Picica: "[...] lutar contra o genocídio do povo negro é lutar contra
todas as formas de opressão direcionadas a essa população, é lutar
contra a redução do negro, contra a limitação de suas possibilidades e
escolhas, uma vez que a violência simbólica na qual ele está submetido
faz parte de um processo maior de marginalização e discriminação contra
pessoas negras. Tal processo acaba por culminar no enclausuramento desse
segmento populacional em espaços como a favela e a periferia, locais
onde a vida cotidiana se encontra atualmente controlada pela
militarização, além de sofrer com a invisibilidade, transformando-os em
espaços esquecidos ou negligenciados pelas políticas não só de segurança
pública, mas por outras que visem enriquecer a vida e o convívio
cotidiano. Lutar contra o genocídio é, antes de tudo, lutar pelo
empoderamento do negro frente a uma sociedade que a todo momento não
hesita em lhe impor um papel de inferioridade, os reduzindo a um
confinamento onde tudo que ele deve fazer é reproduzir os valores e os
padrões hegemônicos, tradicionalmente brancos, em detrimento de seus
próprios. É com base nestas reflexões que ressaltamos aqui a importância
do engajamento de toda a sociedade nas mobilizações puxadas pelo
movimento negro, como as Marchas contra o Genocídio do Povo Negro, que
terão amplitude nacional e visam chamar atenção para os alarmantes
indicadores referentes à violência racial verificados nos dados apresentados."
Violência racial – A tentativa de redução do ser negro
Por Gustavo Fernandes e Fernando Monteiro
Nas últimas décadas, a desigualdade racial existente no Brasil foi
evidenciada por inúmeros estudos estatísticos, tendo como marco
referencial as pesquisas de Nelson do Valle Silva e Carlos Hasenbalg,
ambas de 1979. A antes idolatrada democracia racial foi desta forma
desmascarada como mito, pois não condizia com os achados de pesquisa
publicados por esses estudos, que indicava a existência de um processo
histórico e persistente de marginalização do negro na hierarquia
socioeconômica vigente.
Contudo, as causas e consequências dessa desigualdade ainda não são
objetos de consenso dentro do âmbito acadêmico, uma vez que a denúncia
dessa segregação veio acompanhada de um contraponto: a noção de que,
embora exista racismo na sociedade brasileira, em se tratando de
relações de sociabilidade e convívio entre brancos e negros, o Brasil
ainda estaria em uma posição mais privilegiada se comparado a países que
tiveram uma história de intensos conflitos e violência interracial,
como as leis Jim Crow nos Estados Unidos e o Apartheid na África do Sul.
Todavia, relatórios publicados nos últimos anos evidenciam um fenômeno
contraditório a essa noção, o genocídio do povo negro, decorrente não só
da formulação de políticas públicas que deixam de contemplar esse
segmento da população, o que poderia ser enquadrado como “racismo
institucionalizado”, mas também da marginalização histórica que aflige a
população negra que a enclausura em espaços flagelados pela miséria e
pela insalubridade.
A partir desses achados um novo tipo específico de violência surge: a
violência racial, ou seja, aquela cujos processos e consequências se
direcionam a um grupo racial em particular, no caso, a população negra.
Rodnei Silva e Suelaine Carneiro, autores do relatório Violência Racial, uma leitura sobre os dados de homicídios no Brasil,
apontam de forma pertinente de que a violência contra o negro não se
esgota apenas no homicídio por ele sofrido, uma vez que “a preocupação
com a violência deveria ir além da brutalidade que se encerra na morte.
Ela deveria ser apreendida também no desrespeito, na negação, na
violação, na coisificação, na humilhação, na discriminação [do negro].”
Acreditamos ser por essa perspectiva que devemos discutir a violência a
qual está submetida a população negra, de modo a poder englobar todos os
tipos de violência que esse segmento populacional sofre por conta de
sua posição social, tanto física quanto simbólica.
Um exemplo flagrante de violência racial e que tomou os noticiários nos
últimos meses, tanto da mídia tradicional corporativa quanto nos
espaços virtuais construídos pela mídia alternativa, o midiativismo, se
trata das consequências causadas pela militarização em curso da
periferia e da favela, que acaba resultando no acirramento dos conflitos
nesses espaços, com maior número de desaparecimentos, autos de
resistência e homicídios registrados. Vale destacar que tal violência
atinge toda a população das favelas, incluindo brancos pobres; contudo, o
processo histórico que envolve intrinsicamente a relação do povo negro
com a favelização torna essa população alvo prioritário imposta pelo
desenvolvimento da militarização.
Cabe aqui uma breve explicação sobre a marginalização do favelado. A
imagem forjada do negro favelado como marginal, adepto ou conivente com o
banditismo, tem forte influência na forma como é concebida a abordagem
das forças policiais em indivíduos que se encaixem nos parâmetros
identitários desse estigma, assim como influencia também o imaginário da
classe média urbana que, sem dúvidas, é uma das bases de apoio e
legitimação ao projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e a
crescente militarização das favelas. O jovem negro é, portanto, o
primeiro em ordem de importância para “tomar uma dura” que normalmente é
vexatória, agressiva e extremamente humilhante, diferentemente do modo
como se dá a abordagem a um branco de classe média em situação semelhante.
Os casos recentes dos assassinatos do dançarino Douglas (DG), da
dona-de-casa Cláudia Silva Ferreira e do pedreiro Amarildo Dias de
Souza, todos negros, ilustram esse cenário. Somente ao branco, mais
especificamente à classe média branca, é dado o benefício da dúvida, o
direito à defesa; ao negro, logo enquadrado como marginal ou bandido, em
acordo com esse imaginário do estigma racial, é imposta a pena capital,
sem direito a defesa ou presunção de inocência, colocando-o à mercê do
julgamento do policial.
