão e Liberdade de Imprensa
A Constituição Brasileira de 1988 garante em seu art 5 a Liberdade de Expressão. O artigo se inspira na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu artigo XIX, também visa assegurar a livre manifestação do pensamento, por quaisquer meios, independentemente de fronteiras ou prévia autorização. Este direito é voltado para o cidadão comum, para toda e qualquer pessoa, e deve ser entendido como princípio fundante do bom funcionamento da democracia. Em suma, é o direito que temos para discordar, de publicizar a nossa opinião, o nosso contra-ponto.
Quando os Direitos Humanos explicitam em seu texto o direito à livre expressão “por quaisquer meios”, está-se tratando de rádio e televisão. Basta lembrar a importância que o rádio obteve na comunicação entre exércitos na 2a Guerra Mundial, o que tornou o controle sobre o espectro radioelétrico uma necessidade estratégica dos estados nacionais. Concebendo os meios como extensões da capacidade humana, falar ao microfone de uma rádio ou à frente de uma câmera que se conecta a um transmissor de televisão não significa necessariamente prover um serviço de comunicação; antes, demonstra a vontade e a possibilidade que temos em utilizar as tecnologias para o desenvolvimento da comunicação pública, de interesse público. Se houve um dia a preocupação do Estado em proteger a sociedade do caos radiofônico, justificando o tratamento do espaço de transmissão como bem escasso e de acesso controlado, a realidade do digital impõe uma nova concepção: não apenas o digital multiplica a possibilidade de canais e programas transmitidos, mas também oferece tecnologias que mapeiam o espectro e selecionam as faixas livres para transmissão digital. Se já nos soava absurda a ideia de uma capital federal controlar a alocação dos espaços regionais e municipais de transmissão, agora, podemos dizê-lo, ela se tornou apenas obsoleta.
Com o predomínio da comunicação de vocação mercantil, onde os serviços educativos e públicos de comunicação têm pouca ou nenhuma presença no espectro local, as empresas de comunicação se especializaram em promover um tipo curioso de trocadilho: qualquer tentativa de moderação social sobre os conteúdos transmitidos é nomeada violação à liberdade de expressão. Na verdade, estão-se misturando diferentes parágrafos da Constituição, e confundindo conceitos cujas funções são totalmente distintas.
Com a digitalização dos meios de comunicação, e a emergência das novas tecnologias, tanto a liberdade de imprensa quanto a liberdade de expressão tiveram suas condições de existência modificadas: a Internet provê muito mais notícias, e sob demanda, sem que qualquer papel do mundo seja capaz de imprimir, qualquer locutor narrar, ou âncora de jornal televisivo comentar o volume de notícias hoje disponível…; e, descentralizados, os meios convergentes e portáteis participam de uma explosão expressiva sem precedentes, impulsionando um fluxo de dados muito mais veloz e incontrolável que os meios analógicos. Como, então, se sustenta o poder das empresas que eram responsáveis por fomentar e informar o debate público do século analógico? E como, a despeito de tantas novas possibilidades, este poder continua extremamente forte, impedindo o avanço sócio-técnico que superaria as limitações que assolavam a democratização dos meios de comunicação no passado? Entre algumas respostas possíveis, arriscamos: ajudando a se convencionar como valor compartilhado uma relação de submissão aos ditames da chamada Sociedade da Informação.
