janeiro 14, 2012

"Warhol, Cracolândia, OcupaRio", por Bruno Cava


Cinelândia no dia seguinte à remoção, OcupaRio não foi pro lixo [Foto: Rodrigo Torres]
PICICA: "Estávamos num impasse neurótico. Apenas inventariávamos as infelicidades, em vez de enfrentar com tudo o que tínhamos o nosso problema, que também era o problema da pólis. Daí a acepção profundamente política. Alguns lamentavam-se e culpavam-se o que não haviam causado. Foi quando sucedeu uma remobilização, um segundo esforço para superar as condições neuróticas da ocupação. Luta perdida é a que se abandona. Era preciso vencer a cracolândia molecular, a cracolândia gasosa, a cracolândia de circuitos e loops traumáticos, de loucuras circulares que a violência da ordem vai multiplicando, que o choque de ordem tem sido um transmissor central e maciço. Muitos se desmobilizaram, vieram outros, mais otimistas, mais ingênuos do amor. Um grupo de trabalho de educação começou a aplicar a pedagogia ao gosto de Paulo Freire. Organizaram-se sessões de cuidado, alfabetização, corte de cabelo, informativas de saúde, educação física e recreativas. Em suma, um conjunto de políticas sociais que tomam por vários lados a questão da saúde (física ou mental). AOcupaRio se tornou uma espécie de referência (“precedente”), para pessoas em situação de rua pelo Rio de Janeiro, objeto de comentários nas quebradas, abrigos e outras cracolândias. Com isso, ela voltava timidamente a produzir, com um enfoque mais corporal, mais biopolítico do que pautas de reivindicações ou palavras-de-ordem. Já se articulavam mutirões e reocupações para as férias de verão."
Warhol na Cracolândia
Em 2010, visitei a exposição Mr. America em São Paulo. Muito badalada, estavam expostos os trabalhos de Andy Warhol com latas de molhos de tomate Campbell, bananas Velvet e retratos de Marilyns, Elvis, Maos, Nixons e Johns Lennons, além de curtas-metragens como Malba ou Blow Job. Fui de metrô, descendo na estação Luz. Achava que a exposição acontecia na Pinacoteca do Estado, logo ali. Mas não, era na Estação Pinacoteca, a 500 metros de onde tinha descido. Para chegar, era preciso seguir a pé pela Rua Mauá. Quer dizer, era preciso uma caminhada de domingo na Cracolândia.
Percebi que muitas pessoas cometeram o mesmo erro que eu. Desciam na Praça da Luz de táxis vindos de bairros chiques. Eram muitos, porque a exposição bombava. Andy Warhol ainda é o príncipe da pop art e costuma atrair uma entourage de admiradores. Nas graças da mídia, Mr. America se tornou parada obrigatória para paulistanos cultivados. Um local de peregrinação para designers, estilistas, publicitários, produtores de televisão, performistas, acadêmicos da Faap e da USP, além das diversas tribos da capital: indies, emos, cools, anarco-queers, neo-punks, situacionistas de butique e todos quantos. Vinham de seus flats na Haddock Lobo ou na Oscar Freire, de seus lofts da Rua Augusta, de seus casarões no Morumbi, de condomínios em Higienópolis ou Alphaville, de apartamentos modernos com paredes de gesso e cozinhas planejadas.
Toda essa gente diferenciada também teve de cruzar a Cracolândia, no percurso entre a Praça da Luz e a Estação Pinacoteca. Definitivamente, a Cracolândia não estava no programa. O contraste chamava a atenção. Uma procissão de criaturas coloridas e bem alimentadas indo e vindo, em meio ao deserto cinzento de ossos e nóias do centro de São Paulo. Apesar do policiamento, isso não evitava que alguns visitantes fossem abordados pelos cracolandeses. A maioria dava trocados e tirava fotos, num misto de curiosidade e condescendência. Entre a antropologia e o turismo, se deparavam com um coquetel de sexo, drogas e moda que não tinha nada do glamour de Andy Warhol. Mas dava pra sentir uma adrenalina.
Depois da visita à exposição, acabei me juntando a um grupo que debatia na cafeteria. Em certo ponto da conversa, alguém disse que a única experiência estética possível na ocasião havia ocorrido lá fora. A contemplação dos trabalhos da pop art significava pouca coisa diante do passeio pela Cracolândia. Que ali pulsava uma vivência produtora de sentidos originais. Como no teatro da crueldade de Antonin Artaud, éramos atingidos pela violência e miséria em estado brutal, num só golpe e sem mediações. Em vez do luxo, o lixo. Em vez do american dream, o pesadelo paulistano. Teria sido uma injeção de vitalidade capaz de ressignificar o trabalho dos artistas, capaz de transfigurar o real nas formas pregnantes do visível e do sensível. Inspirador, concluiu a pessoa.
Polemizei na hora, o que quebrou a atmosfera de papo de cafezinho.
Pra mim, era tão inspirador quanto assistir a programas televisivos sobre o crime na cidade, com seus apresentadores fascistinhas. Era a mesma coisa, só que vista com indulgência. Alimenta-se da distância entre nós, os “civilizados”, e eles, os “cracudos”, na medida mesma em que permanece intransponível. Ir ao local e olhar com os próprios olhos não significa apreender a violência da situação. Essa só poderia ser formulada na sua verdade através da ótica e da linguagem dos que sofrem, na afirmação dessa dor como revolta e reinvenção. Que é coisa distinta de reproduzir a lógica do sujeito que vê o outro de cima, muito de cima, como objeto de suas boas intenções. Caridade de madame ou estetização da miséria dão igual: a mesma apropriação de um sofrimento alhures para o consumo do ego. Não é como se tornar a Boca do Lixo no nível da poética, mas, sim, como ir ao lixo filmar os lixeiros para concorrer ao Oscar. A caminhada na Cracolândia, desse jeito, não passa de safári urbano, como andar de trem fantasma pelos horrores tão alheios a nós. E assim nos confirmam a normalidade e, em confirmando, reconfortam-nos de nossa superioridade face aos seres desviantes.
Cracolândia na OcupaRio
Um ano depois eu estava acampado na OcupaRio, na praça da Cinelândia. Começou na mobilização de 15 de outubro (15-O), como uma ocupação intensiva do espaço público. Foi organizada por militantes e universitários determinados a construir outra política, além da representação estatal, partidária e jornalística. Reuniu um campo abrangente de personagens sociais, com múltiplas agendas e desejos de mudança. Éramos mais de 150 barracas, tendas temáticas, mídias livres, grupos e subgrupos de trabalho. Foi das experiências mais sensacionais, muito mais produtiva e expressiva do que obscuros encontros de aparelhos militantes de classe média ou que colóquios previsíveis das juventudes partidárias ou da UNE.
Aos poucos, os problemas crônicos da cidade começaram a desaguar naOcupaRio. Instalou-se a luta dos afetos ativos pela transformação contra as paixões tristes, que o lado cinzento da cidade faz circular. Paixões tristes que vagueiam sem consciência pelas ruas e casas, que irritam e ressentem e fazem todos acusarem-se uns aos outros, desencantando. Até que as redes e fluxos produtivos estancaram e a ocupação a céu aberto acabou soterrada por essa violência adensada dia após dia. A acumulação de violências não foi gerada espontaneamente pela acampada, menos ainda por falta de policiamento, mas pela própria metrópole transbordante de opressões e ressentimentos. Afligiram-nos os efeitos recalcados em vários níveis por uma ordem urbana desigual, racista e violenta, seus traumas e neuroses e recalques individuais e coletivos. A festa revolucionária cedia lugar à lei da sobrevivência; sucederam furtos, brigas, ameaças de morte, agressões sexistas e crack.
Lembro-me exatamente o instante em que percebi o ponto de neurose. O número de barracas havia caído para menos de 80, muitas já imundas e abandonadas. Eu já não estava mais virando a noite lá. Era meia-noite e a OcupaRio se preparava para mais uma noite mal dormida. Nessa hora, uma das mulheres acampadas estava incorporando uma entidade desconhecida no meio da praça, enquanto o socorrista da Cruz Vermelha, também acampado, tentava lidar com a situação da melhor maneira. Olhei ao redor e enxerguei. Vi crianças mal nutridas, mulheres em trapos, tantas pessoas magras e feias e sujas, semianalfabetas e desdentadas, eram talvez 90% de quem pernoitava. De repente, o acampamento me adquiriu outra luz. Tínhamos conseguido, sim, politizar a acampada. Ali estava o foco: todas as pautas da metrópole condensadas e intensificadas num espaço-tempo. As pessoas que sequer aparecem no mundo político, essas que, de jeito nenhum, são representadas. Mas, apesar do sucesso na composição dos vários grupos sociais, se mostrava difícil superar a montanha de afetos negativos, que infestavam todas as relações. Era como tentar abraçar violentas ondas do mar, só para levar um caldo. Começamos como acampamento de verão e tínhamos a nossa própria Cracolândia. Muitas pedras no caminho: a frustração, a culpa, o medo, a impotência.
Estávamos num impasse neurótico. Apenas inventariávamos as infelicidades, em vez de enfrentar com tudo o que tínhamos o nosso problema, que também era o problema da pólis. Daí a acepção profundamente política. Alguns lamentavam-se e culpavam-se o que não haviam causado. Foi quando sucedeu uma remobilização, um segundo esforço para superar as condições neuróticas da ocupação. Luta perdida é a que se abandona. Era preciso vencer a cracolândia molecular, a cracolândia gasosa, a cracolândia de circuitos e loops traumáticos, de loucuras circulares que a violência da ordem vai multiplicando, que o choque de ordem tem sido um transmissor central e maciço. Muitos se desmobilizaram, vieram outros, mais otimistas, mais ingênuos do amor. Um grupo de trabalho de educação começou a aplicar a pedagogia ao gosto de Paulo Freire. Organizaram-se sessões de cuidado, alfabetização, corte de cabelo, informativas de saúde, educação física e recreativas. Em suma, um conjunto de políticas sociais que tomam por vários lados a questão da saúde (física ou mental). AOcupaRio se tornou uma espécie de referência (“precedente”), para pessoas em situação de rua pelo Rio de Janeiro, objeto de comentários nas quebradas, abrigos e outras cracolândias. Com isso, ela voltava timidamente a produzir, com um enfoque mais corporal, mais biopolítico do que pautas de reivindicações ou palavras-de-ordem. Já se articulavam mutirões e reocupações para as férias de verão.
Nesse ínterim, a grande imprensa conseguiu forjar o consenso para o choque de ordem desalojar a OcupaRio.
Foi numa madrugada de sábado para domingo, depois de muitos alarmes falsos falsamente difundidos. Eles chegaram com muitas viaturas numa ação dúplice da prefeitura e do governo do estado. Policiais militares com cachorros no perímetro, guardas municipais com os coletes do Choque de Ordem e cassetetes em riste e uma tropa da Companhia Municipal de Limpeza Urbana. Foi rápido e não houve conflito. Depararam-se com uma ocupação exausta, de quase 50 dias da aspereza do concreto, de desgastes e inglórias. Desmontaram barracas, tendas e equipamentos, atirando tudo no caminhão da Comlurb. Também foram pro lixo livros, mochilas, coisas pessoais diversas. A biblioteca com 300 volumes foi esparramada pelas sarjetas de ruas próximas, onde, dias depois, encontrei dois Jorges Amados e um André Malraux. O caminhão pipa concluiu a operação com muito ódio. Em questão de hora e meia a ocupação estava completamente deletada. A Cinelândia amanhecia num domingo mais igual do que os outros, no retorno do espaço público de ninguém, o eterno retorno do mesmo.
Aí aconteceu o que eu ainda não tinha testemunhado em outras desocupações urbanas. Junto do choque de ordem e lixeiros, apareceram assistentes sociais. Escolhiam alguns acampados e levavam para as vans, para o tal recolhimento. Alguém pergunta a eles: “Mas como saber quem é cracudo?” A seleção tinha uma premissa simples. Todos eram potencialmente “cracudos”. O assistente social não precisa provar que fulano é cracudo, mesmo porque não teria como. Basta a possibilidade, basta ele poder ser cracudo. Como, de acordo com o princípio do terceiro excluído, todos podemos ser e podemos não ser cracudos, essa suspeita na prática se aplica a qualquer um. Quem decide é a força de desocupação. É suficiente, portanto, a decisão. Decidir quem é potencialmente cracudo a ponto de merecer ser recolhido. No fundo, somos todos cracudos, até que o estado diga que não somos. No caso da OcupaRio, ficou fácil para os agentes da ordem selecionarem. Quem era branco, tem domicílio e os dentes na boca, como eu, não é potencialmente cracudo, deve ser liberado. Quem é esfarrapado, preto de tão pobre, e sem todos os dentes, esse é (potencialmente) cracudo. O resultado dessa equação de primeiro grau foi que quase todos os pobres e negros foram recolhidos nas vans e escoltados pelas assistentes sociais, alguns para um abrigo a 45 km do centro da cidade. Depois que se virassem para sair e retornar.
E é difícil contra-argumentar por dentro do sistema, porque não acontecem prisões formais. Por exemplo, a OcupaRio foi removida como lixo sem a apresentação de nenhuma ordem judicial, sem a lavratura sequer de um auto de prisão em flagrante. Aliás, nenhum documento foi apresentado em absoluto. Segundo os agentes da ordem, tratava-se meramente de aplicar uma postura municipal administrativa, quanto à utilização de praças públicas. No caminho dos abrigos, passaram por delegacias para checar os antecedentes, embora os delegados tentavam se livrar deles o mais depressa, tratados como um estorvo ao serviço do plantão. Algumas crianças e adolescentes foram separados dos pais e levados para outros abrigos, de onde não podem sair. Uma semana depois, ainda tinha um adolescente gay da OcupaRio recolhido num abrigo, sob constantes agressões e abusos por outros recolhidos. Ele teve de exercer o seu direito de resistência como cidadão e fugir. Na semana seguinte, a desocupação foi comunicada à imprensa como uma bem-sucedida ação social, mais uma medida de revitalização para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. A desocupação e o recolhimento aconteceram em regime de estado de exceção e ainda foram considerados benéficos aos próprios removidos, num duplipensar de fazer inveja a Big Brother.
Se o crack é o novo nome do Diabo, contra quem tudo se justifica aos olhos da mídia e do estado; cracolândia é como passamos a chamar os nossos escravos mais expostos e sensíveis, contra quem nunca deixaram de vibrar os representantes desta sociedade neo-escravocrata. É tudo vagabundo.

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