PICICA: "Neste artigo, escrito pouco depois da final da Copa do Mundo de 1970 e publicado no Il Giorno,
em 3/1/1971, Pier Paolo Pasolini desenvolve sua distinção
entre “futebol de prosa”, praticado pelos europeus na época, e o
“futebol de poesia”, característico de brasileiros e não-europeus em
geral. Enquanto o primeiro seria voltado exclusivamente para os
resultados e regido pela observância às regras do sistema, o segundo se
basearia sobretudo na capacidade de invenção de cada jogador, resultando
o gol de uma subversão prazerosa do código, e não do que chama
ironicamente de “otimização dos podemas”.
A Boitempo recupera o artigo clássico
do cineasta, poeta, intelectual e entusiasta do futebol durante a
emocionante da Copa de 2014, em um cenário histórico de capitalismo e
futebol altamente globalizados, e aproveita para interrogar seus
leitores a respeito da atualidade da intervenção e das categorias
(prosa/poesia) de Pasolini.
A publicação também se dá no contexto do especial /megaeventos do Blog da Boitempo, espaço aberto na esteira do lançamento do livro Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?, que
busca aprofundar a reflexão entre futebol e sociedade. Ao final do
artigo, acrescentamos também um comentário do tradutor do texto, o
professor de literatura italiana da USP Maurício Santana Dias, publicado
originalmente no caderno Mais! da Folha de S.Paulo. As
imagens que ilustram este texto são intercaladas entre fotografias de
Pasolini jogando futebol e momentos de pura poesia na partida entre
Brasil e México (17/06/14, crédito: Danilo Borges/Portal da Copa)."
O gol fatal: Pasolini e o futebol-arte
Por Pier Paolo Pasolini.*
Neste artigo, escrito pouco depois da final da Copa do Mundo de 1970 e publicado no Il Giorno,
em 3/1/1971, Pier Paolo Pasolini desenvolve sua distinção
entre “futebol de prosa”, praticado pelos europeus na época, e o
“futebol de poesia”, característico de brasileiros e não-europeus em
geral. Enquanto o primeiro seria voltado exclusivamente para os
resultados e regido pela observância às regras do sistema, o segundo se
basearia sobretudo na capacidade de invenção de cada jogador, resultando
o gol de uma subversão prazerosa do código, e não do que chama
ironicamente de “otimização dos podemas”.
A Boitempo recupera o artigo clássico
do cineasta, poeta, intelectual e entusiasta do futebol durante a
emocionante da Copa de 2014, em um cenário histórico de capitalismo e
futebol altamente globalizados, e aproveita para interrogar seus
leitores a respeito da atualidade da intervenção e das categorias
(prosa/poesia) de Pasolini.
A publicação também se dá no contexto do especial /megaeventos do Blog da Boitempo, espaço aberto na esteira do lançamento do livro Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?, que
busca aprofundar a reflexão entre futebol e sociedade. Ao final do
artigo, acrescentamos também um comentário do tradutor do texto, o
professor de literatura italiana da USP Maurício Santana Dias, publicado
originalmente no caderno Mais! da Folha de S.Paulo. As
imagens que ilustram este texto são intercaladas entre fotografias de
Pasolini jogando futebol e momentos de pura poesia na partida entre
Brasil e México (17/06/14, crédito: Danilo Borges/Portal da Copa).
Em meio ao
debate atual sobre os problemas linguísticos que separam artificialmente
literatos de jornalistas e jornalistas de jogadores, fui indagado
por um gentil repórter do “Europeo”; mas as minhas respostas saíram
cortadas e depauperadas no tablóide (por causa das exigências
jornalísticas!). Porém, como o assunto me interessa, gostaria de voltar a
ele com mais calma e com a plena responsabilidade sobre aquilo que
digo.
O que é uma
língua? “Um sistema de signos”, responde do modo hoje mais exato um
semiólogo. Mas esse “sistema de signos” não é apenas, necessariamente,
uma língua escrita-falada (esta que usamos agora, eu escrevendo e você,
leitor, lendo).
Os “sistemas
de signos” podem ser muitos. Tomemos um caso: eu e você, leitor,
estamos numa sala onde também estão presentes [o jornalista e
ex-porta-voz do presidente italiano Alessandro Pertini,
Antonio] Ghirelli e [o jornalista esportivo da Itália Gianni] Brera, e
você quer me dizer algo sobre Ghirelli que Brera não deve ouvir. A
situação impede que você me fale por meio do sistema de signos verbais, e
então é preciso recorrer a um outro sistema de signos, por exemplo, o
da mímica; aí você começa a revirar os olhos, a entortar a boca, a
agitar as mãos, a ensaiar gestos com os pés etc.
Você é o
“cifrador” de um discurso “mímico” que eu decifro: isso significa que
possuímos em comum um código “italiano” de um sistema de signos mímico.
Pintura, cinema e futebol
Outro
sistema de signos não-verbal é o da pintura; ou o do cinema; ou o da
moda (objeto de estudo de um mestre nesse campo, Roland Barthes) etc. O
jogo de futebol também é um “sistema de signos”, ou seja, é uma língua,
ainda que não-verbal. Por que digo isso (que em seguida pretendo
desenvolver esquematicamente)? Porque a “querelle” que contrapõe a
linguagem dos literatos à dos jornalistas é falsa. E o problema é outro.
Vejamos.
Toda língua (sistema de signos escritos-falados) possui um código geral.
Tomemos o italiano: usando esse sistema de signos, eu e você, leitor,
nos entendemos porque o italiano é um patrimônio nosso, comum, “uma
moeda de troca”. Entretanto cada língua é articulada em várias
sublínguas, e cada uma destas possui, por sua vez, um subcódigo: os
italianos médicos se compreendem entre si -quando falam o jargão
especializado- porque todos eles conhecem o subcódigo da língua médica;
os italianos teólogos se compreendem entre si porque detêm o subcódigo
do jargão teológico etc. etc.
A língua literária é também uma língua de jargão, com um subcódigo próprio
(em poesia, por exemplo, em vez de dizer “speranza” é possível dizer
“speme”, mas nós não estranhamos essa coisa engraçada porque se sabe que
o subcódigo da língua literária italiana demanda e admite que, em
poesia, sejam usados latinismos, arcaísmos, palavras truncadas etc.
etc.).
O jornalismo
não é senão um ramo menor da língua literária: para compreendê-lo,
valemo-nos de uma espécie de sub-subcódigo. Em palavras pobres, os
jornalistas são simplesmente escritores que, a fim de vulgarizar e
simplificar conceitos e representações, se valem de um código literário,
digamos -para ficarmos no campo esportivo-, de segunda divisão. Assim a
linguagem de Brera é de segunda divisão se comparada à linguagem de
Carlo Emilio Gadda [escritor italiano, 1893-1973] e de Gianfranco
Contini [crítico literário].
E a língua de Brera é, talvez, o caso mais bem qualificado do jornalismo esportivo italiano. Portanto
não existe conflito “real” entre escritura literária e jornalística: o
problema é que esta, coadjuvante como sempre foi, agora exaltada por seu
uso na cultura de massa (que não é popular!), encampa pretensões um
tanto soberbas, de “parvenu”. Mas vamos ao futebol.
O futebol é
um sistema de signos, ou seja, uma linguagem. Ele tem todas as
características fundamentais da linguagem por excelência, aquela que
imediatamente tomamos como termo de comparação, isto é, a linguagem
escrita-falada.
“Podemas”
De fato as
“palavras” da linguagem do futebol são formadas exatamente como as
palavras da linguagem escrita-falada. Ora, como se formam estas últimas?
Formam-se por meio da chamada “dupla articulação”, isto é, por
infinitas combinações dos “fonemas” -que, em italiano, são as 21 letras
do alfabeto.
Os “fonemas”
são, pois, as “unidades mínimas” da língua escrita-falada. Se quisermos
nos divertir definindo a unidade mínima da língua do futebol, podemos
dizer: “Um homem que usa os pés para chutar uma bola”. Aí está a unidade
mínima, o “podema” (se quisermos continuar a brincadeira). As
infinitas possibilidades de combinação dos “podemas” formam as “palavras
futebolísticas”; e o conjunto das “palavras futebolísticas” constitui
um discurso, regulado por normas sintáticas precisas.
Os “podemas”
são 22 (mais ou menos como os fonemas): as “palavras futebolísticas”
são potencialmente infinitas, porque infinitas são as possibilidades de
combinação dos “podemas” (o que, em termos práticos, equivale às
passagens da bola entre os jogadores); a sintaxe se exprime na
“partida”, que é um verdadeiro discurso dramático.
Os cifradores desta linguagem são os jogadores; nós, nas arquibancadas, somos os decifradores: em comum, possuímos um código.