A ideia de que a informação é um pacote de significados que vai de uma lado para o outro não é nova. Tomando esta ideia mais seriamente, é este o mecanismo de funcionamento da grande mídia, capaz de repetir uma “informação” tantas vezes quantas sejam necessárias para que se torne uma “verdade”. A noção de informação assim descrita carrega a perversidade de instituir uma sociedade onde se vive em função do que não se sabe: se você não está bem informado, é porque não teve acesso à fonte mais qualificada de “informação”. Eis a falsa ideia de conhecimento, transformada em estética, como resultado do acúmulo de informação, autorizado pelo acúmulo de investimento. Uma ideia de progresso que advém de uma alienação técnica que confunde o gesto do corpo com uma ferramenta e a percepção de todos os sentidos sobre cada instrumento, como se isto fosse uma mesma e única coisa. Esvaziando as pessoas do papel de darem sentido às próprias vidas, a mídia as separa de sua própria experiência, regando este processo mágico de muitas cores, vozes anasaladas, especialização e muito profissionalismo. Refém daquilo que não sabe, cabe ao cidadão, ao povo, para ser bem informado, esperar por uma notícia imparcial, que contemple os diferentes lados que se puderam recolher do fato, da notícia que tanto acomete e interessa à realidade cotidiana de todos. A Liberdade de Expressão é, no máximo, a resposta mal-criada à afirmação mal feita que a Liberdade de Imprensa publicou; a carta dos leitores em um canto de página de um jornal; ou a leitura desinteressada de um apresentador que foi obrigado, por lei, a transmitir o direito de resposta sobre uma matéria tendenciosa ou inverdadeira…
Evitemos os exageros, dirão alguns. Hoje, diferentemente dos períodos autoritários, temos a possibilidade de nos expressarmos como nunca antes! A população passa crescentemente a ter acesso à Internet e aos serviços gratuitos de publicação de blogs, fotos, vídeos… a concorrência entre os meios tradicionais e os novos é evidente, e dentro em pouco não se sabe se teremos a necessidade de especialistas em notícia, ou se tudo estará narrado, registrado e acessível em nossas redes sociais diretamente por quem viveu e presenciou a notícia. Talvez o capitalismo mesmo tenha fornecido as ferramentas necessárias para uma revolução nas relações de produção da mídia. Mas ainda assim, outros dois conceitos continuam organizando e confundindo igualmente a construção destas transformações no campo comunicativo: a ideia de pluralidade e a de diversidade.
Pluralidade e Diversidade na Comunicação Social
Em geral, pluralidade e diversidade são tratados como sinônimos. Podemos encontrá-las, por vezes, em uma mesma frase, como se diversidade significasse uma pluralidade mais plural ainda. Se a primeira poderia servir como argumento para combater ao monopólio das comunicações, a segunda talvez se refira diretamente à expressão social, sempre múltipla. As duas palavras carregam, no entanto, dois sentidos a meu ver quase opostos em termos conceituais, e, especialmente para a comunicação social, serão reportadas às expressões tratadas de “liberdade de imprensa” e “liberdade de expressão”.
Entende-se por uma mídia plural aquela que não veicula conteúdos oriundos ou voltados a um público exclusivo. Esta definição, bastante precária, serve-nos para tentar diferenciar, por exemplo, programas de televisão evangélicos de jornais televisivos, onde os primeiros têm a função de realizar proselitismo religioso para um grupo específico de audiência, enquanto os segundos pretendem atender ao interesse público de toda a população. Poderíamos questionar se os editoriais ou comentários dos apresentadores não seriam uma forma de subverter esta função pública, ao transmitirem uma opinião política sobre assuntos de interesse público, mas limitaremos nosso problema às noções que queremos distinguir, de pluralidade e diversidade.
A pluralidade, então, significa a necessidade de se tentar não excluir dos meios de comunicação a visão, opinião, e posicionamento de determinados grupos sociais. Resumidamente, trata-se de assumir o campo da comunicação como um espaço limitado, de acesso controlado, e, com isso, entender como democracia a abrangência, a maior possível, como meta de representação sobre os conteúdo que atendem às audiências. Ou seja, em uma sociedade onde proliferam as lutas das minorias por reconhecimento de seus direitos, uma mídia plural poderia significar tanto a preocupação em levantar distintas versões sobre um mesmo evento jornalístico, quanto veicular conteúdos que contemplassem os grupos detentores de diferentes ritos religiosos, preferências sexuais, práticas alimentares, distintas ideologias, etc. Se parece fácil identificar que a pluralidade é uma emanação real e uma demanda de reconhecimento dos agrupamentos sociais os mais distintos, a pergunta sobre a pluralidade não é capaz de responder até onde ela vai, ou melhor, toma por princípio, na verdade, o fim da diversidade.
