março 31, 2012

"Dilma: na capa da Veja e nua na tribo!", por Ricardo Targino

Dilma: na capa da Veja e nua na tribo!

PICICA: "O Brasil pós-Lula é um país conectado na novidade e nutrido do desejo permanente de ser outro. Aqui, ser outro sempre significou sermos cada vez mais parecidos com quem nós realmente somos. Outro Brasil. O lulismo bebeu justamente na fonte desse imaginário. Sua força, super pop, reside na dimensão da possibilidade real de mudança. Do país condenado ao atraso, do balneário das corruptas e servis elites nacionais, passamos a viver no Brasil do imaginário lulista que é muito mais parecido com o que ele realmente é: uma fábrica de esperanças.
Durantes estes 15 meses de governo Dilma Rousseff, entretanto,(...)



Por Ricardo Targino*
Desde a vitoriosa campanha eleitoral de Dilma Rousseff, o panorama das lutas políticas pelo mundo alterou-se substancialmente. Nos últimos meses, movimentos de enorme lastro em todo planeta articularam-se ao redor das redes. A partir da Praça Tahir, da Porta do Sol e do OccupyWallStreet, essa nova articulação global teve seu auge no dia 15 de outubro, com grandes manifestações que derivaram em vários acampamentos em importantes cidades do mundo, naquela que foi a maior manifestação conjunta da história da humanidade: mais de 870 cidades ao redor do globo aderiram ao protesto.
Neste momento, um novo chamado varre as redes sociais: um nova mobilização global no dia 12 de maio. Nos EUA, a primavera promete ser de novas e grandes manifestações situando a disputa política no coração do capitalismo financeiro internacional. O OccupyWallStreet já vem fazendo o que chamam de ‘spring training’ e as eleições presidenciais tendem a tornar mais significativos os protestos. Por lá, é grande o esgotamento do modelo bipartidarista. Aos olhos nus, a cena política institucional americana está dominada pelo lobby das grandes corporações e a distância entre a política oficial e o cidadão comum é imensa. Diante da crise, o discurso dos ativistas do OcuppyWallStreet tem enorme impacto e as ações crescem. É por isso que vem recaindo sobre estes protestos uma violência policial cada vez mais desproporcional, a tal ponto que em NY diversos conselheiros do governo local passaram publicamente a fazer críticas ao Departamento de Polícia e a exigir as garantias constitucionais do livre exercício do direito de assembleia e reunião. Na Espanha, a primavera recomeçou com greve geral e mais de um milhão nas ruas. Em Portugal a dura repressão só fez crescer a organização do movimento. E o calor dos protestos ganha o planeta inteiro.
Aqui no Brasil, um setor importante do ativismo que vinha se articulando desde os governos Lula passou a atuar de modo mais organizado justamente na dura campanha travada nas redes pela eleição de Dilma Rousseff. Blogueiros, artistas, produtores de cultura, líderes comunitários, gente da comunicação e do direito, do movimento de saúde pública, ONGeiros de todo tipo, ambientalistas, LGBT’s, galera da bike e do skate, tribos diversas com um ponto de encontro comum: a internet. As redes tornaram-se uma das mais ativas arenas do debate e da ação política também no Brasil. Aqui elas ainda possibilitaram duas coisas realmente novidosas na idiossincrasia nacional: tanto uma afirmação da diferença (e o respeito ao Outro que ela obriga), como o surgimento de novas condições para o exercício cada vez mais prático da cidadania (em sua acepção mais republicana, no sentido da participação nos rumos da vida imediata). Convém lembrar que toda articulação política que venha no sentido de combater privilégios e preconceitos, provocando a ampliação do espaço do exercício do poder, constitui um avanço de nossa sociedade rumo à plena democracia. São inúmeros os movimentos organizados que já atuam de modo diferenciado, funcionam como redes, espalham informação, compartilham posições, preparam-se para agir. Diante da decadência dos partidos e do descrédito na via institucional da política, estes movimentos têm-se apresentado como uma alternativa concreta de ação. Isso prova que a cultura digital é também uma nova cultura política. Uma cultura política erguida horizontalmente.

Pós-Lula
O Brasil pós-Lula é um país conectado na novidade e nutrido do desejo permanente de ser outro. Aqui, ser outro sempre significou sermos cada vez mais parecidos com quem nós realmente somos. Outro Brasil. O lulismo bebeu justamente na fonte desse imaginário. Sua força, super pop, reside na dimensão da possibilidade real de mudança. Do país condenado ao atraso, do balneário das corruptas e servis elites nacionais, passamos a viver no Brasil do imaginário lulista que é muito mais parecido com o que ele realmente é: uma fábrica de esperanças.
Durantes estes 15 meses de governo Dilma Rousseff, entretanto, os ‘trend topics’ da cena política tem causado constrangimentos e mostrado a enorme distância entre Brasília e o Brasil das redes e do ativismo. No campo dos direitos civis, avanços substanciais vindouros do STF, como o reconhecimento da união gay e do direito de manifestação no caso da Marcha da Maconha certamente ampliam as garantias democráticas. O gesto do STF, porém, viu-se acompanhado pela articulação de lobby’s do tipo evangélico e o homofóbico que tem atuado para impedir que mais políticas democráticas possam ser implementadas. Diante da agenda dos direitos LGBT’s, o governo Dilma tem cedido ao lobby conservador ao ponto do movimento ter recentemente declarada inimiga da causa gay a Presidenta da República. O mesmo vem ocorrendo em relação à agenda ambiental. Na queda de braço entre a sustentabilidade e o modelo predatório do crescimento que pretendem as grandes corporações, empreiteiras, ruralistas e agro-especuladores, os setores conservadores também têm obtido vitórias. O constrangimento nas redes em relação ao código florestal e à construção de Belo Monte ainda não provocou nenhuma sinalização clara do governo apesar da enorme discussão que tem levantado. Dentre os demais ‘trend topics’ da política, há ainda temas como o marco regulatório da mídia e o plano de banda larga, ambos marcados pela lentidão ou pela hegemonia do poder econômico das corporações que têm tentado frear o estabelecimento de políticas públicas mais que necessárias. No caso do marco regulatório da comunicação, os passos dados para o início de uma consulta pública só aconteceram pela determinação da sociedade civil organizada, com o governo a reboque. No caso do Plano Nacional de Banda Larga, o projeto tornou-se uma dupla carroça: pelo serviço que oferece e pela lentidão na implantação do programa. Ao não entender que internet e banda larga são infraestrutura necessária ao desenvolvimento, o governo vacila até mesmo no projeto de aceleração do crescimento econômico.
É cada vez mais amplo o setor do lulismo e do petismo que já reconhece uma distância enorme entre a gestão de Dilma e os anos de governo Lula. Surgem temores de que o medo ou a força do dinheiro tenham vencido a esperança e deixem deserta a defesa do legado de Dilma diante de um novo embate eleitoral.

