PICICA: "(...)segundo Fátima Oliveira, o respeito às metas do milênio integrante da justificativa de medida não pode ignorar os outros compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito da própria ONU e em outros acordos internacionais. Especialmente no que diz respeito à Conferência sobre População e Desenvolvimento, que aconteceu no Cairo, em 1994, há orientações claras sobre os conceitos relacionados à saúde e direitos reprodutivos e que fala de um assunto do qual a débil argumentação do Ministério tenta fugir: o abortamento inseguro como principal causa da mortalidade materna no Brasil."
O presente de natal da presidenta para as mulheres não poderia ser mais inquietante: no dia 27 de dezembro a Medida Provisória 557 foi publicada no Diário Oficial. Seu objetivo é instituir o Sistema Nacional de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento de Gestante e da Puérpera para Prevenção da Mortalidade Materna.
Logo que a medida foi publicada, diversas feministas se posicionaram criticamente e levantaram questões muito importantes sobre o atendimento médico às mulheres grávidas e as reais implicações da medida.
O primeiro estranhamento é sobre a necessidade de uma medida provisória com caráter de urgência. Na exposição de motivos apresentada, os ministros Alexandre Padilha, Guido Mantega e Miriam Belchior alegam que apesar dos esforços empreendidos nos últimos anos, seria preciso instituir imediatamente um cadastro nacional e público de todas as mulheres grávidas, que por sua vez receberiam uma quantia de R$50 como ajuda de custos para continuarem o pré-natal durante toda a gestação. Assim, seria possível reduzir a mortalidade materna, compromisso assumido pelo país com as metas do milênio.
Segundo o Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e a Portaria nº 68, publicada em 11 de janeiro, o cadastro não é obrigatório, embora seja necessário para quem deseja receber o benefício. A questão é que o SUS já tem diversos mecanismos de acompanhamento das mulheres grávidas e inclusive um cadastro para controle da mortalidade, o SIM, como os próprios ministros admitem naexposição de motivos:
[...] foi criado no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, o Módulo de Investigação de Óbitos de Mulheres em Idade Fértil, que permite o registro das ações de investigação e estudo de cada óbito, pelo Distrito Federal e Municípios, contribuindo para o monitoramento dessa prática. Os resultados oriundos desse sistema permitiram identificar que mais de70% dos óbitos de mulheres em idade fértil ocorridos em 2010 foram investigados.
Se o SUS já tem um cadastro, por que tentar criar outro, por meio de Medida Provisória? Segundo o assessor do Ministério da Saúde, Fausto Pereira, em entrevista ao Viomundo, com a MP 557, “a subida desse cadastro para o Ministério torna-se obrigatória. Isso vai melhorar o monitoramento, que terá mais agilidade. Esse é o objetivo do cadastro”. O cadastro, portanto, é obrigatório para todas as mulheres que quiserem receber o benefício.
Segundo Beatriz Galli, em entrevista ao portal Viomundo, o problema no SUS não é estrutura do pré-natal para as gestantes, o problema é que não há controle de qualidade do atendimento. “A MP 557, nesse sentido, não garante acesso a exames, diagnóstico oportuno, profissionais treinados em emergência obstétrica, transferência imediata e vaga para uma unidade de maior complexidade. Isso sim nos faria cumprir as metas do milênio e os outros acordos internacionais”.
Aliás, segundo Fátima Oliveira, o respeito às metas do milênio integrante da justificativa de medida não pode ignorar os outros compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito da própria ONU e em outros acordos internacionais. Especialmente no que diz respeito à Conferência sobre População e Desenvolvimento, que aconteceu no Cairo, em 1994, há orientações claras sobre os conceitos relacionados à saúde e direitos reprodutivos e que fala de um assunto do qual a débil argumentação do Ministério tenta fugir: o abortamento inseguro como principal causa da mortalidade materna no Brasil.
A MP 557 não só não enfrenta o problema como empurrou um item muito presente em outros projetos de lei, conjunto integrante do “Estatuto do Nascituro”. O ponto de maior discussão do movimento feminista é o Artigo 19-J, que estabelece que “Os serviços de saúde públicos e privados ficam obrigados a garantir às gestantes e aos nascituros o direito ao pré-natal, parto, nascimento e puerpério seguros e humanizados”. Segundo Fátima Oliveira, ao dizer “garantir às gestantes e aos nascituros”, a medida deixa de considerar a mulher como sujeito das ações de saúde, principal beneficiária, e estabelece direitos para o nascituro.
Como lembra Beatriz Galli, o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou sobre a questão do nascituro, em maio de 2008, no julgamento histórico da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.510, que liberou a pesquisa com células-tronco embrionárias no Brasil, o ministro-relator Ayres Brito:
O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere à Constituição.” (ADI 3.510, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 29-5-2008, Plenário, DJE de 28-5-2010.)
“O nascituro não existe sem a mãe. Logo, ao se cuidar da mãe, está se cuidando dele. Não tem sentido dar-lhe personalidade civil, como tenta a MP 557. É inconstitucional”, afirma Sônia Corrêa, do SOS Corpo. Para Guacira César, do CFEMEA, “o direito da mulher não pode ser preterido em relação ao direito do que ainda não é vida. É uma menção muito perigosa, pois equipara direitos distintos e abre brecha para que, em casos de estupro, o feto gerado tenha mais força que o direito da mulher a interromper a gravidez”, argumenta a diretora do CFEMEA.
Nesse sentido, a MP 557 acrescenta muito pouco em termos de efetividade à luta pela diminuição da mortalidade materna. Na verdade, o que ela faz é retroceder, já que o pagamento de R$50 para as gestantes dá contornos clientelistas à política, não garante a melhora do atendimento e ainda provoca um imenso retrocesso no debate sobre o atendimento ao abortamento inseguro.
Pelo caráter de urgência, o Congresso começa a discutir a MP 557 logo no início dos trabalhos, e, fevereiro e até março deve decidir sobre a proposta. Cabe aos movimentos de mulheres se manifestarem e exigirem dxs parlamentares que a medida não seja aprovada retrocedendo em todas as conquistas alcançadas até agora e contrariando os compromissos assumidos pelo Governo na última Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres.
Nenhum comentário:
Postar um comentário