março 25, 2012

"Crise Mundial: Culpa e a Fé na Terra do Capital", por Hugo Albuquerque


Crise Mundial: Culpa e a Fé na Terra do Capital


PICICA: "Spinoza, que Agamben leu e entendeu de uma forma um tanto confusa, já nos trazia uma boa explicação para isso no seu Pensamentos Metafísicos, ao estabelecer um critério de distinção entre o concreto e o imaginário: aquilo que é adquirido pela dívida é concreto, mas a própria dívida é ela mesma imaginária, ficcional - eis aí a chave para entender a dominação no ocidente, a tentativa de fazer passar o imaginário por concreto e eliminar toda imaginação (para que não se reconheça ela mesma)."
Cristo Carregando a Cruz -- Bosch
Frequentemente, usamos um vocabulário tão obviamente teológico que não nos damos conta disso, seja na política ou, sobretudo, no Direito e na construção da Economia - a última quase que ela mesma um puro teologismo. Ao observarmos outras línguas, próximas ou nem tanto, nos damos conta desse processo com mais facilidade.

É só pensar na coincidência absoluta entre culpa e dívida na língua germânica - convergidas no vocábuloschuld - ou mesmo que, em grego, como nos relata Giorgio Agamben em recente artigo para o La Repubblica, até hoje, pistis é tanto fé quanto crédito, em um sentido financeiro usual mesmo - como em "banco de crédito".

Em ambos os casos, não é preciso ir muito longe para ver as relações: não é complexo, embora seja trabalhoso, relacionar os conceitos de culpa e de dívida. Crédito e fé, por sua vez, possuem uma relação um tanto mais clara, uma vez que o étimo que forma o primeiro vocábulo é o mesmo decrença ou credo -mas não deixa de ser curioso notar a coincidência absoluta na língua helênica que faz "banco de crédito" ser, também, "banco de fé".

Se somos uma sociedade concretamente guiada por uma dívida (culpa) infinita, pelas trocas assimétricas das quais o próprio Capitalismo se sustenta - de uma forma mais clara do que o Estado também faz por meio das leis -, é fácil considerar a importância de uma esquizoanálise, na medida em que se a culpa passa a ser um processo que se insere na área de coextensividade entre os ditos campos psicológico e social, não na dobra, mas quem sabe como elemento dobrante, duplicante.

O mesmo podemos dizer dos banqueiros, que no fim das contas, como bem aponta Agamben, são os sacerdotes modernos, pois são eles que controlam a fé (o fluxos, refluxos e influxos de crédito), o que torna o Capitalismo uma religião como dizia Benjamin - ou melhor, que ele também se organiza teologicamente. 

Erra Agamben, no entanto, ao dizer que "a feroz religião do dinheiro devora o futuro" ou que pela governança do crédito se governa o futuro dos homens: o futuro, por favor, é ele próprio governança, o poder financeiro - enquanto tentáculo do capital - não "sequestra por completo, a fé e o futuro, o tempo e a esperança", mas sim faz uso de todos eles para realizar sua operação como a religião o propriamente dita o fez.

Ainda que intua isso, o menor dos problemas é o fato dos banqueiros exercerem esse sacerdócio, mas sim o dele existir. Pouco importa se quem o ocupará são os padres, yuppies ou  dirigentes comunistas, tampouco adianta dizer "fora banqueiros!", sendo que para longe de Keynes, os banqueiros não são parasitas, mas sim uma engrenagem do sistema - sua atividade, muito pouco nobre, decorre da organização e das reorganizações da dita "economia real" [risos]. 

Spinoza, que Agamben leu e entendeu de uma forma um tanto confusa, já nos trazia uma boa explicação para isso no seu Pensamentos Metafísicos, ao estabelecer um critério de distinção entre o concreto e o imaginário: aquilo que é adquirido pela dívida é concreto, mas a própria dívida é ela mesma imaginária, ficcional - eis aí a chave para entender a dominação no ocidente, a tentativa de fazer passar o imaginário por concreto e eliminar toda imaginação (para que não se reconheça ela mesma).

Se a insolvência é concreta e se dá por inércia, o pagamento da dívida é imaginário e exige uma modulação de comportamento, uma intervenção no desejo alheio normalmente operada pela norma legal. Não é, por certo, a mera força que garante o adimplemento das dívidas existentes pela face da terra, mas sim a sujeição voluntária: e como poderia haver sujeição voluntária sem culpa? Sem autopunição e autopenitência?

bom pagador - ou o bom cumpridor de leis, o cidadão de bem - é, antes de mais nada, um adorador de flagelos e suplícios, que se sujeita a todas as agruras da vida para arcar com a dívida infinita: como o anzol com carne mais longo do que a corrente que ata cães a um trenó, habilmente manuseado pelo cocheiro, sua existência é apenas um ardil para produzir movimento como o mestre deseja. 

O problema é, ao contrário do que grande parte do movimento socialista sempre denunciou, tanto menos o opressor e do que o paranoico masoquista, que na busca pelo seu prazer perverso a todos arrasta para um mar de sofrimentos - como um grande abraço de afogado. Criar uma práxis que subverta isso é, antes de mais nada, constituir uma educação para o prazer, para a satisfação e para a vida

Fonte: O Descurvo

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