PICICA: "As favelas criam continuamente novas formas de vida, mesmo no seio desse novo ciclo de acumulação do capitalismo globalizado – que é financeiro, mas também fundiário e cognitivo-criativo-cultural. E, nessa criação contínua, entram em conflito com as atuais transformações urbanas em direção aos megaeventos"
RIO+20 E A CIDADE |
Devir mundo da favela e devir favela do mundo |
As
favelas criam continuamente novas formas de vida, mesmo no seio desse
novo ciclo de acumulação do capitalismo globalizado – que é financeiro,
mas também fundiário e cognitivo-criativo-cultural. E, nessa criação
contínua, entram em conflito com as atuais transformações urbanas em
direção aos megaeventos
|
por Giuseppe Cocco, Alexandre Mendes, Barbara Szaniecki |
Com a aproximação da Copa e das Olimpíadas nos próximos anos e a atual realização da Rio+20, faz-se necessário pensar não apenas o conceito de cidade, como também perguntar: em que Rio de Janeiro desejamos morar e viver? Se existe uma característica urbana tipicamente carioca, esta é a favela: ela está presente tanto no imaginário do morador quanto na visão estrangeira da cidade. E é quase sempre lembrada apenas pelos aspectos negativos. Os tecnocratas a chamam de “assentamento subnormal” ou “área degradada”. A ONU adota uma concepção física e legal, definindo-a como “área superpovoada e com residências informais”. Seu correlato em inglês é slum, entendido como o local de residência de uma população pobre e viciada: uma verdadeira “patologia social”. Mesmo o meio acadêmico não escapa da percepção da “favelização” em suas dimensões negativas quando a percebe como segregação espacial que leva à fragmentação social, à violência civil e ao enfraquecimento da proteção social. Em Planeta Favela, Mike Davis prevê a expansão mundial e “perversa” das favelas, caracterizando-as como locais “mortais e inseguros”. Sua crítica adere à denominada “retórica da erradicação” presente em recente campanha da ONU denominada “cidades sem favelas”. Já no Brasil, os teóricos da “brasilianização” e, em particular, os teóricos da “favelização” do mundo choram a destruição do sonho de um futuro industrial, e possivelmente operário, ao mesmo tempo que denunciam as teorias pós-industrialistas das redes como um mero regime discursivo. Sem reconhecer as mudanças materiais nas dinâmicas de produção, essas abordagens se prendem a uma prática do urbanismo relacionada às formas industriais de trabalho que é totalmente apartada das dinâmicas sociais e culturais da metrópole. Uma parte considerável dos urbanistas progressistas brasileiros insiste em um planejamento estatal e fordista que poderia organizar e afastar o “caos” das cidades favelizadas. Mas a favela jamais foi moderna. A abolição tardia da escravidão, a persistência do latifúndio, a perseguição aos movimentos de reforma agrária e o êxodo rural em busca de uma vida melhor provocaram uma urbanização acelerada que a geração de empregos formais e em particular industriais nunca conseguiu acompanhar. A favela não nasce no horizonte da disciplina e do funcionalismo. Ela é fruto de relações violentas de poder sobre a vida: escravagismo ontem e, hoje, novas formas de biopoder no tráfico de drogas, na exploração e expropriação das grandes empresas e grupos de comunicação e, por fim, na tecnocracia do Estado obcecada pelo neodesenvolvimentismo. Mas ela também é um potente território de resistência: contra o trabalho assalariado, como no caso dos ambulantes, camelôs, autônomos e pequenos comerciantes; contra o hábitat disciplinar e (des)funcional dos conjuntos habitacionais propostos por programas governamentais (o Minha Casa, Minha Vida do governo federal, usado nas remoções cariocas); e contra a homogeneização cultural que deseja enclausurar a população em formas de entretenimento popular. As favelas criam continuamente novas formas de vida, mesmo no seio desse novo ciclo de acumulação do capitalismo globalizado – que é financeiro, mas também fundiário e cognitivo-criativo-cultural. E, nessa criação contínua, entram em conflito com as atuais transformações urbanas em direção aos megaeventos. Lutas biopolíticas Na comunidade Vila Autódromo, por exemplo, a faixa colocada em um pequeno campo de futebol, transformado em local para assembleias de moradores, diz: “Olimpíadas para todos, sem remoção!”