Como abordamos acima, não é apenas a violência física que viola os
corpos negros; além disso, toda uma gama de valores erroneamente
atribuídos, direitos negados, ausência de políticas públicas focalizadas
e uma cultura de perseguição e marginalização coloca o negro em uma
posição estrutural subalterna no quadro social brasileiro. Podemos
exemplificar alguns desses fatores com fenômenos recentes como, além do
genocídio do povo negro, a perseguição imposta às religiões de matriz
africana, a repressão à cultura dos rolezinhos e dos bailes funks, o
quadro desolador de estrutura de saneamento básico em periferias e
favelas, a baixa inserção de pessoas negras no mercado de trabalho, no
sistema educacional e até no campo simbólico da
teledramaturgia, onde o negro sistematicamente assume um papel
subalterno ou de vilão em relação ao branco, via de regra, sempre em
papéis de não-protagonistas.
Ainda no campo simbólico, onde a violência não é menos concreta, não
custa lembrar do concurso Miss Salvador, realizado em 2013, na capital
da Bahia, onde todas as candidatas eram brancas em um estado onde os
negros correspondem a 76,3% da população total, o que demonstra a
imposição de um parâmetro ou ideal de beleza propagandeado por uma
sociedade que deseja a todo custo rejeitar sua negritude e os traços
físicos e estéticos consequentes da predominância negra e
afrodescendente na população como um todo. A violência contra o povo negro, portanto, vai além daquela de ordem física, como no caso dos homicídios e desaparecimentos – ela também se reproduz no âmbito simbólico, da moral e da cultura.
Willem Schinkel, ao trabalhar com o conceito de violência, a define como uma redução do ser,
ou seja, a redução de uma pessoa a apenas um de seus aspectos entre
tantos outros desdobramentos possíveis em uma dada situação; as
alternativas são inúmeras, mas a ação violenta direcionada a essa pessoa
reduz e limita o espectro de possibilidades, onde a situação desdobra-se em apenas um resultado possível. Logo, a violência racial estaria por reduzir as possibilidades de ser da
pessoa negra. Quando certos valores morais, estéticos e simbólicos,
tradicionalmente brancos, são considerados como legítimos e como padrões
os quais toda a sociedade deve seguir, temos um caso de violência
simbólica, onde o negro é obrigado a sentir vergonha de si e abrir mão
de valores que não se encaixam no padrão hegemônico, causando assim
baixa autoestima e sentimentos de inferioridade e incapacidade.
Em
concordância com essa constatação, algumas pesquisas que buscaram
entrevistar candidatos negros ao vestibular apontam que estes
normalmente optam por concorrer a cursos de baixa concorrência por se
considerarem incapazes de competir no acesso a cursos mais valorizados,
como medicina ou direito. Esse sentimento de incapacidade não é fruto
apenas da má qualidade das escolas públicas nas quais eles estudaram,
mas também da própria discriminação racial que eles são obrigados a
conviver diariamente nessas escolas, onde professores acabam por dar
mais atenção aos seus estudantes brancos, tendendo a acreditar que seus
alunos negros não são capazes de desenvolver o aprendizado.
À
visto disso, lutar contra o genocídio do povo negro é lutar contra
todas as formas de opressão direcionadas a essa população, é lutar
contra a redução do negro, contra a limitação de suas possibilidades e
escolhas, uma vez que a violência simbólica na qual ele está submetido
faz parte de um processo maior de marginalização e discriminação contra
pessoas negras. Tal processo acaba por culminar no enclausuramento desse
segmento populacional em espaços como a favela e a periferia, locais
onde a vida cotidiana se encontra atualmente controlada pela
militarização, além de sofrer com a invisibilidade, transformando-os em
espaços esquecidos ou negligenciados pelas políticas não só de segurança
pública, mas por outras que visem enriquecer a vida e o convívio
cotidiano. Lutar contra o genocídio é, antes de tudo, lutar pelo
empoderamento do negro frente a uma sociedade que a todo momento não
hesita em lhe impor um papel de inferioridade, os reduzindo a um
confinamento onde tudo que ele deve fazer é reproduzir os valores e os
padrões hegemônicos, tradicionalmente brancos, em detrimento de seus
próprios. É com base nestas reflexões que ressaltamos aqui a importância
do engajamento de toda a sociedade nas mobilizações puxadas pelo
movimento negro, como as Marchas contra o Genocídio do Povo Negro, que
terão amplitude nacional e visam chamar atenção para os alarmantes
indicadores referentes à violência racial verificados nos dados apresentados.
Referências:
SILVA, Rodnei & CARNEIRO, Suelaine. (2009) Violência Racial, uma leitura sobre os dados de homicídios no Brasil. [link:
FERNANDES, Gustavo. (2013) A “redução do negro brasileiro”, reflexões
sobre violência racial a partir de Pierre Bourdieu e Willem Schinkel.
[link:
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo Pública. (2014) Rio de Janeiro: o mapa dos desaparecidos. [link:
HASENBALG, Carlos Alfredo. (1979) Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro, Graal.
SCHINKEL, Willem. (2010), Aspects of Violence – A Critical Theory. Palgrave Macmillan.
CICALO, André. (2012) Urban Encounters: Affirmative Action and Black Identities in Brazil. Palgrave Macmillan.
Fonte: Das Lutas
Nenhum comentário:
Postar um comentário