PICICA: "Em meio a novas mobilizações,
filósofo sugere mirar Espanha e Grécia, combinar autonomia com presença
institucional e articular “política do comum”"
Negri: um caminho para reanimar as lutas europeias
Em meio a novas mobilizações,
filósofo sugere mirar Espanha e Grécia, combinar autonomia com presença
institucional e articular “política do comum”
Por Toni Negri e Sandro Mezzadra, EuroNomade | Tradução: Antonio Martins
Em uma de suas primeiras declarações após as eleições
para o Parlamento Europeu, François Hollande afimou que a Europa
tornou-se “ilegível”. Certamente não deve ter sido difícil, para ele,
“ler” o resultado de seu partido: a derrota dos socialistas franceses
foi clamorosa, assim como a dos socialistas espanhóis. Mas enquanto na
Espalha a continuidade e amadurecimento dos movimentos contra a
“austeridade” abriram espaço político para forças tradicionais de
esquerda (Esquerda Unida, em primeiro lugar) e para a novidade
significativa do Podemos, na França, como se sabe, as coisas caminharam de modo distinto.
A vitoria da Frente Nacional francesa, é, no fundo, o
espelho de uma dupla incapacidade. De um lado, a dos socialistas, para
gerir de modo expansivo uma crise que se torna a cada dia mais profunda,
ameaçando transformar a própria França no epicentro da crise europeia.
De outro, a dos movimentos sociais e da esquerda (Frente de Esquerda, em
particular), para aceitar até o fundo o terreno europeu como espaço
decisivo da luta. A França demonstra, antes de tudo, uma coisa: hoje, na
Europa, a dimensão nacional e “soberanista” (que toda a esquerda,
inclusive parte sifnificativa dos socialistas havia defendido, lutando
contra a Constituição Europeia, no referendo de 2005) é um terreno no
qual apenas a direita – um pouco mais ou um pouco menos abertamente
xenófoba e fascista – pode vencer.
Bem além das intenções de Hollande, em todo caso, uma
certa “ilegibilidade” caracteriza hoje, de fato, a Europa. No calor da
crise, já haviam se esgotado as formas pelas quais o o processo de
integração europeu era “lido” e levado adiante, nas décadas anteriores. A
formação progressiva de um corpo de Direito Europeu, capaz de
substituir a integração política faltante, foi interrompida bruscamente
pelos caminhos adotados para gerir a crise. O comando articulado em
torno da autonomia do Banco Central Europeu desvinculou-se não apenas da
“legitimidade” democrática mas também da máquina de produção de normas e
de governança da União Europeia. Agora, o voto francês, em
especial (e a dupla crise, econômica e política, da França) coloca em
xeque o eixo franco-alemão, sobre o qual a integração europeia
apoiava-se para construir suas próprias alquimias políticas e
geografias. Imaginar que a Itália possa, deste ponto de vista,
substituir a França, é francamente ridículo.
De modo geral, as eleições europeias, apesar da
fragmentação dos resultados, expressam uma clara rejeição à “europa
alemã” e à filosofia liberal da “austeridade”. Há tempo frisamos que as
próprias elites europeias percebem os limites da gestão da crise
realizada até agora: ela não define novos cenários de estabilização
capitalista. Porém, esta exigência pressupõe uma consolidação do quadro
político a nível continental, que não se produziu de maneira alguma. A
“grande coalizão” que se prenuncia no Parlamento Europeu parte do
enfraquecimento profundo dos partidos que a comporão, em particular
devido aos resultados que obtiveram nos paíes do Sul do continente – os
mais atingidos pela crise dos últimos anos.
A coalizão entre democratas-cristãos e
social-democratas, que assumiu o governo alemão, simplesmente relança um
modelo alemão já percebido, de modo difuso, como causa da crise – não
como solução possível. E o crescimento do Partido Democrático na Itália,
com seus efeitos na composição e correlação de forças internas ao
Partido Socialista Europeu, tenderá a obscurecer a identidade
“socialista”, tirando o espaço que seria necessário à dialética política
necessária para uma “inovação” não apenas retórica. Mesmo que ela se
produza apenas no plano de uma articulação distinta (e uma
estabilização) do comando capitalista.
A atração do socialismo europeu para o campo de
forças articulado pelos conservadores, a sua renúncia a se tornar
intérprete político tanto das reivindicações da classe operária
“tradicional” e dos “desclassados” pela crise quanto dos novos setores
emergentes na composição do trabalho, é um dado que emerge com clareza
da nova rodada eleitoral. Assim como adota atitude de mera gestão do que
existe, quanto está no governo, a social-democracia parece incapaz de
reinventar-se – mesmo quando na oposição. O crescimento da direita e das
forças “eurocéticas” (além do não-comparecimento às urnas) está
diretamente ligado a este eclipse da social-democracia. Ela já não
parece candidata a reconstruir um tecido de mediações sociais e
políticas, reclamado difusamente – repetimos – por uma parte consistente
das elites capitalistas europeias.