Assim, enquanto a pluralidade se incumbe em reunir sobre uma identidade comum, para fins de representação, grupos antes não tão coesos, a diversidade é a possibilidade de expressão da diferença em uma forma não conhecida, ou seja, ela é a própria possibilidade de diferença. Se a democracia direta se caracteriza pela possibilidade do contra-ponto, que assume a diferença como valor para seguir adiante, a pluralidade é o valor que respeita os grupos constituídos, o passado. Não se trata, então, de sobrepor um conceito sobre o outro, julgando um melhor ou pior, mas de colocá-los em seus lugares, pois que se fundam e têm função distintas.
A comunicação social, tal como organizada até hoje, não permite a diversidade, e tem como meta a pluralidade. Duas ou três opiniões são selecionadas por intermediários para fomentar o debate público, como se fossem suficientes as informações fornecidas pelos representantes eleitos para darem sua opinião. Assim também se poderia dizer sobre o sistema da democracia representativa: a lógica que alimenta a diminuição dos partidos políticos vai na contra-mão da diversidade, e quer parecer suficiente sob alguma pluralidade, pois tão mais bem representados estarão os grupos sociais quanto mais amplo for o espectro de escolha dos partidos. Se a pluralidade é a representação possível de alcançar seu lugar de expressão na imprensa livre, a diversidade é a livre expressão não-representativa, que só possui seu lugar nos meios quando realizada de forma direta e irrestrita.
Regulamentação da Constituição e Espectro Livre: o público não-estatal
O debate sobre a democratização das comunicações teve renovado fôlego no Brasil com a recente publicação da “ley de medios”, na Argentina. Interpretando sua constituição, o governo promoveu a divisão do espectro radioelétrico em três, propôs medidas de desconcentração dos meios de comunicação e prometeu impulsionar a comunicação comunitária. Na realidade, entretanto, a “ley de medios” argentina já completou quatro anos e não vem sendo aplicada devido aos processos judiciais que, apelação após apelação, impedem a execução das medidas de devolução das concessões cedidas a um único grupo de empresários de mídia, o conhecido Clarín. De outro lado, tampouco a divisão do espectro vem garantindo o acesso das mídias comunitárias à legalidade, pois que têm de se submeter a processos burocráticos e dispendiosos de seleção que em nada contribuíram de fato para a democratização dos meios. Isto sem falar do digital, já que a discussão pública sobre o sistema de televisão e rádio digital inexiste em nosso vizinho, que adotou o mesmo sistema de TV que o nosso, mas não promoveu qualquer política voltada para acesso da população a esta nova plataforma de comunicação. Em suma, nada parece justificar tamanha euforia em torno da “ley de medios”, e, tomada como inspiração, permanece ainda como promessa.
A Constituição Brasileira, por sua vez, é clara, em seu capítulo dedicado à Comunicação: “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Se somarmos os parágrafos que estabelecem, sobre os conteúdos veiculados (I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;), teremos então um conjunto de elementos para desenharmos uma regulamentação que atenda às cláusulas pétreas, sem as quais nenhuma lei tem valor.
Historicamente o espectro radioelétrico foi definido como finito e escasso, e esta característica justificou o controle estatal do espectro nacional para evitar o solipsismo: todos emitiriam e ninguém se entenderia. Porém, a realidade do digital é outra, e favorece a multiplicação dos pólos emissores sem risco de interferência, além de contar com tecnologias inteligentes, que, além de otimizarem o uso do espectro, localizam as frequências disponíveis para transmissão.
A Constituição prevê que “[a] publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade”, e a demanda sobre espaço para radiodifusão pode enfim ser atendida com a escolha de padrões e desenvolvimento de sistemas de transmissão digital que otimizem o uso do espectro e disponibilizem a multiprogramação nos canais, tornando a mídia muito mais plural, regional, educativa e informativa… O que é preciso para que o Estado, representantes do povo e dos segmentos de comunicação façam valer os direitos fundamentais que autorizam o reconhecimento de uma Democracia que zela pelo cumprimento de sua Carta Magna?
