PICICA: "Uma desqualificação
frequentemente dirigida ao #NãoVaiTerCopa é que seria uma pauta negativa
e destrutiva, na lógica do “quanto pior, melhor”. Surgido das ruas de
junho de 2013, durante a Copa das Confederações, o grito insiste em
reaparecer em praticamente todos os protestos desde então. Nas várias
greves, marchas, manifestações em favelas e periferias e encontros
ativistas, #NãoVaiTerCopa têm agrupado não somente a indignação
associada a várias pautas de protesto, como também um desejo por
construir outra democracia, com mais direitos e mais abertura.
#NãoVaiTerCopa é como a tarifa zero: é mais. Simboliza a condensação de
uma grande diversidade de frentes e aspirações. #NãoVaiTerCopa tem sido a
imagem do irrecuperável, o ponto de fuga às várias tentativas de
captura empresarial ou eleitoral das jornadas de junho. Não admira que a
primeira exigência dos governos para negociar com grupos mobilizados
para protestar seja trocar o #NãoVaiTerCopa por algo, digamos, mais
“propositivo”. Em português claro: mais domesticável. No entanto poucas
coisas dialogam mais com o momento da recusa e revolta, principalmente
quando o conflito se intensifica, do que esse grito. Não porque promova o
caos, o que é publicidade enganosa de quem quer desmobilizar. Mesmo
porque o caos é a realidade cotidiana das grandes cidades, do sistema de
saúde, dos transportes públicos etc. #NãoVaiTerCopa exprime o melhor e
deseja o melhor. Quanto melhor, melhor!, isso é que move as pessoas a
continuar manifestando e se organizando, enfrentando a desqualificação e
o medo."
#NÃOVAITERCOPA É MAIS
Essa foi uma das premissas do encontro entre ativistas atuantes em cinco cidades, na Casa de Rui Barbosa, Botafogo, na última quinta-feira, 5 de junho. Abordar o lado construtivo e organizativo, dentro da conjuntura da Copa do Mundo, e na esteira da eclosão de 2013. A uma semana da abertura oficial do megaevento, os participantes debateram ao redor do tema “Não vai ter Copa?”. As falas realçaram a riqueza dos movimentos envolvidos no presente ciclo de lutas. Falaram de uma mobilização forte por direitos, por outro modo de gestão da cidade, dos serviços, da segurança pública, de mídia, e também em canalizar as demandas daqueles atingidos pelas obras, pra quem menos interessa o megaevento. A Copa pode ser apenas uma eventualidade, porém simboliza, ou queriam que simbolizasse, o coroamento de um projeto autoritário de capitalismo, como uma espécie de apoteose do desenvolvimento nacional e vitrine do novo Brasil maior, Brasil potência “subimperialista”.
O encontro, co-organizado pela Casa de Rui Barbosa, a rede Universidade Nômade e a Linha de Pesquisa em Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde, contou com quatro convidados na mesa: Isabella Miranda, do Comitê Popular dos Antigidos pela Copa (COPAC), de Belo Horizonte; Jéssica Cerqueira, da União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora (UNEAfro), de São Paulo; Antonio Costa, psicólogo, atuante na Assembleia do Largo, do Rio; e João Telésforo, da Esquerda Libertária Anticapitalista (ELA), de Brasília. Também se fez presente, no debate, o advogado penalista Clécio Lemos, que falou sobre os movimentos em Vitória.
Para Isabella, o momento de disseminação das lutas sociais resulta de uma construção que vem desde pelo menos 2010, quando se formou a rede de Comitês Populares, dedicada a avaliar o impacto dos megaeventos, e congregar as reivindicações dos afetados. Ela explicou como muitas pessoas em várias cidades estão sendo diretamente prejudicadas, em vários níveis, desde os removidos pelas medidas higienizadores e gentrificadoras do espaço urbano, passando pelos dez operários mortos nos canteiros dos empreendimentos, até os camelôs impedidos de trabalhar, os pequenos empreendedores do comércio e manufatura sem acesso às mais de 1.100 marcas patenteadas pela FIFA, o alargamento das ações de recolhimento compulsório e choque de ordem contra pessoas em situação de rua ou com sofrimento mental. Vivem na pele, assim, a intensificação da violência policial e da criminalização dos movimentos sociais, tão endêmica dentro do modo atual de gestão das cidades, agora sob a desculpa redentora da garantia de segurança da Copa. Ela falou também dos efeitos econômico-financeiros associados ao aumento da dívida pública, uma vez que o dinheiro injetado é transferido de fundos do estado para as receitas das empresas “parceiras”: grandes construtoras, agências de publicidade, indústria da grande mídia, o sport business e a própria FIFA, numa gigantesca operação de transferência de renda aos mais ricos do país.
Mas a realização da Copa não pode ser resumida à vitória do estado neodesenvolvimentista e ao consequente avanço das violências próprias da expansão do capitalismo, na contradição entre elementos produtivos (a socialização da produção) e antiprodutivos (a dissolução de relações sociais indesejáveis). Isabella também falou de resistência, da chance de se reorganizarem as lutas no Brasil, ampliando os sujeitos nelas envolvidos, especialmente depois que junho de 2013 eclodiu. A ativista do COPAC ressaltou a importância dos comitês nesse trabalho de facilitar a comunicação e ação comum entre os atingidos e grupos já mobilizados de direito à cidade, gerando uma instância de contrapoder. Sobre Belo Horizonte, relatou a emergência de novos movimentos e coletivos, e de toda uma cultura de rua, baseados na reinvenção do público e do comum, que vem desde a ocupação da Praça da Estação, o “Fora Lacerda”, a ocupação do Viaduto e as batalhas de MC, e a proliferação de novos assentamentos. Também destacou a força organizativa indispensável, por exemplo, das Brigadas Populares, que hoje mantêm cinco ocupações articuladas pela capital mineira, ao redor do eixo da luta pela moradia e direito à cidade. Foi uma síntese panorâmica do que está em jogo.
Jéssica adotou uma abordagem mais pessoal, desenredando de sua trajetória singular as muitas linhas políticas que costumam aparecer misturadas na realidade. Moradora da periferia de São Paulo, negra, ingressou no ensino superior no curso de turismo e, em boa parte graças à vivência do levante de 2013, resolveu envolver-se mais nos fóruns e reuniões de organização política. O #NãoVaiTerCopa, para ela, expressa uma revolta crescente diante das péssimas condições dos serviços públicos, especialmente aos mais pobres, num país ainda muito racista e dividido socialmente. Vê uma autêntica aceleração na transformação nas periferias, com a participação de mais gente e de uma forma inovadora, menos tediosa, de viver e fazer cultura dissidente. Essa cultura de resistência está no magma de emergência das manifestações, inclusive em seus enfrentamentos. Falou também da importância da pauta da negra/o, já que a linha de cor atravessa a condição social brasileira de um modo indissociável, o que não pode ser colocado em segundo plano.
Antonio igualmente falou do caráter prospectivo do #NãoVaiTerCopa, como um espaço-tempo de criação, da alegria do encontro, da tentativa e erro na leveza de uma reconstrução radical de subjetividades. É o momento de reconfiguração das formas de organização na própria rua, onde tudo está para se reinventado, e onde a palavra agora circula. A horizontalidade é um processo que não pode ser mistificado, e que depende de um empenho existencial e numa paciência militante diante de tantas contradições e paradoxos no seio da sociedade brasileira. As assembleias populares horizontais e as ocupas são laboratórios de experimentação desse outro tipo de habitar, de onde se poderá pensar o direito da cidade de maneira autônoma. Apalpando num terreno novo, os manifestantes enfrentam a contingência dos desafios, erros e acertos, a fim de continuar o movimento, de dar-lhe sentido. Isto não resulta apenas em novas modalidades de cooperação, mas também em um efeito de contágio sobre movimentos mais antigos, com acúmulo. Antonio contou, como exemplo, um episódio no MST quando ativistas daquele movimento consolidado tinham muito interesse em conhecer os novos ativismos que se condensaram em 2013. Apesar dos vaivéns, o resultado global é positivo, numa nova geração de luta sem nostalgia de “velho revolucionário”.