Quem não
conhece o código do futebol não entende o “significado” das suas
palavras (os passes) nem o sentido do seu discurso (um conjunto de
passes).
Não sou nem
Roland Barthes [1915-1980] nem Greimas [linguista, 1917-92], mas, como
diletante, se quisesse, poderia escrever um ensaio sobre a “língua do
futebol” bem mais convincente do que este artigo.
Aliás, penso
que se poderia escrever um belo ensaio intitulado “Propp Aplicado ao
Ludopédio”, já que, naturalmente, como qualquer língua, o futebol tem o
seu momento puramente “instrumental”, rígida e abstratamente regulado
pelo código, e o seu momento “expressivo”.
Pouco antes, disse que toda língua se articula em várias sublínguas, cada qual com um subcódigo.
Pois bem,
com a língua do futebol também é possível fazer distinções desse tipo: o
futebol também possui subcódigos, na medida em que, de puramente
instrumental, se torna expressivo.
Há futebol
cuja linguagem é fundamentalmente prosaica e outros cuja linguagem é
poética. Para explicar melhor a minha tese, darei -antecipando as
conclusões- alguns exemplos: [o meio-de-campo italiano] Bulgarelli joga
um futebol de prosa, é um “prosador realista”; Riva [maior goleador da
história da seleção italiana] joga um futebol de poesia, é um “poeta
realista”.
Corso joga um futebol de poesia, mas não é um “poeta realista”: é um poeta meio “maudit”, extravagante.
Prosa e poesia
[Gianni]
Rivera [meio-campista italiano que disputou a final da Copa de 1970,
contra o Brasil] joga um futebol de prosa: mas sua prosa é poética, de
“elzevir”.
Também
Mazzola [João José Altafini. Jogou pelo Palmeiras e pela seleção
brasileira, sendo campeão em 1958. Depois se transferiu para a Itália e
se naturalizou italiano, chegando a jogar pela seleção na final da copa
de 70 contra o Brasil] é um prosador elegante e poderia até escrever no
“Corriere della Sera”, mas é mais poeta que Rivera: de vez em quando ele
interrompe a prosa e inventa, de repente, dois versos fulgurantes.
Note-se que não faço distinção de valor entre a prosa e a poesia; minha distinção é puramente técnica.
Entretanto
nos entendamos. A literatura italiana, sobretudo a mais recente, é a
literatura dos “elzevires”: os escritores são elegantes e, no limite,
estetizantes; a substância é quase sempre conservadora e meio
provinciana… Em suma, democrata-cristã. Todas as linguagens faladas em
um país, mesmo as mais especializadas e espinhosas, têm um
terreno comum, que é a cultura desse país: a
sua atualidade histórica.
Assim,
justamente por razões de cultura e de história, o futebol de alguns
povos é fundamentalmente de prosa, seja ela realista ou
estetizante (este último é o caso da Itália); ao passo que o futebol de
outros povos é fundamentalmente de poesia.
Há no
futebol momentos que são exclusivamente poéticos: trata-se dos momentos
de gol. Cada gol é sempre uma invenção, uma subversão do código: cada
gol é fatalidade, fulguração, espanto, irreversibilidade. Precisamente
como a palavra poética. O artilheiro de um campeonato é sempre o melhor
poeta do ano. Neste momento, [Giuseppe] Savoldi [jogador do Bolonha, do
Nápoli e da seleção italiana] é o melhor poeta. O futebol que exprime
mais gols é o mais poético.
O drible é
também essencialmente poético (embora nem sempre, como a ação do gol).
De fato, o sonho de todo jogador (compartilhado por cada espectador) é
partir da metade do campo, driblar os adversários e marcar. Se, dentro
dos limites permitidos, é possível imaginar algo sublime no futebol,
trata-se disso. Mas nunca acontece. É um sonho (que só vi realizado por
Franco Franchi [1922-92, um dos principais nomes do cinema cômico
italiano] nos “Mágicos da Bola”, o qual, apesar do nível tosco,
conseguiu ser perfeitamente onírico).
Quem são os
melhores dribladores do mundo e os melhores fazedores de gols? Os
brasileiros. Portanto o futebol deles é um futebol de poesia – e, de
fato, está todo centrado no drible e no gol.
A retranca e
a triangulação é futebol de prosa: baseia-se na sintaxe, isto é, no
jogo coletivo e organizado, na execução racional do código. O seu único
momento poético é o contrapé seguido do gol (que, como vimos, é
necessariamente poético).
