novembro 25, 2011

"Por um outro Belo Monte", por Bruno Cava


PICICA: "Mais problemático do que o governo Dilma estar construindo Belo Monte, é Belo Monte estar construindo o governo Dilma."

Por um outro Belo Monte



Belo Monte não é apenas uma usina. Se Brasília sintetizou o imaginário progressista do Brasil dos 1950, Belo Monte faz isso para o século 21. Nele, condensam as forças políticas, as esperanças, as perspectivas e as cosmovisões. Saturado de argumentos, estudos, relatórios, mitos, panfletos, manifestos e imposturas, Belo Monte é palco para todos os personagens da ópera brasileira. É onde se disputa a nova ordem, o Brasil do passado e do futuro. É onde coalha o Brasil Maior dos megaventos e do Pré-Sal: a nação-potência, enfim alavancada ao porvir que seus orgulhosos filhos desfrutarão. É a forja do novo homem brasileiro . Como em Idade da Terra (1980), último filme de Gláuber Rocha, os vários Cristos (Negro, Índio, Militar e Guerrilheiro) e o  Diabo (Brahms) se debatem entre liturgias e orgias pela revolução brasileira. Tudo aí está em jogo: tensiona, range, dói, estala e borbulha.


Do Estado Novo ao 2º Plano Nacional de Desenvolvimento da ditadura cívico-militar, até o Brasil Maior no século 21, os governos brasileiros têm respondido à crise global com saltos de desenvolvimento. Em 1929, 1973 e 2008, ocorreu debaixo da bandeira do nacionalismo, num consenso entre esquerda e direita. Nas três ocasiões, a nação do futuro não poderia ficar para trás em seus grandes inadiáveis projetos de modernização. Todas as vezes, isso significou converter o mito no plano . Executar esse grande Plano exigiu comando forte e centralizado (Vargas, Geisel, Dilma). Um que consiga fabricar consenso, reunir esquerda e direita, a grande imprensa e o capital nacional-internacional e a governança financeira. E a partir desse esforço de engenharia política investir maciçamente, propagandear a esperança e equacionar sacrifícios (aos pobres) e dividendos (aos ricos).


De passagem, é preciso tomar distância de homens-mediadores que tentam se acoplar a projetos de poder. Mais problemático do que o governo Dilma estar construindo Belo Monte, é Belo Monte estar construindo o governo Dilma. Se, com toda a consequência, participo de alguma força menor agenciada ao evento Lula-Dilma, por que teria de me sentir compelido a subsumir-me à Dilma Maior? Não me refiro a ser a favor ou contra, mas à tendência, à predisposição quase moral de apoio e lealdade.


Desta vez, o governo promete minimizar a perda e democratizar o ganho: remover a pobreza e socializar o trabalho. Nesse sentido, Belo Monte só pode ser mesmo a última grande obra socialista, como escreveu o sociólogo Giuseppe Cocco. Isto à medida que o projeto socialista se realiza na transformação do mercado de livres capitais individuais em capital coletivizado pela planificação estatal. Com mão invisível e pulso firme, chega-se ao socialismo do capital que permite crescer a taxas chinesas — eis o nosso horizonte.


A síntese mística do futuro, portanto, não é discutida. Prevalece uma poética grandiloquentemente wagneriana nas propagandas e discursos. Demais, impõe-se a dupla dialética: o curto e o longo prazos, problemas menores e maiores. E, com ela, certa métrica do desenvolvimento: como medir o valor, como quantificar perdas e ganhos, como produzir o homem.


Daí a pergunta não pode ser levianamente você é a favor ou contra a construção da usina?, nesse binarismo de vagas indignações e discussões de almoço de domingo. O caso é dramatizar: colocar o conflito e desenvolvê-lo em suas múltiplas vozes, sem deixar jamais de tomar partido.


