PICICA: "Três características centrais distinguem o MTST, na
vasta galáxia de movimentos que se enxergam como herdeiros das jornadas
de junho. A primeira é a ênfase no trabalho de base, consequência de uma avaliação particular sobre a conjuntura política do Brasil. Ao contrário de muitos, os sem-teto não julgam
que estejamos às vesperas de derrubar a ordem capitalista. Reconhecem a
importância dos protestos do último ano – mas também seus limites.
Grandes transformações, adverte Boulos, só são possíveis com
envolvimento ativo das maiorias. Não basta convencer pequenos grupos, os
“60 ou 70 mil mais mobilizados”. A fase, portanto, não é de
enfrentamentos abertos, mas de “acumular forças”."
A estratégia de Boulos e a hesitação de Dilma
Capazes de mobilizar multidões na Copa, sem-teto
não querem confronto com governo. Estão sendo empurrados para isso, em
novo sinal do impasse político brasileiro
Por Antonio Martins
Um golpe de sorte e alguma capacidade de enxergar
cenários. Graças a estes fatores, Guilherme Boulos – coordenador
nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) – abriu ontem
(5/6) a série de entrevistas em vídeo que Outras Palavras fará, em parceria com o Estúdio Fluxo, sobre temas nacionais e internacionais relevantes. O MTST
é a bola da vez, na grande onda de mobilizações sociais iniciada em
junho do ano passado. Na quarta-feira (4/6), mobilizou 25 mil pessoas,
pelo direito a moradia. Rodeou o “Itaquerão”, onde, em seis dias, começa
a Copa do Mundo.
Articula-se em todo o país. Em São Paulo, ocupou
enormes terrenos urbanos, antes entregues à especulação imobiliária.
Neles vivem (acampados em tendas), organizam-se
e se politizam cerca de 30 mil pessoas. O que Boulos expôs, na
entrevista a Bruno Torturra (do Fluxo) e a mim, é essencial para
compreender a potência atual do movimento. Também ajuda a compreender os
limites que o governo Dilma impôs a si próprio – e a necessidade de
rompê-los.
Três características centrais distinguem o MTST, na
vasta galáxia de movimentos que se enxergam como herdeiros das jornadas
de junho. A primeira é a ênfase no trabalho de base, consequência de uma avaliação particular sobre a conjuntura política do Brasil. Ao contrário de muitos, os sem-teto não julgam
que estejamos às vesperas de derrubar a ordem capitalista. Reconhecem a
importância dos protestos do último ano – mas também seus limites.
Grandes transformações, adverte Boulos, só são possíveis com
envolvimento ativo das maiorias. Não basta convencer pequenos grupos, os
“60 ou 70 mil mais mobilizados”. A fase, portanto, não é de
enfrentamentos abertos, mas de “acumular forças”.
Terminada a fase dos grandes protestos, em julho de
2013, as ruas esvaziaram-se. Alguns grupos tentaram compensar este vazio
radicalizando artificialmente as manifestações – o que as desgastou
junto a parcela crescente da população. Os sem-teto adotaram outra
tática. Preferiram voltar-se para as periferias. Lá, prossegue o líder
do movimento, deu-se algo que nem as classes médias, nem a mídia,
enxergaram. O desconforto provocado pela especulação imobiliária
converteu-se em desejo de agir. A vitória na redução da tarifa de ônibus
“funcionou como gatilho: sinalizou que a luta social poderia alcançar
conquistas”, diz Boulos.
“Não fomos nós que estimulamos as ocupações de
terrenos. Era a população que nos procurava”, prossegue ele. Criado há
quinze anos – em seu início, como uma espécie de “braço urbano” do MST
–, o MTST havia acumulado experiência para atender ao chamado. Ao invés
de se lançar a enfrentamentos egoicos com a polícia (e as vitrines de
bancos…), articulou desejos coletivos. O resultado apareceu rapidamente.
No final de novembro começava,
na Zona Sul de São Paulo, a Ocupação Nova Palestina. Reuniu 8 mil
famílias e tem mais 2 mil na lista de espera. São “trabalhadores em
busca de alternativa ao aluguel, que passou em poucos anos de R$ 300
para R$ 800, sem que o salário tenha subido de modo proporcional,
explica o líder dos sem-teto. Têm, nas ocupações, uma escola.
Organizam-se em Grupos de Trabalho, para cuidar da alimentação,
segurança e limpeza. Realizam assembleias periódicas. Debatem e agem.
Em 29 de abril, ocuparam a Câmara dos Vereadores, para exigir que o
Plano Diretor de São Paulo ampliasse a possibilidade de criar Zonas
Especiais de Interesse Social (ZEIS) para construção de moradias
populares.
A segunda característica distintiva do MTST é sua
postura diante do poder. Depois de junho, e a exemplo do que ocorre
entre movimentos como o Occupy e os Indignados espanhois, tornaram-se
frequentes, nas manifestações brasileiras, ataques genéricos contra o
Estado. Seriam todos os governantes iguais? Estaríamos num momento em
que é possível nos voltar contra eles em bloco?