Quem sustenta Ana de Hollanda?
Há um elemento chave para pensarmos o governo Dilma afim de melhor compreendê-lo: a crise sistemática e estrutural do Ministério da Cultura. A cultura tornou-se elemento central de valor no capitalismo contemporâneo. Muitos pretendem isentar Dilma das responsabilidades pela mudança de rumo do MinC, alegando o tradicional descaso dos políticos em relação à cultura. Não parece ser o caso de Dilma. Nos dois governos Lula, o MinC tornou-se vanguarda mundial no que toca ao desenvolvimento de arrojadas políticas para resituar a questão do direito autoral frente ao modelo proprietário e fordista que representava um entrave à lógica do compartilhamento e da universalização do acesso ao conhecimento que nortearam o MinC de Gil e Juca. Daí vem a questão: o recuo do MinC para políticas proprietárias que operam com um conceito de cultura do século XIX não seria política de governo endossada por Dilma? Os mais diversos governos do mundo, sob o argumento de garantir os direitos de autor, dentro da lógica anacrônica (ana-lógica) das corporações, tem feito esforço no sentido de impor restrições à internet e ao compartilhamento. O Brasil vinha se destacando no cenário internacional justamente por apresentar uma política muito mais condizente com as condições atuais do intercâmbio da produção simbólica e, principalmente, por tentar responder ao seu enorme déficit interno de distribuição dos bens culturais e universalização do acesso ao conhecimento.
Para entender a crise do MinC é importante relembrar algo: Gil e Juca, durante os dois governos Lula, modificaram a lógica desse ministério. Onde antes havia um balcão, criou-se uma ferramenta de mudança. Onde antes os recursos se concentravam em poucas mãos passou-se a compartilhá-los entre o maior número possível de agentes. E a injeção não foi apenas de dinheiro. Seu caldo de cultivo é super fértil: surgiram novos sujeitos do processo político brasileiro. São eles que vêm chegando ao centro da cena e impondo o embate com a Ministra. Gente exercendo cada vez mais plena participação cidadã. Senhores de seu poder político local e global, um enxame enorme que vai dos mestres de cultura popular aos hackers.
Dilma elegeu-se no discurso da continuidade. Gravou vídeos comprometendo-se, por exemplo, com a continuidade e ampliação dos Pontos de Cultura de Lula. Enquanto o MinC, por política do Planalto, vem destinando milhões para as Praças do PAC, endereçando dinheiro às empreiteiras (como se o Brasil precisasse mais desse tipo de infraestrutura que de equipamento humano) o Programa Cultura Viva vem sendo liquidado na asfixia orçamentária. Enquanto se implanta pela América Latina afora, aqui os Pontos de Cultura são uma das maiores vítimas da gestão da filha de Sérgio Buarque de Hollanda, quem certamente lhe teria já feito um duro puxão de orelha. Dilma, entretanto, sustenta Ana e a mudança de rumo do MinC. Porque, Presidenta?
Para mostrar-se pouco sensível com os milhares que aderiram aos diversos manifestos pedindo correção de rumos no MinC? Para ser inflexível com os intelectuais, gente como Marilena Chauí? Ou para dar-nos o recado de que este NÃO É nosso governo?
O que se passa no Ministério da Cultura não é fofoca ou má-fé, como quer fazer entender a ministra. Ali há um estelionato eleitoral! Apesar do compromisso eleitoral de Dilma, pratica-se uma política de ruptura com o MinC de Lula. O constrangimento para um homem como Juca Ferreira ter que vir a público advertir do retrocesso é muito grande para o próprio ex-ministro, para o seu governo e para seu partido! Mas Dilma parece determinada a não ceder a esta pressão! A mesma Dilma que tem cedido aos evangélicos, aos ruralistas, às pressões de acomodação política da base do governo no Congresso. Mas ceder à sociedade, por quê?
Há ainda as suspeitas relações entre o ECAD e MinC de Ana de Hollanda. É gravíssimo que se confirme que o ECAD opera no Ministério e muito mais grave seria descobrir que o ECAD tem entrada na Casa Civil ou no Palácio do Planalto.
Aos agentes da cultura e suas redes lhes resta o recurso dos manifestos e cartas abertas. Vimos muito disso nestes 15 meses sem qualquer sinalização do Planalto. Os setores mais poderosos desta disputa, o ECAD, as majors da indústria cultural e os coronéis da velha pirâmide da produção artística também exercem sua pressão pela manutenção da ministra e de sua política. Alguns deles inclusive têm vindo à público manifestar seu apoio. José Neumane Pinto, por exemplo, recentemente publicou no Estadão uma defesa de Ana de Hollanda. O mesmo Neumane que afirmou: “Lula conseguiu colocar no lugar dele quem ele quis, um poste (Dilma), que ele pode manipular da maneira dele.”
Não é por acaso que ao redor da defesa do MinC atual se reúnam setores da sociedade que se opunham a Lula e ao projeto encabeçado por ele. Foram estes setores que ganharam espaço no Governo Dilma. Setores dos quais o projeto estratégico do PT torna-se cada vez mais dependente. Setores que se utilizam do lobby para a pressão política. Convém lembrar que como denunciam os movimentos globais o lobby é espaço propício para os cartéis e quadrilhas que se servindo do tráfico de influência garantem a hegemonia de suas posições, seus privilégios e seu lucro. Boa parte destes setores há bem pouco tempo atrás eram vistos pelo próprio PT como representantes do ‘atraso’ e do ‘complexo de vira-latas’.
Entre as redes, os pontos de cultura, os intelectuais, artistas, ONGs, ambientalistas, os gays e umas quantas outras tribos a escolha da presidenta Dilma tem sido Ana de Hollanda, o ECAD, os ruralistas, as empreiteiras e o sistema financeiro. Até o movimento sindical, berço do PT, aumenta as críticas ao governo. Na sistemática crise do MinC, Dilma ratificou sua escolha seguidas vezes e agora contra setores históricos do PT, medalhões da talha de Marilena Chauí. Mas o Brasil votou pela continuidade de um projeto. Elegemos o projeto de reforma democrática. Elegemos ser cada vez mais parecidos com quem nós realmente somos. E isso ninguém poderá modificar facilmente sem que o Brasil reaja.
Os 99%
Os vídeos que circulam pela internet convocando os protestos globais do dia 12 de maio trazem a imagem de Dilma que aparece na edição junto a outros chefes de governo de importantes economias do planeta. O ativismo global bota o dedo na ferida: o governo federal tem assumido cada vez mais a cara que vimos estampada na capa da Veja. No governo Dilma, para as redes sociais e para os setores da cultura, o projeto popular vem perdendo o espaço conquistado com Lula. Sem o toque de Midas do ex-presidente, e sem seu grande carisma, os gestos de Dilma frente às tantas agendas da rede vão distanciando setores que fizeram uma corajosa campanha por sua eleição… A decepção ganha força e corre o risco de transformar-se em antipatia rapidamente.
Oito anos de governo popular e uma eleição vitoriosa nos permitiram o acúmulo de forças. Lula gosta de agradar as maiorias. Dilma, entretanto, parece determinada a atender os “petit comité”. Quanto a nós? Nós somos os 99%. A pergunta deste momento histórico em todo o planeta é justamente essa: até quando o 1% seguirá dando as cartas? No Brasil podemos nos perguntar: estaria o governo Dilma se tornando uma virada de mesa do 1% que pretende retomar o terreno perdido nos avanços democráticos da Era Lula?
O motor da luta política no Brasil, seus inúmeros ativistas e militantes, cibernéticos ou old style, construíram seu imaginário no afeto com Lula. Lula-Macunaíma! Nos Estados Unidos, o novo ativismo também tem ainda laços afetivos com Obama. Obama o primeiro negro, Lula o primeiro operário e Dilma a primeira mulher. No discurso de todos: mudança. Mas até a noção de mudança se altera quando realidade se impõe. As praças e acampamentos da aldeia global vêm dando o recado: não basta falar, é preciso SER a mudança.