Uma estratégia está em exasperar a indignação. Denunciar os abusos aos direitos humanos e ao meio ambiente. Provar por A + B dos malefícios incompensáveis. Listar opressões e convocar os yntelektuais para esgotar intelectualmente as perversidades cometidas. Desnudar as intenções verdadeiras do governo e seus aglomerados empresariais-financeiros, sua traição aos ideais de esquerda, sua impudente retórica de cartilha. Realçar como os povos da Amazônia, índios, caboclos, sertanejos e ribeirinhos são os coitados da história, literalmente tratorados de seu ecossistema e sem direitos. Ainda outra vez erigir o altar humanista e acusar esse mesmo homem por sua indústria desumana, contra as outras humanidades e a alma do mundo. Em parte, pequenos partidos e outros ainda sequer oficializados vêem aí oportunidade para desgastar a imagem do governo e capitalizar eleitoralmente as suas candidatas.


Outra estratégia, mais potente, consiste em construir a indignação. Elaborar uma cartografia das lutas reais. Orientar o carnaval, articular os movimentos sociais. Reelaborar uma antropologia natural, no perspectivismo do Brasil menor. É coordenar narrativas de outros mundos, outras humanidades, outros Brasis, multiplicando a resistência. Unidos menos pela natureza humana do que pelo homem como naturezas (no plural).


Mais do que isso, elaborar uma outra métrica, outro modo de medir, quantificar e valorar as relações sociais. Isto significa desprogramar o olhar, desmacetear a análise e passar a enxergar Belo Monte não só como produção de energia a partir da “natureza”, mas como a produção do próprio ser humano. Como se governa o acesso, a propriedade, a produção, a distribuição e a circulação dessa energia, como ela circula e se estrutura como força produtiva? Como se produz o comum artificial a partir do comum natural, quero dizer, o homem como naturezas? Aí, contra todas as utopias e progressismos, a diferença entre um ambientalismo fortemente commonista e os ecologismos metafísicos ou ecossocialismos exasperantes. Entre mortificar a indignação com apelos à má consciência e sacerdócios esquerdistas, — e alegremente construir a indignação, construir o comum, rir do poder e trabalhar na rede social de relações, ocupações, mídias, perspectivas e novos modos de viver e sentir e se relacionar. Em suma, constituir Brasis menores, minoritários, constituir o comum.


Belo Monte é nosso maior problema, seja na sua violência civilizatória como obra concreta aqui e agora, seja como prancheta messiânica, como alegoria e drama políticos. Mas o problema principal talvez não esteja propriamente na inocência do sofrimento, na violação da ecologia ou nas incongruências da matriz energética, — como insiste a maioria de seus opositores, com sólida argumentação, mas perspectiva desfocada.


Como escreveu Marx nos Grundrisse: “No ato da reprodução [da vida social] não se alteram apenas as condições objetivas, mas os próprios produtores se modificam, extraindo de si mesmos novas qualidades, desenvolvendo a si mesmos por meio da produção, se remodelando, formando novas forças e novas concepções, novos meios de comunicação, novas necessidades e uma nova linguagem” (p. 405 da ed. brasileira).


Talvez o problema principal esteja em como, — na afirmação de um outro Belo Monte, outra forma de governar e produzir, noutras palavras, na produção resistente de Brasis menores ou minoritários, — possamos reinventar o brasileiro, a nós mesmos em nossas infinitas naturezas humanas.

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Recomendados:


Os paradoxos do desenvolvimentismo nos governos Lula-Dilma, por Hugo Albuquerque, no Descurvo


Discurso às nações indígenas, por Cléber Lambert, na Revista Fórum


Belo Monte e Jirau, por Rodrigo Nunes, na Revista Global Brasil


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A recriação anacrônica do imaginário desenvolvimentista, por Raúl Prada, em Horizontes Nómadas



50 Leituras sobre Belo Monte, por Idelber Avelar, na Revista Fórum


Krysto Redentor, crítica de Idade da Terra, por Luís Alberto Rocha Melo, na Revista Contracampo


“Transformação” na antropologia, transformação da “antropologia”, conferência de Eduardo Viveiros de Castro, na revista Sopro 58



Dilma Rousseff e a encruzilhada do desenvolvimentismo, por Idelber Avelar, na Revista Fórum


Comentários sobre Belo Monte, por Miguel do Rosário, no Óleo do Diabo



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Fonte: Quadrado dos Loucos

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