março 11, 2012

"Poder Constituinte, Vida e Direito", por Hugo Albuquerque

Poder Constituinte, Vida e Direito


"Maldição sobre o passante que insultar essa suave cabeça pensativa. Será punido como todas as almas vulgares são punidas — pela sua própria vulgaridade e pela incapacidade de conceber o que é divino. Este homem, do seu pedestal de granito, apontará a todos o caminho da bem-aventurança por ele encontrado; e por todos os tempos o homem culto que por aqui passar dirá em seu coração: Foi quem teve a mais profunda visão de Deus" (Ernest Renan sobre a estátua de Spinoza em Haia [acima])
PICICA: "Delimitar o Direito como sistema de normas somente produzidas pelo Estado é pouco e conveniente. Seria como negar que as próprias mudanças legislativas - desde a criação de leis ou a ineficácias de certas normas - ocorrem pela manifestação ativa da multidão, reivindicando seus direitos - isto é, fazendo uso de linguagem jurídica. Usar de linguagem é fazer o próprio Direito - e linguagem jurídica existe desde Roma, onde - salvo anacronismos que podem transformar bigas em automóveis e cavalos em motores elétricos - não havia Estado ou Constituição."

Uma das questões fundamentais que se impõem quanto ao pensamento jurídico é, sem sombra de dúvida, aquela que trata da dobra entre o poder constituinte e o poder constituído - o que diz respeito à própria persistência desse poder constituinte, uma vez fundado o Estado. Essa duplicação fantástica diz muito sobre o que se tornou o Direito, isto é, para qual direção ele foi voltado  pelo projeto da Modernidade - sobretudo no que toca à insistência em eliminar qualquer manifestação de pluralismo jurídico, a começar pelo plano teórico, convertendo todo o Direito em mero direito estatal, para contê-lo nas paredes rígidas do Estado e da Lei, além de esconder a obviedade de que só a rebeldia controla efetivamente o poder.

Existe uma anedota pela qual o filósofo do direito argentino Genaro Carrió, em seu Sobre Los Limites del Lenguaje Normativo, estabelece uma crítica interessante ao conceito de poder constituinte originário: alguns militares procuram um certo Dr. K. para lhe pedir um parecer sobre uma questão capciosa; seriam eles legítimos para, uma vez desfechada a revolução que pretendem realizar, redigir uma nova Constituição tomando a função de poder constituinte originário? 

Depois de muitos volteios, a conclusão do Dr. K é de que o dito poder constituinte originário é, antes de mais nada, uma impropriedade, uma legitimação retroativa para uma Constituição já feita, pois não poderíamos falar em um poder na medida em que nada foi constituído, ou melhor que nenhuma competência foi determinada. Logo, não é campo de estudo da ciência do direito se prestar a estudar um fenômeno.

Kantianamente, Carrió está tão preocupado com o exercício e operação do poder que precisa delimita-lo com precisão. Ao elevar tal preocupação ao extremo, ele chega a uma conclusão acidentalmente libertária: o poder o é, justamente, por ter sido constituído, logo, ele não é constituinte - mais do que isso, o poder se apodera (divide, segrega e afasta, não constitui, não é uma propriedade sua). Por vias e motivos totalmente outros, a filosofia da imanência contemporânea chegará a uma conclusão parecida, o poder não constitui, ele é um constituído pela mesma vida que ele, no entanto, busca capturar.

A falácia que Carrió ecoa nessa ocasião é repetir um corte epistêmico à la Kelsen - cujo nome, não à toa, começa com o mesmo K do seu Dr. imaginário e que se postou da mesma maneira sempre que chamado a colaborar com trabalhos de redação de constituições -, isto é, considerar que direito só é fundado no momento em que há um Estado constituído para, assim, eliminar a possibilidade de qualquer pluralismo jurídico. Só interessa ao jurista o Direito traduzido em ordenamento legal.

A questão, no entanto, é histórica: como afirmar que o Direito é linguagem necessariamente estatal se seu surgimento precede, cronologicamente, a origem do Estado? Ou como negar que a Constituição, por sua vez, não passa de um contrato em escala gigantesca - levado a cabo   por uma burguesia que não conhecia forma melhor de resolver seus problemas-, o que torna os trabalhos de sua redação tão jurídicos quanto sua existência? Isso tudo nos remete ao que interessa: Ou melhor, o que diabos é o Direito?

