O Comum: não mais à esquerda, mais a Oeste
PICICA: "O campo dos comuns inclui a água e a terra, a geração de energia, a saúde, o cuidado, a educação, o conhecimento, os saberes vivos e práticos, a reprodução das relações, a moradia, a mobilidade, a circulação, a comunicação, o espaço e o tempo sociais, a informação, a sexualidade, a cooperação, as imagens e os sonhos, os desejos e o inconsciente e o pensamento selvagem, as éticas, estéticas e formas de viver e se relacionar e produzir. Tudo isso que é gerado no processo da vida entre todos e para todos, — e que o capital pesquisa, esquadrinha, mede, controla, desapossa, separa, cerca, civiliza, guarnece, vigia, tarifa, garante, extrai rendimentos e acumula para então reiniciar a exploração. O comum não é tanto a natureza nem a cultura. É o que está no meio de uma e outra: a franja constituinte, essencialmente ingovernável, onde algo como uma cultura (ou muitas) e uma natureza (ou muitas) podem acontecer. E onde outras também poderiam, como de fato acontecem."
O capitalismo vive mais uma grande transformação. Ainda outra, desde que surgiu na velha Europa. Se existe um atributo indiscutível do capitalismo é a capacidade de reestruturar-se em função das circunstâncias. Nem que precise ceder anéis. Nem que tenha de absorver quem se lhe opõe. O capitalismo precisa de consensos, não hesita em negociar, cooptar, e vai sempre tentar conciliar os contrários. Distribui a falta e forja a escassez para colher o lucro e acumular. Todos podem ser incluídos, enquanto excluídos do principal: a superabundância. Sua inteligência consiste em mudar tudo para não mudar nada. E assim vai atravessando os séculos, cada vez mais flexível e pervasivo. Sim, de fato, ele atravessa crises. Mas até a crise, na fome que o incita incansavelmente, ele já aprendeu a digerir. Aprendeu a operar na contradição, a fabricar consenso nela, a conservar o poder na tensão mesma dos contrários que ele mesmo sustenta, no double bind entre público e privado, estado e mercado, cultura e natureza. O capital come a crise, afinal, ninguém morre de contradição.
Um modo de ver a atual transformação é pelo avanço dele em direção aos bens comuns e o comum mesmo, enquanto processo produtivo. Dizem isso os próprios gurus do novo capitalismo, como a Nobel da Economia de 2009, para quem agora se trata de governar os comuns. Estamos numa nova fronteira, a dos comuns: com seus novos modelos de negócios, parcerias empresariais, empreendimentos criativos, sustentabilidades. E um novo marco jurídico e institucional: a cama refeita onde passam a dormir estado e mercado, realinhados. O novo reorganiza o antigo: as violências e explorações se reacomodam na versão 2.0 da mesma matriz. Ela não tem escrúpulos em inovar: contemporiza e rearranja. O velho e novo, aos poucos, se conciliam para o interesse geral do status quo. Os lençóis estão manchados.
O campo dos comuns inclui a água e a terra, a geração de energia, a saúde, o cuidado, a educação, o conhecimento, os saberes vivos e práticos, a reprodução das relações, a moradia, a mobilidade, a circulação, a comunicação, o espaço e o tempo sociais, a informação, a sexualidade, a cooperação, as imagens e os sonhos, os desejos e o inconsciente e o pensamento selvagem, as éticas, estéticas e formas de viver e se relacionar e produzir. Tudo isso que é gerado no processo da vida entre todos e para todos, — e que o capital pesquisa, esquadrinha, mede, controla, desapossa, separa, cerca, civiliza, guarnece, vigia, tarifa, garante, extrai rendimentos e acumula para então reiniciar a exploração. O comum não é tanto a natureza nem a cultura. É o que está no meio de uma e outra: a franja constituinte, essencialmente ingovernável, onde algo como uma cultura (ou muitas) e uma natureza (ou muitas) podem acontecer. E onde outras também poderiam, como de fato acontecem.
Como se orientar nesta época em que o gênio saiu da lâmpada? Fora das dicotomias onde havíamos atolado o pensamento, fica tudo tão gasoso, impreciso, polivalente… pós-moderno. Tirando os canalhas de sempre, — a encarquilhada elite de coronéis nordestinos e caudilhos gaúchos, da high society paulistana e da corte carioca, e todos aqueles que se acoplaram, como carreiristas, aos projetos de poder estatal, pensando a partir do estado, — dá pra pressentir algumas tendências gerais.
Primeiro, a convergência no altercapitalismo, o destino final do ônibus altermundista, depois de perder todo o viés contestatório e antagonista. É Neil Young cantando Parabéns a você ao planeta Terra no SWU. Esses afirmam o novo. Quantas empresas modernosas! Todas as multinacionais que se prezem já perceberam que podem mercadejar a marca — seu principal produto — com “trabalho social”, “consciência ambiental” e algumas declarações sentimentais em eventos autoelogiosos. É a missa branca do neo-ativismo de classe média, de que a Rio + 20 é emblema. Que se fascina com as maçãs (podres) de Steve Jobs e o jeito (sonso) de Mark Zuckerberg. São empreendedores bem-sucedidos e entendem de seu negócio, então às favas com a teoria e suas abstrações. Que louva ambientes de trabalho típicos da new economy, como no filme A rede social, achando que isso é revolucionário. Duas palavras-chave do altercapitalismo: “consciência” e “responsabilidade”, cada um faz a sua parte para um mundo melhor. E com um robusto discurso da liberdade, como em mercado livre ou indivíduo livre, e um robusto discurso apartidário de indignação, como no movimento Cansei. Para onde vamos com um discurso entusiasmado de reinvenção da roda? que se limita a reproduzir slogans como crowdsourcing,freeware, networking, creative commons, open source, as novas palavras-de-ordem? Nada mais rentável do que casar a publicidade de si mesmo com o avanço empresarial sobre os comuns, que aí significam novos mercados, mais abertos, descolados, livres (grátis).