. Ela expressa o repúdio da comunidade ao projeto de remoção de centenas de famílias pobres em função da realização dos Jogos Olímpicos. Os moradores acabam de lançar uma ampla campanha que inclui uma mobilização na Rio+20 e a apresentação de um projeto alternativo que demonstra a viabilidade de sua permanência. A primeira tentativa de remoção ocorreu em 1992, quando o município considerou “dano estético e ambiental”, em ação judicial requerendo a retirada total da comunidade. A Barra da Tijuca, então, despontava como nova centralidade para empreendimentos imobiliários, comerciais e esportivos, na qual os pobres não estavam incluídos. Era a favela-slum: um local feio e sujo que deveria ser erradicado dos novos espaços planejados por um futurista designurbano. Mas a favela resistiu. Os moradores conseguiram do poder público estadual, proprietário da terra, o reconhecimento legal de suas moradias. Contudo, em cinco anos o poder público apresentou cinco novos argumentos para forçar a retirada dos moradores. Alegou-se “risco” à segurança dos atletas e profissionais dos Jogos Olímpicos, que acontecerão em seus arredores. Tentou-se novamente o argumento ambiental, que foi afastado pela Justiça. Falou-se, primeiro, em construção de um centro de treinamento, depois, em construção do Parque Olímpico e, finalmente, na abertura de vias públicas atreladas aos corredores expressos em construção. O secretário municipal de Habitação, que se diz socialista e integra o Partido dos Trabalhadores, justifica as remoções invocando o “interesse da coletividade” e defende sua gestão, que agora teria enfim planejamento. Como um panfleto imobiliário, tenta convencer os moradores das qualidades de um conjunto habitacional com apartamentos de 40 metros quadrados e se enfurece quando eles preferem a “maldita favela”. Do outro lado da cidade, a remoção também é sofrida pelos moradores do Morro da Providência. Construída por soldados retornando de Canudos, é a favela mais antiga do Rio de Janeiro. Conta com uma vista fabulosa da Baía da Guanabara e uma situação privilegiada em razão da proximidade com o centro da cidade e com a zona portuária atualmente submetida a um processo de “revitalização” denominado “Porto Maravilha”. É lá, por exemplo, que serão construídos dois museus – Museu do Amanhã no Píer Mauá e Museu de Arte do Rio na Praça Mauá −, no intuito de consolidar a imagem do Rio como “cidade criativa”, num projeto de museificação da cultura que não se articula com as iniciativas culturais já existentes no local, de vital interesse para a comunidade. Também está prevista a construção de um teleférico de conexão entre o Morro e o dito waterfront. Com fins mais turísticos do que utilitários, o projeto implica a demolição de centenas de casas e a remoção de famílias, mas nem sequer foi apresentado à comunidade a tempo. Casas foram pichadas com a sigla SMH, da Secretaria Municipal de Habitação, seguida de um número sem comunicação prévia. Numa ação coletiva, fotografias dos moradores foram ampliadas e coladas nos muros das casas marcadas para lembrar o poder público que são vidas, e não muros que ele está destruindo. Assim como Vila Autódromo e Morro da Providência, muitas comunidades se encontram no caminho da Cidade Olímpica e lutaram ou ainda lutam: Arroio Pavuna, Favela do Metrô, Restinga, Vila Harmonia, Morro dos Prazeres e Estradinha, entre outras. Se para a prefeitura do Rio as favelas são locais degradados e sem condições de habitação, para os moradores elas são espaços de uma rica vivência: quadra de futebol, associação de moradores, igrejas, terreiros de candomblé, pequenos comércios, borracharias, bares, relações de amizade e vizinhança, brincadeiras de rua e um histórico de resistência contra a gentrificação da cidade. Para além da crítica distópica urbanista ou do higienismo empresarial e tecnocrata, essas lutas nos impõem a tarefa de pensar o mundo a partir da favela e a favela a partir do mundo.
Giuseppe Cocco é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é autor, entre outros, de GLOBAL - Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Record, 2005), escrito em conjunto com Antonio Negri.
Pesquisadora de Esdi/ UerjAlexandre Mendes Barbara Szaniecki |
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário