março 29, 2012

"Millôr Fernandes: o último dos bons", por Carlos Orsi

Millôr Fernandes: o último dos bons


Millôr manteve-se firme na prática de seu credo de ceticismo e crítica. Após a vitória de Tancredo no colégio eleitoral, ele já soara o alarme: "Um espectro assombra o Brasil. O espectro do humorismo a favor."





-- Millôr Fernandes (1923-2012) --
Os mais novos não vão se lembrar, mas houve uma época em que o humor, no Brasil, era o último refúgio, não do preconceito e da escrotidão, mas da lucidez. Nos anos finais da ditadura, Luís Fernando Veríssimo, Millôr, Ziraldo e Henfil, entre outros, mostravam-nos, com arte e alegria, aquilo que repórteres e editorialistas não podiam, ou não conseguiam — que o rei estava nu.
Com a redemocratização, no entanto, o espírito pareceu, por um momento, arrefecer. Millôr foi o primeiro a soar o alerta. “Um espectro assombra o Brasil”, escreveu ele, após a vitória de Tancredo Neves no colégio eleitoral. “O espectro do humorismo a favor”.
A assombração, no entanto, ainda precisaria de algum tempo para se manifestar: ela só nos alcançou, de vez, com a chegada do PT ao poder. A partir daí, Ziraldo sumiu da cena da crítica política, transformando-se no Walt Disney do Menino Maluquinho; Veríssimo emasculou-se (alguém se lembra da última vez que ele escreveu algo que tivesse um pingo de graça?); quanto a Henfil, morto vítima da aids, é difícil saber qual teria sido sua trajetória — mas, dada sua adesão entusiástica ao PT, as possibilidades não são das mais alentadoras.
Millôr, por sua vez, manteve-se firme na prática de seu credo de ceticismo e crítica. Seu chiste definitivo sobre Lula — “a ignorância subiu-lhe à cabeça” — é tão certeiro quanto impensável na boca de qualquer um de seus colegas dos tempos de combate à “redentora”. Embora, suponho, nenhum deles tivesse hesitado em usá-lo contra, digamos, o general Figueiredo.
Eu me lembro, quando estava na faculdade, fazendo o Jornal do Campus, de uma discussão que tivemos a respeito de uma pauta sobre os “supersalários da USP” — uma minoria de professores que, por manobras diversas, acumulavam vencimentos espantosos. Um professor foi contra a cobertura do assunto, porque seria “fazer o jogo do Quércia” (então governador do Estado). Mesmo moleque, pensei: “Como assim, ‘fazer o jogo’? Qual a relevância disso? O que importa é se é verdade ou não”.
Millôr Fernandes estava cabeça e ombros acima daquele professor. Ele não se preocupava em “fazer o jogo” de quem quer que fosse. Num país onde o debate de ideias muitas vezes se reduz a uma espécie de Fla-Flu (petistas vs. tucanos; comunistas vs. reaças; ateus vs. evangélicos), e onde nenhuma jogada “dos nossos” é suja demais que não possa ser apoiada, onde nenhuma jogada do adversário jamais é legítima, por mais que se enquadre nas regras, ele se mantinha, supremamente, fiel a si mesmo, expondo ao ridículo quem merecesse ser ridicularizado — como em “FhC é o superlativo de PhD”.
Agora que ele se foi, contemplo a planície e não vejo mais ninguém com a mesma estatura.
Millôr certa vez se declarara “candidato perpétuo” a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Desde que pudesse escolher a cadeira. Ele queria a de José Sarney.
Que merda, mestre. Pena, mas não deu.



Carlos Orsi

Jornalista e escritor. De 2005 a 2010, foi editor de Ciência do site do Estadão. Recentemente, publicou o romance de FC Guerra justa (2010) e O livro dos milagres: A ciência por trás das curas pela fé, das relíquias sagradas e dos exorcismos (2011), além de organizar e participar de uma coletânea de contos de autores brasileiros em homenagem a Sherlock Holmes e ao gênero policial.
Fonte: Amálgama

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