PICICA: “Faz-nos falta liberar o feminismo da tirania das políticas identitárias”
Liberar o feminismo das políticas identitárias
31/05/2014
Por Beatriz Preciado
Por Beatriz Preciado, no Libération, 9/5/14 | Trad. Silvio Pedrosa
“Faz-nos falta liberar o feminismo da tirania das políticas identitárias”
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Feminismo amnésico
Como é o caso em quase todas as práticas de oposição política e de resistência minoritária, o feminismo sofre de um desconhecimento crônico de sua própria genealogia. Ignora suas linguagens, esquece suas fontes, apaga suas vozes, perde seus textos e não conta com a chave dos seus próprios arquivos. Nas Teses sobre o conceito de história, Walter Benjamin nos recorda que a história está escrita desde o ponto de vista dos vencedores. É por isso que o espírito do feminismo é amnésico. Aquilo a que Benjamin nos convida é a escrever a história desde o ponto de vista dos vencidos. É com esta condição, diz, que será possível interromper o tempo da opressão.
Cada palavra de nossa linguagem contém, enrolada sobre si mesma, uma bola de tempo, constituída de operações históricas. Enquanto o profeta e o político se esforçam em sacralizar as palavras, ocultando sua historicidade, corresponde a filosofia e a poesia a tarefa profana de restituir as palavras sacralizadas ao uso cotidiano: desatar os nós do tempo, arrebatar as palavras aos vencedores para voltar a colocá-las em praça pública, onde poderão ser objeto da ressignificação coletiva.
É urgente recordar, por exemplo, diante da onda “antigênero”, que as palavras “feminismo”, “homossexualidade”, “transexualidade” ou “gênero” não foram inventadas por ativistas radicais, mas bem antes pelo discurso médico dos últimos dois séculos. Essa é uma das características das linguagens que serviram para legitimar as práticas de dominação somatopolítica na modernidade: enquanto que as linguagens da dominação anteriores aos século 17 trabalhavam com um aparato de verificação teológica, as linguagens modernas se articularam ao redor de um aparato de verificação técnico-científica.
Sigamos, por exemplo, o túnel do tempo que nos abre a palavra “feminismo”. A noção de feminismo foi inventada em 1871 pelo jovem médico francês Ferdinand-Valerè Fanneau de La Cour em sua tese de doutorado “Do feminismo e do infantilismo nos tuberculosos”. Segundo a hipótese científica de Ferdinand-Valerè Fanneau de La Cour, o “feminismo” era uma patologia que afetava aos homens tuberculosos, produzindo, como sintoma secundário, uma “feminização” do corpo masculino.
O varão tuberculoso, disse Ferdinand-Valerè Fanneau de La Cour, “tem os cabelos e as sobrancelhas finas, cílios longos e finos como das mulheres; a pele é branca, fina e flexível, a panícula adiposa subcutânea muito desenvolvida e, por conseguinte, os contornos fingem uma suavidade considerável, enquanto as articulações e os músculos conjugam seus esforços para fornecer flexibilidade aos movimentos, esse não-sei-o-quê ondulante e gracioso que próprio da gata e da mulher. Se o sujeito alcançou a idade em que a masculinidade determina o crescimento da barba, acontece que esta produção ou bem se faz completamente ausente ou só existe em determinados locais, que são geralmente o lábio superior primeiro e depois a região do queixo e costeletas. E, no entanto, os poucos cabelos são finos, macios e quase sempre loucos (…) Os órgãos genitais são reconhecidos pela sua pequenez.” Feminizado, sem “potência de geração e faculdade de concepção”, o homem tuberculoso perde sua condição de cidadão viril e torna-se um agente comunicador que deve ser colocado sob a tutela da medicina pública.
Um ano depois da publicação da tese de Ferdinand-Valerè Fanneau de La Cour, Alexandre Dumas Filho retoma, em um dos seus panfletos, a noção médica de feminismo para qualificar aos homens solidários da causa das “sufragistas”, movimento de mulheres que lutavam pelo direito ao voto e à igualdade política. Assim, pois, os primeiros feministas foram homens: homens que o discurso médico considerou anormais por haver perdido seus “atributos viris”: mas, também, homens acusados de feminizar-se em razão de sua proximidade com o movimento político das sufragistas. Haverá que esperar alguns anos para que as sufragistas se reapropriem desta denominação patológica e a transformem num lugar de identificação e ação política.
Mas onde estão, hoje, as novas feministas? Quem são os novos tuberculosos e as novas sufragistas? Faz-nos falta liberar o feminismo da tirania das políticas identitárias e abri-lo às alianças com os novos sujeitos que resistem a normalização e a exclusão, aos efeminados da história; aos cidadãos de segunda classe, aos expatriados e aos migrantes ensanguentados pelas cercas de arame farpado de Melilla¹.
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Beatriz Preciado é filósofa, diretora do programa de estudos independentes do museu de arte contemporânea de Barcelona (Macba)
NOTAS
1. Fronteira entre a Espanha e o Marrocos.
Fonte: Universidade Nômade Brasil
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