O MTST tem uma visão diferente – e bastante
sofisticada. Boulos vê o Brasil num impasse. Durante dez anos, diz ele,
os governos Lula e Dilma ampliaram direitos sociais sem incomodar os
poderosos: “o bolo crescia, era possível aumentar a fatia de todos”. Nos
últimos anos, a receita desandou. Num cenário internacional mais
difícil – inclusive com desaceleração da China, hoje principal
importadora de produtos brasileiros –, a economia está estagnada. Seria
hora “da redistribuição efetiva de renda” e de “mudanças estruturais”,
como a Reforma Política e a Reforma Tributária. Dilma hesita, temerosa
de romper os laços do governo com setores do grande capital –
banqueiros, empreiteiras, indústria automobilística, por exemplo. A
ponto de o líder dos sem-teto ter dito, na entrevista, que não considera
de esquerda o atual governo.
Isso não o leva, porém, a igualar o PT aos partidos
que representam as velhas elites. Coerente com sua estratégia de
acumular forças, Boulos busca coroar a impressionante onda de
mobilizações dos sem-teto com uma vitória. Ainda que seja parcial, sabe
ele, esta conquista pode ter enorme efeito simbólico. Significará
interromper a maré de especulação imobiliária, segregação social e alta
opressiva dos preços, que marca as metrópoles brasileiras desde a virada
do século.
E aqui surge o terceiro traço particular deste
movimento que mantém acesa a chama das jornadas de junho. Ele não se
limita a criticar a Copa do Mundo, nem a fazer reivindicações genéricas e
intangíveis (“Se não tiver direitos, não vai ter Copa”). Formulou uma
pauta concreta de exigências. Ela é, ao mesmo tempo, viável e
transformadora. Por isso, coloca o governo Dilma não diante de uma
crítica retórica (ainda que estridente…), mas em face de um dilema real.
São três os pontos que o MTST persegue, para que o
governo sinalize que o legado da Copa não se limitará a um punhado de
obras e milhares de desalojados. Primeiro, um controle público dos
preços dos aluguéis urbanos. É algo que interessa tanto ao sem-teto
quanto à classe média. “Já houve no Brasil – frisa Boulos – inúmeras
leis de regulação das relações entre proprietários e inquilinos. A
primeira delas veio no início do século passado, em resposta à greve
geral de 1917, em São Paulo. A liberdade total para especular veio dos
governos neoliberais e foi mantida, até o momento, por Lula e Dilma.
Está na hora de revê-la, o que exige uma nova lei.
As duas reivindicações seguintes são o fim da atual
onda de despejos (o MTST quer instalar, na secretaria de Direitos
Humanos do governo federal, uma comissão que acompanhe as decisões
judiciais contra moradores, dê visibilidade a seu caráter muitas vezes
absurdo e permita abrir negociações) e uma mudança substancial no
programa Minha Casa, Minha Vida. Aqui, entram aspectos que a população
desconhece.
Em seu formato atual, explica Boulos, o programa é um
prêmio para as empreiteiras e o mercado imobiliário, muito mais que
para as populações sem casa. Foi concebido na esteira da crise
financeira de 2008, que ameaçava destroçar o setor de construção no
Brasil. Suas regras primitivas denunciam esta deformação.
A empresa que ergue um conjunto habitacional é
remunerada, pelo governo federal, por apartamento entregue – não
importando qualidade, tamanho ou localização. São R$ 79 mil por unidade,
a partir de 39 m². Não há estímulo algum para oferecer espaço mais
amplo (as famílias são muitas vezes numerosas) ou prédios próximos à
infra-estrutura do centro. Vigora a lei da selva. Quando mais barato o
terreno (portanto, mais distante e sem benfeitorias), e mais rude a
construção, maiores serão os lucros do empresário. Não por acaso, até os
grupos gigantescos que empreitam obras públicas – como Camargo Corrêa e
Oderbrecht – abriram um ramo no Minha Casa, Minha Vida.
O MTST quer um critério menos tosco. Por que não
estabelecer faixas de remuneração aos construtores, segundo a
localização do conjunto habitacional, tamanho e qualidade da obra?
Por que não quebrar o quase-monopólio das
construtoras, abrindo espaço para que os próprios movimentos sociais
construam as habitações? Um conjunto que os sem-teto erguem no momento,
na Grande S.Paulo, terá apartamentos de 65m² e três dormitórios. Porém,
pelas regras atuais, as construtoras privadas têm 66 vezes mais recursos federais, do Minha Casa, Minha Vida, que os movimentos por habitação.
Boulos reconhece: o governo federal não tem como
resolver, até a Copa, a questão dos alugueis. Pode fazer sinalização.
Por exemplo, anunciando uma Medida Provisória, ou Projeto de Lei. Mas em
relação aos despejos, e às mudanças no Minha Casa, Minha Vida, há
espaço. Que pesará mais, para Dilma? A possibilidade de abrir diálogo
com um movimento social emergente, cujas reivindicações expressam parte
do resgate da dívida social brasileira? Ou o compromisso com o círculo
de interesses que gira em torno de empreiteiras, políticos e lobbies?
Na manhã desta sexta-feira (6/6), o MTST anunciou que
suspendera a manifestação marcada para diante do Estádio do Morumbi
(São Paulo), onde o Brasil enfrenta, esta tarde, a Sérvia, no último
amistoso antes da Copa. É um voto de confiança no governo, com quem
seguem as negociações. Mas não uma desistência. A Copa começa em menos
de uma semana. Qual será a sinalização de Dilma? O projeto lulista
considera a hipótese de um passo adiante? Ou será necessário superá-lo, a
partir de longo trabalho de base, para vencer também o impasse em que o Brasil se meteu?
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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