Delimitar o Direito como sistema de normas somente produzidas pelo Estado é pouco e conveniente. Seria como negar que as próprias mudanças legislativas - desde a criação de leis ou a ineficácias de certas normas - ocorrem pela manifestação ativa da multidão, reivindicando seus direitos - isto é, fazendo uso de linguagem jurídica. Usar de linguagem é fazer o próprio Direito - e linguagem jurídica existe desde Roma, onde - salvo anacronismos que podem transformar bigas em automóveis e cavalos em motores elétricos - não havia Estado ou Constituição.

Um direito é passível de existência apenas no momento em que alguém o reivindica - e ao fazê-lo imputa um dever a algo ou alguém, o que também pode se operar pela via inversa, com a autoimposição de um dever -, ele valerá se o que foi reivindicado seja possível e será eficaz, por fim, apenas no momento em que determinadas contingências transformem a forma de comportamento que ele intenta em prática, naturalmente por assentimento mútuo - o que, para o bem ou para mal, está intrinsecamente ligado à servidão voluntária.

O Direito termina por ser essa linguagem que duplica o mundo que enuncia, construindo relação atributivas fundadas na pressuposição da existência de uma dívida - finita ou infinita, móvel ou não. O Direito dá origem às leis, mas com elas não se confunde, fazê-lo é se debruçar a um projeto que busca tirar a legitimidade dos múltiplos discursos jurídicos para reduzir a polifonia ao monólogo normativo estatal. A Constituição, portanto, é uma das possibilidades decorrentes do uso da linguagem jurídica. 

Voltando a questão da possibilidade de um poder constituinte originário, se dizemos que ele existe, é porque alguém já o constituiu, ele não poderia ser uma fonte transcendente de nada. Mesmo que aceitássemos uma ambiguidade em torno da palavra "poder" [potestas] - e a possível confusão com "potência" [potentia]  -, é certo que da potência realizada surge o ato e não qualquer espécie de poder. Não há efetivamente cisão, há um mesmo processo em curso.

Aliás, a maneira como Kelsen e o próprio Carrió veem a questão do poder constituinte é mais oportuna ainda: o dito poder constituinte originário, não-jurídico, é absolutamente livre e determina uma forma de poder que é condicionada. Repete-se aqui o teologismo que debatíamos por aqui mesmo há pouco e que designa, convenientemente, que o exercício do poder parte de uma entidade sem nome, não-nomeável e que a todos e tudo nomeia para assim podê-los ordenar. Eis o poder constituinte originário: uma entidade que atribui infinita e irresponsavelmente sem ser atribuída por nada (e por ninguém) ou mesmo poder ser atribuída de qualquer coisa.

É um verdadeiro mal passo o ponto em que Carrió cita Spinoza, comparando seu conceito de Deus - e por tabela a relação entre natureza naturante e natureza naturada - com a relação entre o poder constituinte originário e o poder constituído - e isso decorre de um detalhe tão pequeno quanto elementar: Spinoza nomeia Deus e isso faz toda a diferença, sobretudo porque se tratar de um pensador judeu. 

Nomear Deus - ao enunciar o famoso Deus sive Natura, isto é, Deus ou Natureza - é a pedra de toque da teoria spinozana da imanência, pois a partir disso, é rompida a vedação hierárquica que justifica uma fonte transcendente para o poder, colocando-o no mesmo plano por qualificação. Deus está nominado por ser nominável, por nunca ter havido razão para não tê-lo sido. Ele está no mesmo plano daquilo que ele nomina.

Portanto, a dobra da qual falamos inicialmente - a relação entre poder constituinte e poder constituído - não encontra suas sementes em Spinoza, muito pelo contrário: ela é desdobrada por ele, uma vez que Deus é realmente nominável - embora imaginariamente ele possa não ser -, assim a transcendentalidade que serviria para justificar o mundo da Lei - por vedação hierárquica - torna-se meramente especular, ficcional. 

Se Deus tem nome e ele corresponde à própria Natureza - e ele é causa e efeito de si mesmo, confundindo essência com existência -, temos a imanência como real, o que se aplica também à Política e ao Direito, tornando a liberdade uma construção concreta, pois deixa de haver poder intocável e o próprio poder passa a ser apenas uma possibilidade de organização.

