"Cecília Donnagelo foi um gênio da Saúde Coletiva"
PICICA: "A professora Cecília Donnagelo foi um gênio da Saúde Coletiva. Era uma cientista social de seu tempo, formada por Luiz Pereira e outros, em um período que a voga era o marxismo temperado com o estruturalismo francês. Mesmo valendo-se desse referencial, Cecília Donnangelo não respeitou seus cânones mais estritos. Tratou de transpor as fronteiras dessa escola de múltiplas formas, entre elas combinando a perspectiva histórica e social (os sujeitos e a política) com a objetividade do estruturalismo."
“Medicina e Sociedade” foi, originalmente, sua tese de doutorado defendida, em 1973, na Faculdade de Medicina da USP. Foi publicada como livro pela Livraria Pioneira Editora em 1975. Nessa obra, a professora soube combinar rigor acadêmico com criatividade; respeito ao seu tema – pesquisa de campo sobre a profissão médica – com amplo referencial teórico que lhe serviu de base para interpretar o material empírico levantado. Cecília recomendava aos seus alunos, eu entre eles, que nunca renunciássemos ao risco da interpretação, marcando sempre a distinção entre o material levantado e o produto de nossa análise.
Nesse trabalho, ela articulou a descrição de um fenômeno com sua interpretação a luz de amplo referencial social e político sobre a sociedade brasileira e as políticas de saúde. Fez exatamente aquilo que os estreitos cânones “científicos” contemporâneos condenam! Demonstrou que a compreensão de um fenômeno social depende de sua cuidadosa e meticulosa abordagem singular e, portanto, empírica, mas também da ousadia do pesquisador em analisá-lo, perguntando sobre sua genealogia e sua organicidade com a formação econômica e social.
Grande Mestra!
Além de verificar como se organiza, no concreto, o trabalho médico, Cecília Donnagelo buscou explicação para seu processo de mudança, para sua reestruturação, apontando o papel do Estado brasileiro, que permeável “à dinâmica das relações de classe” tomou “decisões de natureza política” objetivando a expansão da assistência médica à segmentos específicos da população.
Encontrou que esse movimento pragmático de ampliação do acesso não obedeceu “apenas ao padrão de riqueza” (determinação econômica), mas também “à conquista de direitos sociais pelos assalariados”.
Resumindo, a professora soube lidar com a complexidade da dinâmica social e política sem cair na geléia geral da multicausalidade sistêmica atualmente na crista da onda.
Ela apontou algumas características dessa política de expansão do “direito à saúde” que são atualíssimas, aspectos ainda vigentes mesmo vinte anos após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS):
“Entretanto, a esse novo momento de ampliação dos direitos sociais corresponde o reforço de um padrão peculiar de interferência do Estado no setor de serviços que pode ser genericamente caracterizado como um padrão de acomodação entre as pressões dos assalariados pela garantia de consumo e os interesses dos produtores privados de serviços.”
Incrível! Quanto dessa lógica não continua ainda presente na relação agora mediada pelo Estado/SUS?
Paradoxalmente, o Estado brasileiro intervém no campo da saúde “evitando a estatização dos serviços de saúde”, inventando-se, ao longo de mais de cinqüenta anos, várias maneiras para combinar expansão da assistência com serviços privados. Cecília Donnagelo nos revela que a promiscuidade entre o público e o privado está inscrita no código genético da intervenção do Estado quando objetiva viabilizar a expansão de cobertura assistencial.
Como não poderia ser diferente, esse modo curioso de ampliação do sistema de saúde alterou a organização do trabalho médico, produzindo “perda de autonomia dos médicos” e, sobretudo, a substituição da homogeneidade no exercício profissional, em decorrência “da sujeição a processos comuns de formação nos aspectos técnico-científicos e éticos”, por uma ampla heterogeneidade laboral. A pesquisadora identificou sete modos principais de inserção dos médicos no trabalho, desde o assalariamento até autonomia típica (liberal clássica ou empresarial).
Vale ressaltar ainda que a Mestra também criou categorias analíticas instigantes, para além dos parâmetros vigentes, como a de “ideologia ocupacional, encaradas principalmente como projetos de reorganização dos meios de produção de serviços de saúde e, em particular, do trabalho médico”. Esses conceitos foram a base metodológica para minha investigação de mestrado, “Os médicos e a política de saúde”, defendido na FM/USP em 1985.
Obrigado, Mestra!
Cecília Donnangelo nos faz falta... Faz falta estudarmos a política de saúde do terceiro milênio no Brasil com a liberdade de movimento, com o rigor metodológico e interpretativo, com a abertura para o concreto para além das travas teóricas, de nossa Mestra.
Em 1980, 1981 e 1982 frequentei todos os cursos que professora Cecília Donnagelo ofereceu na pós-graduação da FM/USP. Lamento não havermos gravado suas exposições. Enquanto fumava um longo cigarro em seguida do outro, ela nos encantava ao ampliar, ao modificar, ao acrescentar categorias e novos ângulos de interpretação aos seus trabalhos anteriores. De tão siderado, sequer anotar suas idéias com sistema eu conseguia. Lembro-me de quando discorreu sobre a possibilidade do Brasil abastardar (essa expressão é de minha autoria, não me recordo do termo exato empregado pela professora) a tradição dos sistemas nacionais socializados de saúde, tendo em vista a dinâmica perversa e privatista constituída entre Estado, política e as classes sociais...
Saudade, professora!
Saravá, Mestra.
Salve, Maria Cecília Donnangelo!
Gastão Wagner no prefácio ao livro "Medicina e Sociedade" (título da tese de doutorado defendida, em 1973, por Maria Cecília Donnangelo, Editora Hucitec), a entitula Mestra e a agradece por toda a contribuição para a política de saúde no Brasil "com a liberdade de movimento, com o rigor metodológico e interpretativo, com a abertura para o concreto para além das travas teóricas, de nossa Mestra". Confira!
Gastão Wagner de Sousa Campos – 26 de janeiro de 2011.
Machado de Assis comentou sobre a relação entre escolas literárias e escritores. Segundo ele, para o artista comum (medíocre?) a escola é uma clausura, ela indica o caminho por onde narrador transitará independente das exigências de seu tema e enredo. Já para os gênios, apesar das escolas, apesar de suas imposições formais, estes abririam novas picadas, descortinando perspectivas para além dos limites da moda de sua época.
Machado de Assis comentou sobre a relação entre escolas literárias e escritores. Segundo ele, para o artista comum (medíocre?) a escola é uma clausura, ela indica o caminho por onde narrador transitará independente das exigências de seu tema e enredo. Já para os gênios, apesar das escolas, apesar de suas imposições formais, estes abririam novas picadas, descortinando perspectivas para além dos limites da moda de sua época.
A professora Cecília Donnagelo foi um gênio da Saúde Coletiva. Era uma cientista social de seu tempo, formada por Luiz Pereira e outros, em um período que a voga era o marxismo temperado com o estruturalismo francês. Mesmo valendo-se desse referencial, Cecília Donnangelo não respeitou seus cânones mais estritos. Tratou de transpor as fronteiras dessa escola de múltiplas formas, entre elas combinando a perspectiva histórica e social (os sujeitos e a política) com a objetividade do estruturalismo.
“Medicina e Sociedade” foi, originalmente, sua tese de doutorado defendida, em 1973, na Faculdade de Medicina da USP. Foi publicada como livro pela Livraria Pioneira Editora em 1975. Nessa obra, a professora soube combinar rigor acadêmico com criatividade; respeito ao seu tema – pesquisa de campo sobre a profissão médica – com amplo referencial teórico que lhe serviu de base para interpretar o material empírico levantado. Cecília recomendava aos seus alunos, eu entre eles, que nunca renunciássemos ao risco da interpretação, marcando sempre a distinção entre o material levantado e o produto de nossa análise.
