PICICA: "Como uma pessoa – física ou jurídica – consegue se apresentar como detentor de uma área dessas proporções e se manter nessa condição por tanto tempo, como aconteceu no caso da Fazenda Curuá? (...) Responder a esta pergunta de maneira satisfatória e eficaz pode contribuir para fortalecer o primado da lei nos “grotões” do país, as distantes e geralmente abandonadas fronteiras nacionais. De forma inversa, manter tal anomalia significa perpetuar o domínio da violência e do respeito às regras da vida coletiva e ao superior interesse público."
LÚCIO FLÁVIO PINTO ANUNCIA O FIM DO MAIOR LATIFÚNDIO DO MUNDO
Por Lúcio Flávio Pinto*
A INCRÍVEL GRILAGEM RECORDE
A
maior propriedade rural do mundo deixou de existir legalmente na
semana passada. O juiz Hugo Gama Filho, da 9ª vara da justiça federal de
Belém, mandou cancelar o registro imobiliário da Fazenda Curuá, que
consta dos assentamentos do cartório de Altamira, no Pará. O imóvel foi
inscrito nos livros de propriedade como tendo nada menos do que 4,7
milhões de hectares.
Seu suposto proprietário podia se considerar dono da 23ª maior unidade
federativa do Brasil, com tamanho superior ao dos Estados do Rio de
Janeiro, Alagoas, Sergipe e do Distrito Federal. Suas pretensões
poderiam ainda exceder essas dimensões. Através de outros
imóveis, pretendia alcançar uma área de 7 milhões de hectares, duas
vezes e meia o tamanho da Bélgica, país onde vivem mais de 10 milhões
de habitantes.
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Seu suposto proprietário podia se considerar dono da 23ª maior unidade
federativa do Brasil, com tamanho superior ao dos Estados do Rio de
Janeiro, Alagoas, Sergipe e do Distrito Federal. Suas pretensões
poderiam ainda exceder essas dimensões. Através de outros imóveis,
pretendia alcançar uma área de 7 milhões de hectares, duas vezes e meia o
tamanho da Bélgica, país onde vivem mais de 10 milhões de habitantes.
Como uma pessoa – física ou
jurídica – consegue se apresentar como detentor de uma área dessas
proporções e se manter nessa condição por tanto tempo, como aconteceu
no caso da Fazenda Curuá?
Responder a esta pergunta de maneira satisfatória e eficaz pode contribuir para fortalecer o primado da lei nos “grotões” do país, as distantes e geralmente abandonadas fronteiras nacionais. De forma inversa, manter tal anomalia significa perpetuar o domínio da violência e do respeito às regras da vida coletiva e ao superior interesse público.
Responder a esta pergunta de maneira satisfatória e eficaz pode contribuir para fortalecer o primado da lei nos “grotões” do país, as distantes e geralmente abandonadas fronteiras nacionais. De forma inversa, manter tal anomalia significa perpetuar o domínio da violência e do respeito às regras da vida coletiva e ao superior interesse público.
Em primeiro lugar porque o
Estatuto da Terra, editado pelo primeiro governo militar pós-1964, o do
marechal Humberto Castelo Branco (destaque acima), continua em vigor.
Esse código agrário sobreviveu à Constituição de 1988 e se revelou
superior em confronto com as regras da Carta Magna. O estatuto, com seu
propósito de modernizar o campo brasileiro (mesmo que de forma
autoritária, à semelhança do que fez o general MacArthur com o Japão
ainda semi-feudal, derrotado pelos americanos na Segunda Guerra
Mundial), proíbe a constituição de propriedade rural com área acima de
72 mil hectares (ou 600 vezes o maior módulo rural, o destinado ao
reflorestamento, com 120 hectares).
A Fazenda Curuá foi registrada
com quase 60 vezes o limite legal. Por que o cartorário legalizou a
matrícula do imóvel com sua fé pública, ele que é serventuário de
justiça, sujeito à polêmica (e questionada pelo Conselho Nacional de
Justiça da ministra Eliana Calmon) Corregedoria de Justiça do Estado?
A apropriação ilegal de terras
públicas, fenômeno a que se dá a qualificação de grilagem, é simples,
embora de aparência complexa para o não iniciado nos seus meandros.
Ainda mais porque lendas são criadas em torno da artimanha dos espertos
e passam a ser apresentadas como verdade.