Em suma, o momento poético do futebol parece ser (como sempre) o momento individualista (drible e gol; ou passe inspirado).
O futebol de
prosa é o do chamado sistema (o futebol europeu). Nesse esquema, o gol é
confiado à conclusão, possivelmente por um “poeta realista” como Riva,
mas deve derivar de uma organização de jogo coletivo, fundado por uma
série de passagens “geométricas”, executadas segundo as regras do código
(nisso Rivera é perfeito, apesar de Brera não gostar, porque se trata
de uma perfeição meio estetizante, não-realista, como a dos
meio-campistas ingleses ou alemães).
O futebol de
poesia é o latino-americano. Esquema que, para ser realizado, demanda
uma capacidade monstruosa de driblar (coisa que na Europa é esnobada em
nome da “prosa coletiva”): nele, o gol pode ser inventado por qualquer
um e de qualquer posição. Se o drible e o gol são o momento
individualista-poético do futebol, o futebol brasileiro é, portanto, um
futebol de poesia. Sem fazer distinção de valor, mas em sentido
puramente técnico, no México [em 1970] a prosa estetizante italiana foi
batida pela poesia brasileira.
Pier Paolo
Pasolini sempre foi um apaixonado por futebol e, segundo os que o viram
jogar, era um bom meio-campista nas horas vagas. Porém, neste artigo que
o “Mais!” publica, escrito meses depois da Copa de 70 [no "Il Giorno",
em 3/1/1971], o esporte serve principalmente de pretexto para que o
autor de “Teorema” se exercite em sua posição mais característica: a de
atacante intelectual. Adversário número um da intelligentsia italiana e
dos valores pequeno-burgueses que iam moldando a vida no país (para usar
o jargão típico daqueles anos), Pasolini não poupava ninguém dos seus
petardos.
No artigo em
questão, a primeira vítima de suas críticas é o próprio
discurso dominante no meio universitário dos anos 70, que pretendia
fazer ciência sobre qualquer coisa que lhe aparecesse pela frente, das
histórias em quadrinho ao saco de batatas fritas, da revolução
proletária à moda, transformando-se ele mesmo em modismo. Ou seja, ao
imitar o estilo acadêmico e criar conceitos como “podema”, Pasolini está
longe de se converter ao método semiótico: ao contrário, seu objetivo é
golpear o racionalismo transformado em jogo vazio, em pura técnica, que
ele via expandir-se por todos os campos da experiência como uma ameaça
aos recursos vitais dos indivíduos -e de que o discurso acadêmico seria
apenas um sintoma.
É nesse
movimento de ataque à mentalidade tecnocrática que entra em campo a
distinção pasoliniana entre o “futebol de prosa”, praticado pelos
europeus, e o “futebol de poesia”, característico de brasileiros e
não-europeus em geral. Enquanto o primeiro seria voltado exclusivamente
para os resultados e regido pela observância às regras do sistema, o
segundo se basearia sobretudo na capacidade de invenção de cada jogador,
resultando o gol de uma subversão prazerosa do código, e não da
“otimização dos podemas”.
Portanto,
segundo Pasolini, na famosa final disputada por Brasil e Itália em 1970,
estavam em campo não só dois times com estilos diferentes de jogar,
o prosaico e o poético, mas também dois modelos distintos de sociedade: o
europeu, engessado pelas regras do sistema (capitalista,
subentende-se), e o latino-americano ou terceiro-mundista (para
continuar com o jargão da época), supostamente mais imune ao sistema e
capaz de afirmar-se pela subversão das regras.
É provável
que, se Pasolini tivesse conhecido melhor a realidade brasileira e o
tipo de capitalismo que prosperou nos trópicos, visse menos poesia no
país. Mas, como termo de contraste em relação ao modelo europeu, a
metáfora-Brasil era eficaz naquele momento e atingia em cheio o público
italiano, ainda abalado pela derrota.
Em novembro
deste ano, os italianos e a imprensa internacional lembrarão os 30 anos
do assassinato de Pier Paolo, que não teve tempo de assistir à conversão
dos brasileiros ao “futebol de prosa”.
***
Pier Paolo Pasolini nasceu em Bolonha em 1922. Cineasta, escritor e intelectual crítico, dirigiu Teorema, Saló e O evangelho segundo São Mateus, entre outros.
Fonte: Blog da Boitempo
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