É por isso que aqui no Brasil, onde a metamorfose é vocação natural, o cenário político também pode ser alterado rapidamente. Somos o imponderável, como as redes e seus fenômenos. Essa imponderabilidade enorme, essa deriva, o estar entre a “delícia e a desgraça”, pode nos fazer esperar as eleições para impor questionamentos, apontar as rupturas de confiança e articular as alternativas, mas pode também adiantar nas ruas o embate político, reconfigurar o campo da disputa democrática à velocidade dos megabytes. Vem sendo assim em diversas primaveras pela aldeia global. Foi assim inclusive frente a governos de cores mais avermelhadas, como os socialistas espanhóis com sua posterior derrota nas urnas, ou com o próprio governo Obama obrigado a responder às ruas de Manhattan e seus ecos por todo o país.
Para nossa alegria a decisão mais importante expressa pelo Brasil na eleição de Dilma é que nós estamos decididos a ser ‘Outro Brasil’. Seja lá que opção Dilma faça, quer corrija rumo e marche junto com os setores mais progressistas ou quer opte pelas cartas dadas pelo 1%, a opção do Brasil já foi feita: nós seremos cada vez mais parecidos com aquilo que somos. Seremos o país que já decidimos ser. Avançaremos com as reformas democráticas e com a ampliação da democracia com ou sem o clima favorável no governo, com ou sem o PT, tendo um Ministério da Cultura articulado nas políticas inovadoras ou paralisado no despreparo e na retaguarda política.
Avançaremos porque somos os 99%. Porque somos legião. Já não esperamos pela mudança. Fazemos a mudança. Somos a mudança. E não esquecemos.

Somos um enxame que para erguer sua doce colmeia de sonhos faz um barulho enorme. E este barulho se agiganta!

*Ricardo Targino é cineasta e ativista dos movimentos de cultura e comunicação. Foi coordenador-geral da ENECOS (Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social). Dirigiu o premiado curta Ensolarado e prepara para o próximo mês as filmagens de Quase Samba, sua estreia na ficção de longa-metragem. Esteve nos últimos meses em NY acompanhando as atividades do OccupyWallStreet.
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Fonte: Trezentos 

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