Muita gente
acredita que a expressão grilagem se deve à prática dos fraudadores de
colocar papéis para envelhecer artificialmente em gavetas com grilos.
A verdade é menos engenhosa. A
origem é romana e diz respeito ao fato de que a terra usurpada serve
para a especulação imobiliária e a formação de latifúndios
improdutivos. Tanta terra não cultivada acaba servindo de pasto para
grilos. Uma maneira de estigmatizar o roubo de terras públicas de forma
popularizada.
O espantoso, no caso da
Fazenda Curuá, é que o golpe tenha se mantido por tantos anos. A ação
de cancelamento foi proposta em 1996 pelo Instituto de Terras do Pará.
Apesar
de ter provado que nenhum título de propriedade havia na origem do
imóvel, a justiça estadual manteve o registro incólume, decidindo
sempre contra o órgão público.
Até
que o Ministério Público Federal e outros órgãos da União conseguiram
desaforar o processo para a justiça federal, que, afinal, reconheceu a
ilegalidade da propriedade e cancelou o registro.
Essa tramitação acidentada e pedregosa seria evitado se a justiça do Pará tivesse realmente examinado as provas dos autos. Neles está demonstrado que o uso das terras no rico vale do Xingu, onde está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte e agem com sofreguidão madeireiros e fazendeiros, começou em 1924.
Moradores da região foram autorizados a explorar seringueiras e castanheiras localizadas em terras públicas, através de concessões com tempo determinado de vigência e para fim específico. Exaurida a atividade extrativa vegetal, a área deixou de ter uso, mas algumas pessoas decidiram inscrevê-la em seu nome. Como os cartórios não se preocupavam com o rigor da iniciativa, até mesmo dívidas em jogo deram causa à transmissão da inexistente propriedade de um detentor para outro, formando cadeias sucessórias.
A lesão ao patrimônio público por
causa dessas práticas ilícitas permaneceu latente até que uma das
maiores empreiteiras do país colocou os olhos nesse mundo de águas,
florestas, solos e animais. A C. R. Almeida, criada no Paraná por um
polêmico engenheiro, Cecílio do Rego Almeida (foto abaixo), que nasceu
no próprio Pará, comprou uma firma de Altamira por preço vil (sem
sequer pagá-lo por inteiro).
No ativo da firma estavam as
terras cobiçadas. Não conseguindo regularizá-las pela via legal, por
ser impossível, o empreiteiro decidiu se apossar da área à base do fato
consumado e passando por cima de quem se colocasse no seu caminho.
Montou uma pequena base no local, contratou seguranças, seduziu os
índios vizinhos e fez uso da máquina pública que se amoldou à sua
vontade. Os que resistiram à grilagem foram levados às barras dos
tribunais, que sempre decidiram em favor do grileiro.
Os magistrados da justiça
estadual não se sensibilizaram sequer pela publicação do Livro Branco
da Grilagem, editado pelo Ministério da Reforma e do Desenvolvimento
Agrário, que não deixava dúvida sobre a fraude praticada. Nem pelos
resultados das comissões parlamentares de inquérito instauradas em
Belém e em Brasília. Ou pelas seguidas manifestações de todas as
instâncias do poder público, estadual e federal.
Enquanto
exerceu sua jurisdição sobre o caso, a justiça do Pará ficou ao lado
do grileiro e de seus herdeiros, quando ele morreu, em 2008.
Foi preciso que o processo
chegasse à justiça federal para, finalmente, 15 anos depois da
propositura da ação pelo Iterpa, secundado por outros agentes públicos,
a situação se invertesse. Não é ainda uma decisão definitiva. Os
herdeiros da C. R. Almeida deverão recorrer. Mas já sem o registro
cartorial que lhes permitia manipular terras como se fossem os donos do
22º maior Estado brasileiro.
Quem sabe, a partir de agora, a intensa grilagem, um dos males que assola a Amazônia, não possa refluir?
Lúcio
Flávio Pinto é editor do Jornal Pessoal, newsletter quinzenal que
circula em Belém desde 1987. Já recebeu quatro prêmios Esso e dois
Fenaj, além do International Press Freedom Award. Tem 15 livros
publicados, a maioria sobre a Amazônia.
Fonte: Yahoo!
Fonte: Yahoo!
Fonte: MILITÂNCIAVIVA
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