Segundo, a nostalgia dos esquerdistas, que gostariam de devolver o gênio pra dentro da lâmpada (deles). Esses afirmam o velho. Os comuns no mundo 2.0 verdadeiramente não importam; são acessórios, fetiches, deslumbramentos. Muitos ainda estão procurando algum Palácio de Inverno pra invadir, alguma massa popular para conscientizarem e liderarem, só que não encontram mais o velho operário da era industrial. Não conseguem parar de repetir que o pobre é explorado, a mulher violentada, o negro discriminado, o índio exterminado… como se eles não soubessem muito bem de sua condição. E conseguem tascar um Dilma-Cabral-e-Paes em todas as denúncias. Dá sono. Com seus velhos e dogmáticos capas contando como era bom antigamente, e um punhado de brancos ressentidos falando em revolução em obscuras reuniões de domingo. Em algum momento, essas pessoas devem olhar ao redor, quero dizer, olhar o mundoreal (que é delirante), e ver que estão fazendo alguma coisa errada. Isso não está colando, gente.
Se os altercapitalistas abraçaram impudentemente a linguagem do comércio e da mercadoria, pelo menos o seu pastiche irreverente e a sua admissão de pecado podem atrair mais a resistência do que monótonos textos velhaguardistas sobre a universal emancipação humana, passeatas à francesa e a austeridade do alto modernismo. Se a rebeldia contracultural “californiana” e seu ranço antimilitante se conciliam bem com a velha ideologia liberal e uma estética aburguesada, também não dá pra submergir numa má consciência de esquerdista, que ao fim e ao cabo é impotente.
O que se precisa é de uma segunda via ao falso dilema entre os dois piores. Uma que não caia na espiral das sustentabilidades, nessa adaptação progressiva à ordem posta. É o comum político, antagonista, pós-moderno, sim, porém potente: luta de classe e anticolonial. É a alternativa construtiva que incorpora a revolta. A parte de construir, a parte de destruir. A hora de articular e elaborar, a hora de tocar o rebu (a húbris). Que não tem medo de viver em estado gasoso, sujeito aos ventos e volátil às mudanças de temperatura. O comum tem centralidade, mas somente na medida em que é cheio de atritos e conflitos, híbrido, nunca eclético. Tem que ter malandragem e saber a hora de cair fora. Continuar se movendo.
Essa segunda via está nas redes e comuns quando se pautam pela sabotagem e pela reapropriação. É a Wikileaks sabotando o segredo dos estados e multinacionais, essa sim, mídia livre. É o Anonymous sabotando os poderosos pela internet. É o malware que trava a maquinaria de exploração e mando. E também o movimento social difuso, auto-organizado, de download e compartilhamento par a par. É o comum antagonista de Megaupload, mediafire, 4shared, library.nu, do remix e do camelô, da blogosfera suja e dos hacktivistas, de todos esses resistentes do comum que vêm sendo sistematicamente perseguidos. A criminalização, o vigilantismo e a higienização não acometem mais apenas os sem tetos e sem terras, mas todos os internautas que produzem em rede e remixam. Tudo isso resiste, e pode se articular na sua condição comum.
Mas não só. A América do Sul já conhecemos a experiência do comum. Porque jamais fomos modernos. Um espectro longo de etcéteras que se organizam e partilham e se afirmam em meio à ruína civilizatória. Mil Pinheirinhos, culturas de periferias, lutas cotidianas por reexistência nas condições mais adversas, por moradia e transporte, os migrantes nordestinos, os caboclos do Pará, as ocupações autogestionárias, os rappers e os funkeiros, os catadores, os ambulantes, os rueiros em geral, os quilombos urbanos e os acampamentos dos sem terras, os ônibus hackers, os neo-beatniks, os movimentos indigenistas, da Chiapas de zapatistas ao Xingu à Patagônia dos mapuches, e tantos outros que nos são invisíveis.
Enquanto isso, os governos progressistas sul-americanos ainda se miram na velha Europa, onde o capitalismo, na contingência de sua formação, brotou e se expandiu pelo globo, em sucessivas ondas de reestruturação. A mirada de nossa sustentabilidade se orienta para o Leste, na direção do eixo, do Atlântico, num atavismo dos colonizadores que nos invadiram o território e colonizaram as cabeças. Ficamos incapazes da poesia Pau Brasil.
Se existe uma saída potente à crise está na produção do comum, a partir da experiência que já está acontecendo. Não é caso de ir a Leste, esse imaginário colonizado e seus pesadelos americanos. Mas Oeste, numa onda de bandeiras ao avesso, de desapresamento, de reapropriação, em busca dos Eldorados Glauberianos onde viceja a fome por estética. É inverter a dialética colonizadora: a história do Brasil está de ponta cabeça, é preciso recolocar-lhe os pés na terra. E não na Terra. A terra, o desenvolvimento endógeno, manter o contato com o solo, a surpresa e o mistério, onde caminham os índios, todos eles. Não como curiosidade antropológica ou má consciência esquerdista ou consciência ambiental altercapitalista, mas porque o pobre é o índio. É uma perspectiva para pensar e viver bem, as relações sociais e a produção do comum, para pensar a nós mesmos e não o índio, a partir do ponto de vista do índio, indigenizar o Brasil e o mundo, um devir-índio, um devir-Oeste. A saída é para dentro e além, a alteridade alucinatória onde o desejo é violento, a fantasia calça botas e se inventa o novo mundo. Este!
Fonte: Quadrado dos Loucos
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