setembro 14, 2009

Para uma terapia afirmativa

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[ Amálgama ]

Para uma terapia afirmativa

por Marjorie Rodrigues – Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade de seu manual de diagnósticos psiquiátricos. Dois anos depois, a associação de psicólogos adotou a mesma política, considerando que a homossexualidade, por si só, não implica nenhum prejuízo mental.

Foram necessários mais dez anos até que a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirasse o “homossexualismo” do Código Internacional de Doenças, onde figurava na categoria “distúrbio mental”. A partir de então, o órgão jogou o “ismo” no lixo e passou a recomendar o uso da palavra “homossexualidade”. A troca de sufixo pode parecer frescura para alguns, mas indica uma grande mudança de mentalidade: “homossexualidade” dá a entender que esta é uma das várias preferências sexuais possíveis — portanto, dotada exatamente do mesmo valor que a heterossexualidade. Já “homossexualismo” a dota de uma carga pejorativa, associando-a à idéia de distúrbio. Faz toda a diferença.

Desde então, as pesquisas sobre homossexualidade na área da psicologia sofreram uma guinada. O foco deixou de ser a demonstração de sua “normalidade” e passou a abranger questões relativas ao cotidiano da comunidade, tais como o estabelecimento de identidades, a formação de relações, a vida sob discriminação, as questões da maternidade e paternidade, entre outras.

Apesar disso tudo, infelizmente ainda temos de nos deparar com psicólogos como Rozângela Alves Justino, que declarou recentemente ao jornal Folha de S. Paulo que é possível “curar” gays. Além de contrariar os regulamentos da própria classe profissional, Rozângela afirmou que “a homossexualidade é uma doença que estão querendo implantar em toda a sociedade“. Para ela, “há um grupo com finalidades políticas e econômicas que quer estabelecer a liberação sexual, inclusive o abuso sexual contra criança. Esse é o movimento que me persegue e que tem feito alianças com conselhos de psicologia para implantar a ditadura gay”.

Uma psicóloga tão homofóbica (que chega a confundir homossexualidade com pedofilia!) deveria ser impedida de clinicar, certo? Deveria ser impedida de causar ainda mais sofrimento para a comunidade GLBTT, que já tem de viver diariamente em um mundo no qual a heterossexualidade é apresentada como norma, como um comportamento mais desejável. No entanto, tudo o que ela recebeu foi uma reprimenda pública do conselho federal.

A verdade é que Rozângela não é a única. Apesar da mudança da OMS ter ocorrido há mais de 20 anos, ainda é difícil para gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e transgêneros encontrarem um bom psicólogo, alguém que considere sua orientação sexual uma manifestação saudável e não patológica. Dia desses, numa comunidade do Orkut que frequento sempre, uma moça abriu um tópico com o seguinte desabafo: “Fui pela segunda vez me consultar com uma psicóloga com a qual eu já estava com o pé atrás desde a primeira consulta (ela tentou me empurrar a bíblia). Então, chegamos ao ponto sobre machismo e homossexualidade… Eu falei minha opinião e ela começou a falar que não existem pessoas homossexuais, mas sim pessoas com sexualidade imatura e que, se uma mulher gosta de outra, é porque teve um pai ausente ou porque não viu o amor entre os pais dentro de casa”. Pois é. Existem mais Rozângelas do que gostaríamos de pensar.

*

Para ajudar gays, lésbicas e bissexuais (os dois últimos “tês” da sigla infelizmente não foram contemplados) a encontrar um bom psicólogo e ajudar bons psicólogos a refletir se têm condições de atender a este grupo, Klecius Borges lançou o livro Terapia afirmativa. Borges faz um resumão bastante didático sobre a abordagem clínica desenvolvida a partir de 1973 — a qual considera a homofobia, e não a homossexualidade, uma patologia. Portanto, é a homofobia a responsável pelo desenvolvimento dos sintomas psicológicos encontrados com mais frequência entre a comunidade homossexual.

Segundo Borges, a homofobia se manifesta de três formas. Primeiro, ela é sociocultural, tendo como base a crença de que a homossexualidade, principalmente a masculina, ameaça a estrutura patriarcal, no qual os valores masculinos predominam. Assim, o homossexual é identificado com o feminino e, por isso, considerado inferior na escala social.

Depois, temos a homofobia institucionalizada: trata-se do pressuposto de que todos são heterossexuais. As estruturas sociais não refletem as necessidades dos homossexuais. Daí vem que as demandas do grupo são ignoradas ou tornadas invisíveis; a cobertura de suas questões pela mídia é enviesada; os gays são retratados com estereótipos negativos; as estatísticas sobre o grupo são parcas e sua importância, considerada menor; e há uma demarcação de “guetos”, espaços públicos onde a expressão de atitudes homossexuais são mais livres (mas tal liberdade só vale ali, não na cidade inteira).

Por fim, Klecius destaca a homofobia internalizada. Tendo nascido e crescido neste contexto, é praticamente impossível para um homossexual não internalizar mensagens negativas sobre a homossexualidade. Um terapeuta bem preparado é aquele que ajuda o paciente a perceber que sentimentos negativos como baixa auto-estima, isolamento social e auto-abuso são reflexo dos mecanismos de opressão social aos quais ele é submetido — e não de uma sexualidade patológica. “Sair do armário” requer enfrentar a homofobia, tanto a social quanto a internalizada. Um bom terapeuta é aquele capaz de ajudar o homossexual em todas as etapas deste processo de aceitação e fortalecimento do orgulho próprio. Diz Borges:

O objetivo da terapia afirmativa é basicamente ajudar o paciente a tornar-se mais autêntico, por meio da integração dos sentimentos, pensamentos e desejos homossexuais às diferentes áreas da sua vida, desenvolvendo assim uma identidade gay positiva.

Para fazer isso, no entanto, o psicólogo precisa de muito mais do que apenas considerar a homossexualidade algo positivo. Para Borges, “é fundamental que haja uma preparação que leve em conta não apenas os aspectos da psicodinâmica homossexualidade, mas também um conhecimento profundo sobre os desafios que os gays enfrentam por viver numa sociedade heterocentrada e homoignorante”. Conhecer os estilos de vida e a cultura gay, além das questões relacionadas aos direitos civis dos gays, é essencial.

Terapia afirmativa apresenta, então, um questionário que os psicólogos devem aplicar a si mesmos. Como o psicólogo também não vive no vácuo, mas na mesma sociedade heteronormativa, ele próprio tem de ter jogo de cintura para perceber se as suas crenças podem interferir de forma negativa na terapia. Segundo Klecius, um bom terapeuta reconhece quando tem limitações em relação a certos tipos de paciente e os encaminha outro profissional. O livro também traz um questionário para gays, lésbicas e bissexuais aplicarem aos seus candidatos a terapeuta, logo na primeira consulta. Assim, eles podem saber, logo de cara, se estão diante de uma Rozângela ou não.

Recomendo fortemente a obra.

::: Terapia afirmativa: Uma introdução à psicologia eà psicoterapia dirigida a gays, lésbicas e bissexuais :::
::: Klecius Borges ::: Edições GLS/Summus, 2009, 104 páginas :::
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