É possível, a partir daí, pensarmos uma liberdade absoluta pelo ingovernável ou pelo inominável, pois o sistema das nomenclaturas é imaginário. Se tudo pode ser nomeado, significa que as coisas podem deixar de sê-lo, nomear - e em seguida identificar ou se identificar torna-se uma opção. Aí, torna-se possível, inclusive, (contra-) ordenar o ordenante e neutraliza-lo ao passo que se sua forma de manda se sustenta pela possibilidade de nos nomear, nós podemos devolver-lhe na mesma moeda.


Isso é mais do que adentrar a questão das afirmações plenas e indomáveis das multiplicidades - de modos, de diferenças - que constituem  a  Natureza. Como ordenar um tumulto, uma legião ou uma multidão? As afirmações rebeldes e malditas da multiplicidade só podem ser desfeitas senão fazendo as singularidades que a compõem confessarem - isto é, assumirem - um nome. Depois de Spinoza, pior ainda, a própria máquina inquisitorial perde a intangibilidade de seu mecanismo axiomático.

Não à toa, Kant, que lhe é posterior, busca por meio da teoria da causa primeira recolocar a filosofia no caminho seguro e inofensivo da tradição. Cortes epistêmicos em locais e momentos estratégicos voltam a aparecer, filosoficamente legitimados, para não incomodar o poder: o que dizer da norma hipotética fundamental do kantiano Kelsen (que atribui normativamente sem ser atribuída ou ser atribuível)?

No mais, Spinoza se presta, ao falar em natureza naturante e natureza naturada, a estabelecer uma complexa operação metafísica na qual ele tenta explicar a relação entre potência e ato, não entre relações de poder - o poder, em seu esquema teórico, no fim das contas é um artifício que pode ser manuseado por razões estritamente estratégicas e práticas, à maneira de Maquiavel.

O que há é um enorme potência revolucionária que é a vida afirmada feita irrupção do desejo revolucionário - que produz, entre outras coisas, o Direito como saída desesperada para a resolução de uma velha questão: a realização da política. É um pouco do que Negri fala em em seu Poder Constituinte, embora coloque isso como uma dicotomia entre poder constituinte e poder constituído, além de insistir no uso da primeira terminologia - enquanto dentro de nossa análise é fundamental tanto distinguir rigorosamente poder de potência quanto trazer para o campo da ciência do direito.

No primeiro caso, o risco estratégico de insistir no ardil do poder constituinte é reconhecer que o poder constitui, o que além de quimérico, ainda serve aos seus anseios de captura - inclusive referendando, conscientemente ou não, a lógica da outorga, isto é, das conquistas sociais como concessões - e de legitimação retroativa - só se fala que algo foi poder constituinte originário, uma vez tendo uma determinado poder sido estabelecido (isto é, um Estado tendo sido parido ou, que seja, sido reconfigurado). 


Considerando ainda que a produção constitucional é ela própria produção jurídica, o que é apenas parte de um processo revolucionário - precisamente aquela que diz respeito ao seu enquadramento (resulte em um Estado ou não, afinal não a relação mútua), mas não deixa de sê-lo. Uma ciência jurídica precisa, portanto, se voltar para isso - e ser cientista do direito não é advogar pela primazia daquele saber prática como forma definitiva dos conflitos humanos, mas de compreender sua função, movimento do qual fatalmente decide-se sobre sua utilidade (aceitar o ardil ideológico da modernidade que confunde estrategicamente Direito com Lei, portanto, não é um bom começo).

Mas Negri está certo sobre a subsistência da potência revolucionária frente a constituição do poder. E falemos, pois, em constituição do poder e não no contrário, fato que se dá quando o momento revolucionário é trespassado por uma formatação jurídica que o leva a constituir contratualmente, processo do qual resultará uma peculiar potestas (na forma de máquina teológico-política definitiva, no caso da modernidade) que atuará não constituindo, mas sim dividindo - a começar a potência humana da sua realização plena em ato.

O que há é uma potência desejante libertadora, cupidez plena, pervertida em seu início e tornada constituição do poder até seu desfecho em poder constituído - como na Rússia revolucionária que foi da explosão libertadora do desejo aos complôs, massacres e julgamentos falsos que fizeram ascender Stalin nos anos 20 até seu coroamento nos anos 30. O poder, no entanto, como um cão que persegue o próprio rabo sem jamais alcança-lo, é produto perverso da mesma Vida que busca capturar (seja pela disciplina e/ou controle): toda resiliência do poder atual se volta para a capacidade da Vida se reinventar e escapar dele. 

É desdobrando esse processo de perversão que podemos encontrar pistas para a tão sonhada emancipação.

Fonte: O Descurvo

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