novembro 06, 2011

"A pele que habito de Pedro Almodóvar", por Leandro Calbente

PICICA: "(...)essa é a tese essencial do filme, essa crença na existência de algo que não pode ser destruído, que se encontra resguardado da violência e da manipulação, um núcleo que preexiste ao poder. A coerência dessa tese fica ainda mais evidente quando pensamos na própria estrutura do filme." 


A pele que habito de Pedro Almodóvar



Enxergo uma rigorosa coerência entre a forma e o conteúdo do novo filme de Pedro Almodóvar, A pele que habito. No caso, quando falo em conteúdo, penso exatamente na tese que sustenta o filme. E é por ela que iniciarei. O filme narra a obsessão de Robert Ledgard, um médico transtornado com a perda de sua família. Primeiro foi sua esposa. Após uma tentativa de fuga com o amante, ela sofreu um grave acidente e teve seu corpo quase inteiramente queimado. Apesar dos danos, os esforços de seu marido conseguiram salvá-la, mas não impediram que seu corpo ficasse permanentemente danificado. São essas marcas que a levam ao suicídio. A tragédia se amplia, pois a pequena filha do casal presenciou a morte da mãe, fato que a deixou completamente abalada, e nem mesmo uma lenta recuperação psiquiátrica foi capaz de recuperar sua estabilidade. A tragédia se completa quando ela conhece Vincente numa festa. O jovem rapaz tenta estuprá-la e isso provoca seu completo colapso. Dias mais tarde, ela também se suicida.
A dupla perda deixa Robert obcecado com a ideia de vingança. Impossibilitado de descarregá-la naquele que provocou a morte de sua esposa, sua fúria vingativa se lança sobre o rapaz que provocou o colapso de sua filha. Então, ele decide puni-lo da forma mais radical. Não deseja simplesmente matá-lo, mas verdadeiramente destruí-lo. Após aprisioná-lo, o doutor começa uma lenta operação: primeiro, são as mudanças mais superficiais, pêlos e cabelos; depois, mudanças mais profundas, a redefinição sexual do corpo do rapaz; em seguida, a transformação da marca mais evidente da personalidade de alguém, o rosto; finalmente, é a própria memória que precisa ser alterada. No final, o rapaz deixa de ser o que era e se transforma no seu contrário. Uma moça, a própria recriação da esposa falecida.
Vicente não é mais ele próprio, mas se transforma em Vera, uma moça sem história, sem passado. O que acompanhamos, portanto, é o processo completo de reconstrução de uma subjetividade. E como todo processo de subjetivação, existe uma relação de poder que o perpassa e o estrutura. O médico se torna quase um demiurgo que consegue moldar ao seu bel prazer esse novo individuo. É como a partir da construção de um novo corpo, fosse possível elaborar uma nova intimidade, um novo ser. Porém, esse processo não é de mão única, não existe violência sem resistência e luta. Existe algo que permanece apesar de todo esforço do médico, uma espécie de substrato que não cede e não desiste de lutar contra a manipulação. Por baixo de todas as camadas de Vera, há algo que sobrou de Vicente. Uma espécie de assinatura, uma marca profunda da intimidade desse sujeito. É como se por baixo de toda mudança, de todas as camadas criadas e sobrepostas, ainda existisse uma essência que não pode ser anulada, que não pode ser manipulada. Tal essência aparece na forma de uma assinatura, portanto precisa ser desvendada, decifrada. Vera opera uma espécie de investigação sobre si própria, bem ao feitio do conhece-te a ti mesmo. São as pequenas reminiscências de uma subjetividade em fragmentação, o trabalho de rasura e marcação que Vicente realizava lentamente enquanto passava pela transformação, que permitem esse gesto hermenêutico, a decifração dessa assinatura.
Pode-se dizer, portanto, que essa é a tese essencial do filme, essa crença na existência de algo que não pode ser destruído, que se encontra resguardado da violência e da manipulação, um núcleo que preexiste ao poder. A coerência dessa tese fica ainda mais evidente quando pensamos na própria estrutura do filme. A trama é construída a partir da manipulação de inúmeras figuras clássicas dos filmes de gênero. O médico maluco, o cativeiro, a operação, a ameaça da medicina, o corpo Frankenstein, etc. O filme é montado a partir da colagem desses elementos, como se fossem partes de uma nova pele que se introduz sobre um universo anterior. A presença desses elementos provoca uma sensação de heterogeneidade e incoerência. E o desenvolvimento da trama parece beirar o puro maneirismo, como num exercício de estilo desprovido de sentido ou propósito.
Porém, isso não ocorre. Existe algo nessa colagem de elementos que surpreende o olhar e que subverte a simples imitação do filme de gênero. Esse algo é uma espécie de assinatura, de marca que subsiste ao conjunto de elementos sobrepostos, dos clichês e dos estilos imitados. Uma marca de autoria, de singularidade. A força do universo almodovariano se manifesta nos detalhes. E são esses detalhes que dão vigor e ritmo à narrativa, subvertendo as próprias limitações do filme de gênero. É como se o filme enunciasse, no movimento de suas cenas, a mesma tese que aparece no interior do seu discurso. O corpo do filme (suas cenas) pode ser constantemente recriado, mas continua guardando um elemento que lhe antecede e lhe insufla vida. E o trabalho do espectador é desvelar essa intensidade da assinatura do autor, que resiste e se manifesta nos detalhes e nas nuances, nas pequenas rasuras que escapam das novas camadas de pele.


Fonte: Ensaios Ababelados

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