PICICA: "Cada vez que eu tento lembrar desse dia, eu lembro de imagens, de
algumas mesmas cenas e pessoas, e esqueço de outras. Mas nunca vou me
esquecer desse dia."
O dia que não acabou
Quando entrei no pátio, o prédio histórico parecia em festa: canais do mundo inteiro com “alemães” se esforçando em entender as falas empolgadas de garotos cheios de sonhos, convicções e argumentos bem construídos. Esses repórteres ouviam sérios, respeitosos, queriam entender o que pensavam e o que acontecia.
Eu havia levado duas folhas de cartolina. Uma pra mim, uma pra solidariedade. Havia muitos vasos de planta grandes com palmeiras, professores vestidos como os alunos, máscaras contra gás em alguns pescoços, o ar tinha cheiro de liberdade, jeans e anos 70, mas era real. Pedi a tinta, me emprestaram, minutos depois avisaram: “quando terminar passa a quem precisa!”
Não me lembro de ter pintado cartolina com tanta concentração. Eu não queria errar no texto nem perder a oportunidade. Eu só tinha aquela folha, a outra desde sempre não era minha, e era preciso ser concisa – o que não sei ser – e numa única frase de ordem dizer todo o meu sentimento em bom brado. Pensei, pensei, deu no que deu. Não achei tão forte, então acabei virando o outro lado, ajeitei algum detalhe que não lembro, pintei o MERDA em vermelho diferente do verde do resto, e sem ninguém tão do meu lado para oferecer as tintas, deixei-as com os pincéis num cantinho entre o chão e um dos vasos de planta.
Levantei dos joelhos, andei um pouco com o rascunho de um lado e a mensagem valendo do outro balangando a folha pra secar mais rápido. Segui para o lado de fora, na praça, com certo orgulho, muito orgulho de estar por ali, fascinada. Pisava forte o chão com os mesmos joelhos tremidos. Tomei como tão meu aquele espaço que me ofendi por ver deputados sem bandeiras – atendendo a pedidos – também por ali. Vi dois. Um deles, cacoete de político, balançou a cabeça em cumprimento. O outro, senti que nosso olhar cruzou (aliás, mais de uma vez na vida, e nunca fomos apresentados), uma pressão no meio do chacra e eu invadida.
A hora da foto foi quando quis registrar um tanto disso para sempre, e quando abstraí como turista. A praça do Largo de São Francisco estava lotada! Linda! As letras ainda estavam molhadas. Ainda tinha gente pintando mensagens. Quando a multidão começou a andar até a Presidente Vargas, em algum momento que não sei explicar, vi que era hora de levantar meu cartaz ao alto. Com ele segui como se fosse mesmo uma bandeira. Um escudo. Uma arma. Uma menina do meu lado riu apontando pra mim da mensagem, pediu para fotografar e disse – “Seu cartaz é o máximo! Vou botar no Facebook!” Alguém do lado ouviu e me chamou então para eu avançar junto a uma grande faixa amarela (se não me engano) com algo escrito, segura por uns 10 ou 15 jovens para que, com eles, eu ficasse também em destaque. Então eu rodava o cartaz um tanto para que o povo do meio fio pudesse ler, para que alguém de uma janela que pisca pudesse ver, e aí voltava pro centro pra que a imprensa pudesse fotografar. A luz e o som dos helicópteros azucrinavam, eu mostrava o cartaz pra eles. A gente mandava uma galera ir tomar no cu, o cartaz marcava o compasso das sílabas sacudindo o ar. Tinha alguma coisa de força, outra que abria um sorriso na gente, que aumentava a gana, parecia possível que em segundos o prefeito ia cair de seu posto e que em 12 horas o governador ia chorar por clemência – e nessa hora o cartaz subia mais forte.
Do chão não havia como ter dimensão da avenida, nem que éramos cerca de um milhão, alguns milhares de cartazes, outras tantas dezenas de faixas, pequenos grupos de médicos voluntários com plaquinhas de identificação, carros de som, nenhum sinal de internet, lá pras tantas nenhuma luz e, de repente, uma gritaria e um vento de sabor amargo, uma ardência e um sufocamento, e meu vinagre rolando de mão em mão e sumindo na multidão, e meu cartaz sendo amassando no empurra-empurra do pânico geral e quase caindo. Ele ia morrer pisoteado então dobrei amassando com uma mão só e enfiando rápido na mochila até que todos se abaixaram e fui puxada para o chão. No meio do ataque que levamos sem nem dar pra ver direito de onde partia, um rapaz da turma da tal faixa amarela a qual me agreguei me ajudou, de mãos dadas comigo, a respirar. O nome dele é Pedro. Em seguida, empurrados pela confusão, atravessamos um pontilhão estreito sobre o Canal do Mangue junto com outros amigos deste grupo e, obviamente, com a multidão. Logo ali, antes de atravessar o rio soube que eram da escola de Arquitetura, nos apresentamos repentinamente como medida de segurança – “meu nome é Raquel, e o seu..”. Lembrei agora que seguíamos uma bandeira que era do grupo e que devia falar, talvez, de reforma urbana, ou isso era na faixa amarela e a bandeira era só desenho.
Seguimos para o outro lado da pista andando todos de mãos dadas. Outro dos rapazes foi me dando guarida e tomando conta de mim e de outra amiga pra gente não se perder na multidão. O nome dele é Pedro também. Então seguimos levando bombas, vimos as bombas sobre nossas cabeças nos perseguindo e chegando feito chuva também sobre o viaduto, dentro dos ônibus que estavam lá em cima e que não tinham para onde ir – cheguei a pensar que alguém pudesse pular de lá em desespero. Nisso, um quebra-quebra começou, e gritavam, e gritávamos “na escola não!”, e vi gente subindo no zumbi, e vi recos malhados com cara de milicos que não sorriam nem tinham orgulho dos seus cartazes e que mais pareciam pontos de referência, e que filmavam com cameretas. Vi gringo subindo nas árvores olhando em direção à polícia e balançando a cabeça negativamente em reprovação. Naquele momento, eu lembro, prometi no vento que não iria deixar barato. Que não podia ser assim. Ri muito com um do lado que gritava: “Pode mandar mais gás que eu sou maconheiro, seus meeerdas!! E eu to aqui, caraaalho!! Eu dei certo, porraaa!!” E quando me dei conta, meio sem ter pra onde ir ou sem estar ainda na hora de voltar, eu estava no maior papo com outro novo amigo do grupo em direção ao IFCS onde, não sabíamos ainda, viraríamos reféns da ação da polícia que tomou de assalto o Centro da cidade. O nome desse é Belchior.
Cada vez que eu tento lembrar desse dia, eu lembro de imagens, de algumas mesmas cenas e pessoas, e esqueço de outras. Mas nunca vou me esquecer desse dia.
Há um ano minha vida mudou. Não chutei o pau da barraca em 2013 porque sou sonhadora. Chutei porque achei que os armários dos indignados estavam se abrindo como mágica e falei, opa! Não vou ser morta sozinha! Não fui. E desde então vivo me depurando, porque o Poder é escroto, mas eu também tenho o meu lado B que não presta.
Um ano depois, 109,5 milhões na passarela, e a escada do Maracanã cambaleia. O taxista me falou reflexivo essa semana: “E o país não quebra, moça!”. Vou atualizar minha lista, mas do cartaz não mudo uma letra.
*Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Nota Oficial Direção IFCS Junho 2013
Fonte: Coletivo Carranca
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