João, por último, concentrou-se na formação de Brasília, recapitulando que foi uma cidade que já nasceu por assim dizer gentrificada. Produto dos delírios racionalistas de grandeza do modernismo arquitetônico de Lúcio Costa e outros, a planificação da capital já embutia, desde o princípio, o autoritarismo na dos grandes projetos e eventos. Havia a ambição por uma cidade clean, sem tempo nem lugar para manifestações, culturas dissidentes e múltiplos modos de produzir o espaço. A insurgência das formas brancas na escuridão do deserto se concretizou nas sucessivas mortes de operários nas obras, hierarquização interna dos espaços, além de vários problemas estruturais na configuração dos fluxos de trabalhadores pelo território. Eis aí a realização planificadora do sonho modernista de uma cidadania avançada, distópica em seu futuro de conjugação entre social e técnica. Ao futurismo dos grandes projetos, restou a arqueologia de câmaras escuras, quando hoje se encontram inscrições legadas pelos migrantes operários de um passado presente. Recapitulando Brasília, João contribuiu para dramatizar a “vontade de progresso” por trás de um modelo neodesenvolvimentista que se pretende consagrar com os megaeventos da década. Em junho de 2013, outras forças vivas, outros fluxos e outras imagens do subdesenvolvimento, sem modelo nem Plano, emergiram para contestar a ideia de um Brasil do futuro, precocemente frustrada na agonia dos serviços públicos e nos conflitos de rua.
O Brasil não vive um tempo de falta de agitações e tumultos. Muito pelo contrário. O tumulto é generalizado, latente, massivo e com graus de agudeza poucas vezes vistos. A mobilidade amiúde agressiva das novas formas produtivas no Brasil, nas últimas duas décadas, se converteu em mobilização política. Diante da diversidade caleidoscópica dessa composição, se torna mais do que necessário, portanto, disputar a pauta política. O que remete a um problema de método, já que nenhum conteúdo pode ser acessado meramente por retórica ou “wishful thinking”. Sem um trabalho concomitante de organização, não é possível coordenar a imensidade afetiva e propositiva do levante, em (várias) linhas eficazes de ação e construção. Ao poder destituinte é necessário fortalecer o poder constituinte, formando assim um contrapoder capaz de obter respostas de curto, médio e longo prazo, e mais robustas por quem encarna a urgência das pautas.
O trabalho de organização, contudo, não pode em momento algum descolar-se da imediaticidade das modalidades democráticas em que ocorrem os espaços e tempos de debate, vivência, produção e cooperação. Da vida mesma, suas formas, enquanto biopolítica. Por isso, talvez seja interessante perscrutar, por dentro das formas concretas existentes ou novas, outro conceito de organização. Um conceito a ser criado coletivamente, que ajude a enfrentar os inúmeros dilemas de quando se fala em organização, afastando os vícios da vontade de aparelhamento, imposição de agenda, capital simbólico ou, então, dos riscos de uma verticalidade estratégica em nome do “trabalho de base”. A horizontalidade, por sua vez, não é panaceia: ela pode ser purista, paralisante, paranoica. A transversalização dos movimentos novos e antigos, das formas novas e antigas, e dos debates de muitos tempos e muitos lugares, é uma via possível para construir não um modelo de organização – mas linhas potentes e seus devires próprios, numa multidão de táticas e estratégias.
Na riqueza maior, quanto melhor-melhor, do #NãoVaiTerCopa, apenas uma expressão de um momento bem mais abrangente e complexo. A consistência do pensamento e da ação depois de junho de 2013, assim, é uma grande pauta em aberto, preenchida a todo tempo de vários ângulos, e cujas várias tendências precisam ser pesquisadas-junto, debatidas-com, vividas-em e, se possível, enredadas respeitando-se suas próprias diferenças. Assim, prospectivamente, poderemos quem sabe avançar um pouco em nossos problemas.
Fonte: Coletivo Carranca
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