Não excluímos a hipótese de que tais elites possam
voltar-se à direita para construir as condições para uma saída da crise:
não seria a primiera vez em sua história, e a continuidade do processo
de integração europeia (sob perfil monetário, normativo, técnico ou de
infra-estruturas) não é por si mesmo incompatível com atitudes
identitárias ou “nazionalistas”. O certo é estariam reprimidas, sob
égide de uma política de medo e de uma valorização do autoritarismo
social, os espaços de liberdade e de luta pelo Comum, em toda a Europa. A
resistência e a revolta que uma “solução” deste tipo encontraria
certamente a tornam, no momento, pouco realista – mas ela permanece como
possibilidade de fundo.
Ainda que o horizonte europeu seja, em certa medida,
opaco e “ilegível”, é em seu interior que se definirão, nos próximos
anos, os termos do confilto político e social nesta parte do mundo. A
seu modo, sabem disso perfeitamente as próprias forças da direita
“anti-europeia”: é outro dado que as eleições europeias fornecem. O
capitalismo, consolidou, na crise dos últimos anos, sua natureza
“extrativa” – em primeiro lugar, por meio de um aprofundamento dos
processos de financerização. Ao mesmo tempo, e especialmente na Europa,
até os observadores mainstream que celebram a volta da
“estabilidade” nos mercados financeiros evidenciam o alargamento do
abismo entre as dinâmicas de tais mercados e a violença que persiste nas
consequências sociais da crise.
O desemprego que não baixa de dois dígitos em muitos
países europeus; a ampliação e intensificação da precariedade; o
disciplinamento de populações inteiras por meio da dívida; a represssão;
o ataque às condições dos imigrandes; os retrocessos conservadores
sobre temas cruciais como os direitos civis e a liberdade: é esta a
herança da “austeridade” na Europa. Enquanto isso, no plano mundial a
instabilidade e as turbulências provocadas pela cirse de hegemonia
norte-americana continuam a se intensificar. As guerras nos confins da
União Europeia (Ucrânia e Síria) são uma manifestação dramática do
fenômeno. A crise profunda de todas as formas de governabilidadede (e de
todas as tentativas de requalificação da democracia) ameaça, na Europa,
traduzir-se em condições de violência generalizada, ou de guerra civil
latente. Estes problemas, em todo caso, só poderão ser enfrentados na
Europa, dentro do espaço continental. Certamente, não o serão nos
espaços augustos dos Estados-Nações europeus!
Os limites da “austeridade” já o dissemos,
tornaram-se evidentes na Europa. A reabertura de uma dinâmica salarial
(o tema da elevação do salário mínimo foi assumido por parte da “Grande
Coalizão” que governa a Alemanha e, na Itália, com o bônus fiscal do
governo Renzi) demonstra o fenômeno. Há aqui uma oportunidade para as
lutas e movimentos europeus: denunciar a mistificação desta abertura só é
possível forçando seus limites, fazendo irromper na cena as novas
figuras da cooperação produtiva, multiplicando as reivindicações que
esgarçam os limites do “tralbalho” e agindo para que entrem em
convergência, no interior de um grande movimento pela reapropriação da
rizqueza social. O “sindicalismo social”, cuja discussão estimulamos no
interior da rede Eruronomade, precisa ter este significado de reconstrução das bases materiais para uma política de expansão do Comum.
Um novo desenho da luta de classes começa a tomar
forma. Projetá-la a nível europeu é o que pretendemos, quando falamos de
um movimento constituinte capaz de romper as barreiras nacionais sem,
por isso, perder o enraizamento no interior de conjunturas sociais e
políticas específicas.
Não sabemos se este movimento constituinte
encontrará, em nível europeu, as condições politicas para se consolidar –
e, portanto, para produzir uma nova qualificação da democracia e
introduzir elementos maduros de contrapoder em cada cenário de
estabilização e “saída” da crise. O que vemos é que, nos países em que
foi mais forte e contínuo o movimento de luta contra a “austeridade”,
este movimento conseguiu incidir também nos planos eleitoral e
institucional, introduzindo aí elementos significativos de contradição.
Embora em condições distintas, a afirmação do Podemos
na Espanha e a vitória do Syriza na Grécia expressam precisamente a
possibilidade de conjugar a consolidação de formas de auto-organização,
de luta e de contrapoder em nível social, com um uso inovador dos
dispositivos eleitorais e institucionais. Que fique claro: nem o
Podemos, nem o Syriza são para nós “modelos”. Não excluímos, é claro, a
hipótese de que, em um ou no outro caso, a oportunidade seja
desperdiçada, com a volta à ideia – empobrecedora – de “representação
dos movimentos”. Mas achamos oportuno sublinhar que a oportunidade se
apresenta; e que foi construída por lutas e movimentos.
Trata-se, nos próximos meses, de trabalhar antes de
tudo no interior destes movimentos e lutas, na perspectiva de que ganhem
potência, multipliquem-se, assumam uma convergência maior no terreno
europeu. Não faltarão ocasiões, no verão e outono [inverno e primavera
brasileiros]. Construir uma linguagem e um imaginário comuns dos
movimentos europeus significa conquistar os instrumentos necessários
para determinar uma nova “legibilidade” da Europa; para discernir, na
opacidade da transição em curso, a ocasião para uma política do comum.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário