PICICA: "Advogado, criminólogo, jurista, filósofo, crítico musical, ex-defensor público, pianista, enxadrista, boêmio e militante de todas as horas, das longas noites de infâmia e dos dias brilhantes de vitória." Em Tempo: Para conhecer mais esse jovem espírito livre, leia o vibrante texto de Bruno sobre Alexandre Mendes.
O Alexandre é daquelas pessoas que, quando você conhece, percebe que não precisa postular espíritos livres. Advogado, criminólogo, jurista, filósofo, crítico musical, ex-defensor público, pianista, enxadrista, boêmio e militante de todas as horas, das longas noites de infâmia e dos dias brilhantes de vitória. Conheci-o num dos infinitos grupos de estudo na universidade. No primeiro bar, fez questão de deslindar cada citação oculta de minhas falas: “Sartre, né?”, “agora, Benjamin…”, “Oswald…”. Entre bebidas e narguilés, foram muitas maratonas de cinefilia, intermináveis Tarkovskis madrugada adentro, sete assistências a Terra em Transe, mais de vinte da primeira sequência de Fellini 8 1/2. Compartilhamos da preferência por Michel Foucault (o Alexandre estava tão saturado do pensador que efetivamente conversava com ele nos sonhos, pedia-lhe conselhos), pelas Bachianas (sobretudo o 1º movimento da 3), pelo xadrez (vício que herdou do pai, com farta biblioteca enxadrística em casa), pela black music setentista (cuja história no Brasil está para ser escrita), por Gilberto Gil (a quem estendemos uma faixa “Para Presidente!”, no show) e por um lulismo de combate. Escrevemos um livro juntos. Formávamos um círculo onde me sentia como num romance de Cortázar, afogados que vivíamos numa erudição intransigente, entre livrarias, botequins e cafés.
Mas Alexandre não é apenas um diletante. Já percebera isso quando conjugávamos as forças no movimento estudantil. Ele, apaziguador e todo carisma; eu, destrutivo e debochado. Ambos, embriagados de ironia, inconformismo, e do Grande Amor que move a boa política. Na agitada cena do primeiro mandato do presidente Lula, polemizamos com esquerdistas e governistas. Infiéis da balança, estivemos juntos na chapa tropical-anarquista Babilônia, no fogo cruzado entre as tropas da UJS e as seitas do PSOL. Uma defesa do governo Lula além dos governistas, além do petismo (por vezes ressentido, noutras simplesmente aparelhado), além do próprio Lula. Como bons nômades e pós-modernos, era fácil desqualificar-nos. Entre a esquerda ascética, éramos festivos, entre festivos, muito “movimento estudantil”; entre socialistas, anarquistas; entre anarquistas, muito vermelhos; junto a militantes, intelectuais; entre intelectuais, muito militantes… O nômade não habita, ele transita, e transitando, se torna difícil agarrá-lo, domesticá-lo, — e isso consiste numa postura política, um surplus de vida, pois permite que o nômade sucessivamente se coloque mais além, ali, naquele lugar imprevisto onde os dispositivos de poder (ainda) não estão à nossa espreita. O nômade nunca confessa tudo e nunca é totalmente confiável: persiste um suplemento de desconhecido, de mistérios e perigos.
Alexandre então ingressou na defensoria pública do estado. E passou a jogar no jogo do judiciário, a alta casta do estado brasileiro, esse imenso cenário de dementes. Somente um espírito artimanhoso, felliniano, poderia dançar nessas bandas sem se bandear, sem se tornar um paralítico mental, sem burocratizar a alma. Alexandre usou de toda a sua ginga para defender o réu brasileiro, preto e pobre, da gana punitivista onde comparecem juristas, jornalistas e os almoços de classe média. Apesar dos labirintos do funcionalismo, Alexandre conseguiu chegar ao núcleo de terras e habitação da defensoria, onde escreveria parte da história da instituição nos próximos cinco anos. Ali, nunca foi defensor de gabinete. No NUTH, participou da construção de um bunker da resistência militante, junto de outros defensores incondicionalmente defensores públicos, junto de estagiários duros de roer, que não estavam ali para bajular e ser escravizados, como muitos patrões esperam deles. O Grande Amor do NUTH, a sua produção de subjetividade. Defenderam os pobres contra o rolo compressor de poderes públicos, da propriedade, dos donos da cidade. Movimentos sociais e NUTH compunham a mesma articulação política, uma das poucas articulações potentes contra o consenso progressista que erradica os pobres para longe. Lembro-me que, nessa época, ele estava tão engajado na missão, que era difícil falar com ele. De fato, nem apareceu em meu aniversário de 30 anos, por causa de uma remoção na calada da noite, onde teve de atuar. Alexandre aparece no fronte das batalhas, por exemplo, neste documentário (a partir dos 11:20). Nas muitas contra-operações, o defensor levou bombas de gás, borrachadas, sprays de pimenta, plantou-se numa casa em plena demolição e resistiu a seguidas intimidações de policiais e funcionários da prefeitura.
Num Rio de Janeiro higienista e urbanista, olimpicamente fascistizante, Alexandre realmente incomodou muito. O NUTH se tornou uma pedra no sapato dos governos. Toda mobilização que dependa do estado também se sujeita à desmontagem por dentro dele. Basta trocar os cargos de confiança, transferir os funcionários incômodos, mudar a gestão. Na virada para 2011, a nova gestão da defensoria, mais alinhada ao governo do estado, fez a diferença. Negativamente. Alguns núcleos foram comprometidos na atuação direta com movimentos sociais e lutas urbanas. Alexandre foi transferido para o interior. Os estagiários militantes despedidos e processados. Lugar de defensor passou a ser o gabinete. De estagiário, a senzala do gabinete. Festas no Copacabana Palace deram o tom da mais nova Defensoria, que saía do casulo mais glamourizada, mais requintada, nova-rica às beiras do esnobismo, “limpa” de movimentos e da realidade. Sinais do aburguesamento de uma instituição, até então, bem reputada nos meios ativistas. O ar se tornou irrespirável para as porcas borboletas.
Como nômade, Alexandre percebeu que estava na hora de pular fora. A mais instigante das artes circenses: a evasão dos aparelhos de captura. A única saída do escravo quando pungido pela dialética do senhor está no êxodo pelo deserto. Um absurdo, disseram, renunciar a uma salário vitalício de quase vinte mil. Tentaram de tudo para que ele voltasse atrás: ofereceram trégua, propuseram licenças, centenas de telefonemas e e-mails, o defensor-geral ligou pra mãe dele… Mas não teve jeito, a exoneração era incontornável. Abriu-se uma nova manhã em sua vida, ainda novos desafios, novas lutas. Atingidos no ego, — como alguém poderia desprezar tal status e de modo tão acintoso?, — só puderam mesmo considerá-lo louco. E então vários se fecharam em sua mediocridade corporativista, aos 33 anos com a boca escancarada de dentes. Não podem acreditar eles, arrivistas e dementes, da insuportável verdade. Os espíritos livres existem.
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Este texto é a contribuição do blogue à campanha Articulação Fórum da Justiça / Alexandre Mendes, para Relator Nacional da Plataforma Dhesca Brasil, “uma articulação nacional de 36 movimentos e organizações da sociedade civil que desenvolve ações de promoção, defesa e reparação dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca), visando o fortalecimento da cidadania e a radicalização da democracia.”
A campanha aceita subscrições individuais ou coletivas (de organizações, movimentos, coletivos etc), basta manifestar o apoio “até 30.03.2012, às 12h, mediante e-mail a <forumjustiça@gmail.com> – com o nome completo da entidade/organização a que vocês pertencem“.
A mensagem completa do pedido de apoio pela Articulação Fórum da Justiça:
“Solicitamos APOIO à candidatura do ex-defensor público, e atualmente advogado e pesquisador em Direito à Cidade, ALEXANDRE F. MENDES, para o cargo de Relator Nacional em Direitos Humanos (Direito à Cidade) da Plataforma Dhesca Brasil.
A Plataforma Dhesca Brasil é uma articulação nacional de 36 movimentos e organizações da sociedade civil que desenvolve ações de promoção, defesa e reparação dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca), visando o fortalecimento da cidadania e a radicalização da democracia.
Seu objetivo geral é contribuir para a construção e fortalecimento de uma cultura de direitos, desenvolvendo estratégias de exigibilidade e justiciabilidade dos Dhesca, sendo que uma das estratégias adotadas são as Relatorias de Direitos Humanos.
Essa candidatura se mostra totalmente apropriada e desejada pela imbricação original do Fórum Justiça com o GT Moradia, facilitado por integrantes da democrática gestão do Núcleo de Terras e Habitação – NUTH, da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, no período de 2007 a 2011.
O candidato, que atuou no NUTH durante o referido período, sempre se destacou por seu empenho e tenacidade na defesa jurídica de dezenas de comunidades pobres da cidade do Rio de Janeiro e na formulação de estratégias de proteção ao direito fundamental à moradia, tendo destaque nos casos de despejos forçados causados direta ou indiretamente pela realização dos denominados “Megaeventos” (Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos de 2016).
Além da reconhecida experiência profissional na defesa do direito à cidade e à moradia, o candidato possui destacada atuação teórica e acadêmica sobre o tema, tendo obtido, recentemente, com distinção e louvor, o título de Doutor em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. E é autor de diversos artigos e trabalhos acadêmicos, ministrando também uma série de aulas e palestras em âmbito nacional e internacional.
Portanto, por associar ampla e rica experiência, teoria sólida e conduta ética irreprovável na defesa do direito humano à cidade, confiamos que ALEXANDRE F. MENDES possui todos os requisitos e atributos para exercer o cargo de Relator Nacional de Direitos Humanos.’
Fonte: Quadrado dos Loucos
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