Mais profundamente, preocupa o fato de que boa parte dos atores engajados na democratização das comunicações não pareça tão empenhada em sua execução quanto em sua defesa… Além dos cargos e relações estabelecidas com os poderes instituídos, trata-se de enfrentar um imaginário coletivo, de um campo constituído historicamente, que se atribui a missão de não só realizar a democratização, mas quer também, por vezes, liderar o processo educativo das massas, combater as ideologias dominantes, propagar os valores contra-hegemônicos necessários para enfrentar o dano causado por décadas de monopólio midiático. Assim colocada, esta casta de representantes pode não ser a melhor aliada da democratização, configurando-se, ela mesma, em um obstáculo à sua plena realização.
Buscando contribuir na construção de outros imaginários sobre a gestão do espectro e sobre a democratização das comunicações, sugerimos como direito fundamental o livre acesso de qualquer pessoa ao espectro radioelétrico. O uso liberado de espaços sem licenças ainda é inédito no Brasil, mas já funciona em outros países, como nos EUA. Ainda que voltado para impulsionar o desenvolvimento de aplicativos de celulares e serviços sem fio, apresenta um cenário similar ao que vislumbramos para as tecnologias digitais de televisão e rádio digital. Em documento de fevereiro de 2013, afirmam:
“Em vários casos, as novas e inovadoras tecnologias têm proporcionado os meios para expandir a utilização do espectro não licenciado. Por exemplo, como resultado dos procedimentos de espaços em branco, permitiram-se operar canais de TV sem uma licença específica, proporcionando acesso ao espectro por meio de um banco de dados e o uso de tecnologias de rádio cognitivo. A perspectiva de uso de tais tecnologias avançadas também serviu como base potencial para o compartilhamento de outras partes do espectro, incluindo o espectro utilizado pelo governo federal. Embora isto possua potenciais benefícios óbvios para um maior acesso ao espectro nos Estados Unidos, é provável que outras partes do mundo venham a considerar abordagens semelhantes para facilitar o crescimento e a inovação em dispositivos sem licença”3.
Uma utilização do espectro que vise respeitar a complementaridade dos serviços público, comercial e estatal de comunicação não deve, como tentamos argumentar, se limitar a prover mais conteúdos, ou a atender às demandas de transmissão deste ou daquele grupo que, ainda que mais numerosos e representativos, jamais darão conta da diversidade existente na sociedade. Mais que isso, o uso democrático do espectro sugere, no contexto digital, a possibilidade de criação de inovação de maneira independente e distribuída, e, portanto, muito mais eficiente. Ao pensarmos no direito à comunicação do povo, há que se desfazer de dois preconceitos que vêm impedindo o desenvolvimento tanto social quanto econômico de nosso país: o primeiro que considera a especialização (e o monopólio) como melhor caminho para o desenvolvimento técnico; e o segundo que trata a massa como deficitária de conhecimento, sendo incapaz de gerir por si mesma (e para si mesma) os meios de comunicação. Se ao primeiro preconceito o regime de inovação da maior economia do mundo parece dar as primeiras respostas, cabe ao segundo uma tomada de decisão política, sobretudo dos militantes de esquerda, para que se retirem do lugar de vanguarda e liderança sobre as massas, e permitam o avanço de um processo de democratização que de fato garanta o direito do povo a se comunicar, sem prévia autorização.
Se outrora o interesse público era confundido com algum tipo de serviço que poderia ser provido pelo Estado, hoje faz-se necessário separar este agente das possibilidades que a sociedade civil tem ela mesma em promover seu próprio interesse. Apenas se libertando do papel de audiência passiva de uma imprensa pretensamente livre, e tomando para si os meios de produção, difusão e recepção de comunicação é possível pensarmos em uma efetiva democratização dos meios. E apenas com o espectro livre poderemos falar em uma democracia onde está garantida, de fato, a liberdade de expressão.
*Doutorando em Antropologia Social (UnB) e Pesquisador em Telecomunicações.
1http://www1.folha.uol.com.br
2Ver lista completa em: http://www.drm.org Acesso em 10/05/2013.
3 Wireless Telecommunications Bureau Office of Engineering & Technology [2013]. “FCC International Spectrum White Paper”, p.9. Disponível em:http://www.fcc.gov Acesso em 10/05/2013.
Fonte: hipermedula.org
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