Nesse trabalho, ela articulou a descrição de um fenômeno com sua interpretação a luz de amplo referencial social e político sobre a sociedade brasileira e as políticas de saúde. Fez exatamente aquilo que os estreitos cânones “científicos” contemporâneos condenam! Demonstrou que a compreensão de um fenômeno social depende de sua cuidadosa e meticulosa abordagem singular e, portanto, empírica, mas também da ousadia do pesquisador em analisá-lo, perguntando sobre sua genealogia e sua organicidade com a formação econômica e social.
Grande Mestra!
Além de verificar como se organiza, no concreto, o trabalho médico, Cecília Donnagelo buscou explicação para seu processo de mudança, para sua reestruturação, apontando o papel do Estado brasileiro, que permeável “à dinâmica das relações de classe” tomou “decisões de natureza política” objetivando a expansão da assistência médica à segmentos específicos da população.
Encontrou que esse movimento pragmático de ampliação do acesso não obedeceu “apenas ao padrão de riqueza” (determinação econômica), mas também “à conquista de direitos sociais pelos assalariados”.
Resumindo, a professora soube lidar com a complexidade da dinâmica social e política sem cair na geléia geral da multicausalidade sistêmica atualmente na crista da onda.
Ela apontou algumas características dessa política de expansão do “direito à saúde” que são atualíssimas, aspectos ainda vigentes mesmo vinte anos após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS):
“Entretanto, a esse novo momento de ampliação dos direitos sociais corresponde o reforço de um padrão peculiar de interferência do Estado no setor de serviços que pode ser genericamente caracterizado como um padrão de acomodação entre as pressões dos assalariados pela garantia de consumo e os interesses dos produtores privados de serviços.”
Incrível! Quanto dessa lógica não continua ainda presente na relação agora mediada pelo Estado/SUS?
Paradoxalmente, o Estado brasileiro intervém no campo da saúde “evitando a estatização dos serviços de saúde”, inventando-se, ao longo de mais de cinqüenta anos, várias maneiras para combinar expansão da assistência com serviços privados. Cecília Donnagelo nos revela que a promiscuidade entre o público e o privado está inscrita no código genético da intervenção do Estado quando objetiva viabilizar a expansão de cobertura assistencial.
Como não poderia ser diferente, esse modo curioso de ampliação do sistema de saúde alterou a organização do trabalho médico, produzindo “perda de autonomia dos médicos” e, sobretudo, a substituição da homogeneidade no exercício profissional, em decorrência “da sujeição a processos comuns de formação nos aspectos técnico-científicos e éticos”, por uma ampla heterogeneidade laboral. A pesquisadora identificou sete modos principais de inserção dos médicos no trabalho, desde o assalariamento até autonomia típica (liberal clássica ou empresarial).
Vale ressaltar ainda que a Mestra também criou categorias analíticas instigantes, para além dos parâmetros vigentes, como a de “ideologia ocupacional, encaradas principalmente como projetos de reorganização dos meios de produção de serviços de saúde e, em particular, do trabalho médico”. Esses conceitos foram a base metodológica para minha investigação de mestrado, “Os médicos e a política de saúde”, defendido na FM/USP em 1985.
Obrigado, Mestra!
Cecília Donnangelo nos faz falta... Faz falta estudarmos a política de saúde do terceiro milênio no Brasil com a liberdade de movimento, com o rigor metodológico e interpretativo, com a abertura para o concreto para além das travas teóricas, de nossa Mestra.
Em 1980, 1981 e 1982 frequentei todos os cursos que professora Cecília Donnagelo ofereceu na pós-graduação da FM/USP. Lamento não havermos gravado suas exposições. Enquanto fumava um longo cigarro em seguida do outro, ela nos encantava ao ampliar, ao modificar, ao acrescentar categorias e novos ângulos de interpretação aos seus trabalhos anteriores. De tão siderado, sequer anotar suas idéias com sistema eu conseguia. Lembro-me de quando discorreu sobre a possibilidade do Brasil abastardar (essa expressão é de minha autoria, não me recordo do termo exato empregado pela professora) a tradição dos sistemas nacionais socializados de saúde, tendo em vista a dinâmica perversa e privatista constituída entre Estado, política e as classes sociais...
Saudade, professora!
Saravá, Mestra.
Salve, Maria Cecília Donnangelo!
Fonte: Cebes
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