junho 21, 2014

"A melancolia autoirônica de Avanti popolo", por José Geraldo Couto

PICICA: "Filme do uruguaio Michael Wharman evoca desaparecidos políticos, crise das utopias e declínio de certo cinema, além de contar com atuação memorável de Carlos Reichenbach"

A melancolia autoirônica de Avanti popolo


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Filme do uruguaio Michael Wharman evoca desaparecidos políticos, crise das utopias e declínio de certo cinema, além de contar com atuação memorável de Carlos Reichenbach

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS



Para quem quer se refugiar um pouco da onipresença do futebol nestes dias de Copa do Mundo, nada melhor que a sala escura do cinema. Há, pelo menos nas metrópoles, opções para todos os gostos: blockbusters infanto-juvenis, globochanchadas, documentários candentes (JunhoRio em chamasSetenta), dramas lancinantes (RiocorrenteO lobo atrás da porta).


Mas quero falar de um filme pequeno e precioso, que parece em descompasso com tudo isso, e cuja ironia melancólica já começa no título: Avanti popolo, de Michael Wharman, uruguaio-israelense radicado em São Paulo.




O fio narrativo é tênue: num bairro de classe média baixa de São Roque, perto de São Paulo, o quarentão André (André Gatti) volta temporariamente à casa do pai solitário (Carlos Reichenbach), que há trinta anos espera a volta de outro filho, “desaparecido” pela ditadura militar.


Mundos em extinção


Na casa, que parece ter sido mantida intacta sob camadas de poeira e bolor, André encontra objetos da infância e juventude dele próprio e do irmão, em especial velhos rolos de super-8 que ele leva a um técnico para serem recuperados, de modo a tentar recuperar também um pouco do passado e compreender o seu sentido.


Mais do que o enredo, o que conta aqui é a criação de uma atmosfera de anacronismo, de tempo irrecuperável, de melancolia crepuscular – mas tudo isso modulado por um delicioso humor autoirônico.


Um dos achados do filme é permear a trilha sonora com um programa de rádio que toca antigas canções e hinos revolucionários de todo o mundo, velharias que assumem um caráter absurdo em nossos tempos pragmáticos e pós-utópicos.


Com uma câmera paciente, que deixa cair sobre cada plano, “tarkovskianamente”, todo o peso do tempo, o diretor centra seu foco em signos de mundos em extinção: filmes de super-8, fitas cassete, discos de vinil, as ruínas de um cinema de rua, hinos de nações desaparecidas.

Olhar perdido


É, de certa forma, um filme sobre a morte: a morte das utopias, a morte do cinema (ou de um certo cinema), a morte mais que provável do filho desaparecido.


Mas há uma morte ainda mais palpável que paira sobre tudo. A presença do cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012) no papel do pai solitário acrescenta uma camada pungente de significação. Para quem o conheceu, Carlão encarnou como ninguém a paixão do cinema, sobretudo do cinema mais radical e libertário.


No filme, em total consonância com o papel, ele aparece abatido pela tristeza e pela doença cardíaca que o levaria alguns meses depois. Sem os óculos de fundo de garrafa que costumava usar, ele está com o olhar perdido, como se contemplasse um outro mundo, um tempo fora do tempo. É esse olhar, em mais de um sentido, que o filme de Michael Wahrmann procura captar.

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